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Em busca das origens dos «idiotismos»

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 102-104)

CAPÍTULO III. «GATO ESCALDADO, ETC.»: LUGARES-COMUNS, PROVÉRBIOS E

III.1 Em busca das origens dos «idiotismos»

A par de outras estratégias retóricas utilizadas por José Daniel Rodrigues da

Costa nos seus periódicos para obter efeitos jocosos, o autor recorre a expressões

populares, provérbios e lugares-comuns

171

. Mas não se contenta em reproduzir esses

adágios no contexto das «petas»: propõe-se, com frequência, indagar a sua origem. Por

vezes, à falta de melhor explicação, sugere ele próprio uma genealogia cómica.

Logo no segundo folheto do Almocreve de Petas, no episódio que ganhou

notoriedade graças ao soneto de Bocage «Ao machucho poetarrão»

172

, encontram-se as

expressões «vender gato por lebre» e «gato escaldado de água fria tem medo»

173

. Esta

última tem a particularidade de aparecer truncada («gato escaldado, etc.»), fazendo jus a

outro lugar-comum cuja origem o autor do periódico explicará mais tarde: «a bom

entendedor, meia palavra lhe basta» (Almocreve, CXV, p. 5).

A origem de expressões que se tornaram populares pelo uso generalizado é um

tema presente ao longo do Almocreve de Petas. O autor refere-se-lhe logo na Parte

XIV, num dos anúncios facetos incluídos na secção Avisos, a fechar o periódico

174

.

O autor volta ao assunto meses mais tarde, apresentando-o como uma

investigação de um colaborador do jornal sobre a origem de expressões idiomáticas

(«idiotismos»). De notar que algumas dessas expressões continuam a ser usadas na

171Ver SANTOS, Maria do Carmo dos, BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico – «A Sátira e a técnicas

retóricas nas cartas jocosas de O Almocreve de Petas (1798-1799)», Cadernos Literários. Vol. 23, n. 1, 2015, p. 60-84; MOSS, Ann – Printed Commonplace-books and the Structuring of Renaissance Thought. Oxford: Clarendon Press, 1996; LAUSBERG, Heinrich – Elementos de Retórica Literária. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 236-238; e POÇAS, Licínio – Vade-Mécum de Lugares-comuns. Lisboa: Arcádia, 2012.

172 BOCAGE – Op. cit., p. 268-269. Ver acima, p. 30, nota 125.

173 «[…] e aqui temos nova bulha; porque hum dos meus Senhores da função, por tolo, cahio em

descobrir ser elle hum dos que vendêrão gato por lebre, de que se seguio miarem-lhe todos, e ficar muito bem arranhado de pescoções; e he para acreditar, que não tornará a ser inventor de peças, porque gato escaldado, &c.» (Almocreve, II, p. 4).

174 «Por detraz das casas, que ficão da parte da Praia, defronte de huma tenda, que terá batatas á porta, no

segundo andar á esquerda, se estabeleceo huma Aula de fallar perfeitamente a Língua de Preto, de Algarve, e de Galego, com explicações da Lingua Portugueza, aonde se faz ver, com a maior facilidade, a origem de algumas frases, como por exemplo: disse das bogas: barbas te deo Maio: tem dente de coelho: aqui torce a porca o rabo, etc. As pessoas, que lá não quizerem hir, o poderão fazer» (Almocreve, XIV, p. 8). Noutro «aviso» é anunciada a publicação da «História da Carochinha»: «Sahio á luz o primeiro Tomo da Historia da Caroxinha, com tudo quanto lhe pertence, e traduzida por hum genio habil para divertimento da mocidade, e tem no fim hum bonito Epicedio á morte de João Ratão; fica-se apromptando a continuação desta Obra, se vv. mm. quiserem» (Almocreve, XL, p. 8).

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actualidade (como por exemplo «essa é de cabo de esquadra»), não obstante as

modificações sofridas ao longo dos últimos dois séculos, designadamente por

corruptela, caso de «deu com tudo em pantana» («pantanas») ou «disse das bogas»

(«das boas»)

175

. No folheto seguinte propõe a explicação da origem de «andar em papos

de aranha» e «velho gaiteiro», além das hoje em dia menos familiares «caros alhos,

compadre», «não me peça demasias» ou «sabe a gaitas»

176

.

Após um interregno de meses, o «amigo aplicado» ao estudo retoma a sua

investigação e esclarece a origem de aforismos ainda correntes no século XXI, como

175 «Rua d’Atalaya 25 de Abril. O Amigo applicado a experiencias económicas mostra que se tem

cansado em depurar a nossa Lingua Portugueza, pela seguinte Dissertação, que offerece. Todas as Linguas tem seus idiotismos particulares, e palavras, que se introduzem, que no fim dos Seculos ficão confundidas, por se ignorar a sua derivação: nós faremos hum beneficio á Posteridade, se memorarmos a origem de algumas frases, e palavras, que temos no nosso Idioma, como por exemplo: deo com tudo em pantana: essa he de Oeiras, ou de Cabo de Esquadra: disse das bogas: fez vispere; e estas serão o assumpto da presente dissertação. Nós chamamos ás lagoas Pantanos; e porque segundo a gentilidade, o Averno era cortado de rios, e lagôas, lhe chamárão Reino Pantanoso, daqui veio corrupto vocabulo chamarem Pantana ao Tartaro, ou Inferno, no sentido Poetico; e porque de lá não torna a vir nada, por isso quando alguém decipa dos seus bens, se diz, deo com tudo em Pantana, que he o mesmo que dizer, perdê-os para sempre.

A Oeiras foi um Cabo de Esquadra procurar onde morava seu Pai, que lhe queria fallar, e tomar-lhe a satisfação porque morreo, e não lhe deixou nada; e como esta asneira foi remarcavel, por isso quando se ouve alguma muito grande, dizemos: essa he de Oeiras: essa he de Cabo de Esquadra.

Huma cozinheira estava frigindo humas bogas, teve fome, comeo humas poucas; perguntou-lhe a dona da casa por ellas, e a moça imputou a culpa ao gato: hum Papagaio, que observára tudo, revelou o segredo; a moça em vingança atirou-lhe com agua fervendo á cabeça, de sorte que o pelou, melhorou o Papagaio, e estando hum dia á janella, vio vir hum calvo, então lembrado do seu caso, gritou, ó calvo, tambem tu disseste das bogas? E eis-aqui donde vem este ditado» (Almocreve, LIII, p. 5-6. Negritos meus).

176 «Hum homem sabendo que seu Compadre hia á Feira; deo-lhe huma peça, por não ter outro troco,

para lhe comprar duas navalhas de meio tostão, huma vara de panno de linho de doze vinténs, três varas de fita preta de três vinténs, e quatro resteas de alhos: o Compadre quando veio, trouxe-lhe todas as encommendas, mas não lhe deo demazia; o outro deixando-se de comprimentos, pedio-lhe o resto, a que o Compadre respondeo: não me peça demazias, porque duas navalhas a 50 réis fazem 100, com 240 de panno faz dezesete, com três varas de fita a 60 reis faz 520, e o resto foi o que custarão as quatro resteas de alhos, a que v. m. não estipulou preço; respondeo o outro logo: caros alhos Compadre; e porque este caso foi público, daqui vierão os dous ditos.

Todos os homens antigos tinhão por costume aprender a tocar gaita, mas pelas suas distracções nunca vinhão a ser perfeitos, senão quando erão velhos, e então como já o seu toque não enfastiava, tocavão continuamente; como isto era quasi geral, em se vendo hum velho, já lhes chamavão gaiteiro: e como a estes homens nada mais lhe agradava que o toque da sua gaita, e he uso todos tirarem as comparações do Officio, de que fazem vida, como v. g. o Marujo, quando quer dizer que chegou, diz: fiz hum bordo, quando quer dizer, Fulano, vai depressa, diz: leva vento em popa, assim estes tocadores, como achavão tanto sabor no seu toque, quando explicavão que alguma cousa lhe sabia bem, logo dizião: sabe a gaitas.

A aranha, insecto bissexo, na sua propagação forma huns pequenos saccos, ou papos cheios de humor esprematico, donde, passados alguns tempos, nascem immensos aranhiços; porém primeiro formão huma têa, donde os pendurão; mas as criadas de servir quando varrem a caza, em vispando estes papos, pregão-lhe tamanha vassourada, que os lanção pelos ares com têa, e tudo, e por isso quando alguem anda de esquentilhão, ou faz alguma cousa depressa, atabalhoadamente, logo se lhe diz: que tudo vai em papos de aranha» (Ibidem, LIV, pp. 5-6. Negritos meus).

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«burro velho não aprende línguas»

177

ou os já citados «gato escaldado de água fria tem

medo»

178

e «para bom entendedor meia palavra basta»

179

. O adágio que começa por «da

mulher e da sardinha» é, actualmente, mais conhecido pela variante «quer-se da mais

pequenina»

180

. Pelo contrário, «vá encostar-se ao que comeu hoje» parece ter caído em

desuso

181

.

No periódico lançado por José Daniel Rodrigues da Costa para suceder ao

Almocreve de Petas, Comboy de Mentiras, cuja primeira edição data de 1801, é

apresentada uma curiosa proposta sobre a origem da expressão de ameaça «ir ao

canastro», incluída num mapa sobre os diferentes tipos de jogos, incluindo os jogos de

cartas

182

.

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 102-104)