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5 «Alimpem a mão à parede»: A Tripa Virada

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 130-134)

CAPÍTULO V. HUMOR, INSULTO E POLÍTICA NOS PERIÓDICOS DE JOSÉ

V. 5 «Alimpem a mão à parede»: A Tripa Virada

A Tripa Virada regista a noite de 5 de Junho de 1823 como a da sua primeira

reportagem, culminando um dia considerado histórico pelo redactor

260

. Naquela data

representou-se o último acto do golpe contra-revolucionário da Vilafrancada, iniciado a

27 de Maio (apenas quatro dias depois da entrada em Madrid dos Cem Mil Filhos de S.

Luís, o exército francês comandado pelo duque de Angoulême, que pôs fim ao triénio

liberal em Espanha e restaurou Fernando VII como rei absoluto): o regresso apoteótico

de D. João VI a Lisboa, vindo de Vila Franca na companhia do infante D. Miguel,

nomeado generalíssimo. Abolida a Constituição e dissolvidas as Cortes, a chegada do

rei ficou assinalada pelo gesto de um grupo de nobres que desatrelou os cavalos,

substituindo-os no papel de puxar a carruagem real, dando vivas ao rei absoluto.

Àquele dia «memorável e prodigioso» sucedeu uma noite «agradável e

divertida», em que o «acaso ofereceu» a José Agostinho de Macedo um «espectáculo»

que seria o tema central do periódico – a campanha contra a Maçonaria e os pedreiros

livres, anunciada logo nos versos que lhe servem de epígrafe, assinados Forno do

Tijolo

261

: «Sem páo nem pedra cáhe em pedaços/Co-a Trolha, e Prumo a Farça dos

Palhaços.»

Depois de localizar no tempo e no espaço a cena que vai narrar, Macedo

introduz de imediato o tom que vai marcar os textos d’A Tripa Virada:

Ahi para o fim da rua do Telhal, encrusilhada da rua de Santo Antonio, etc. tenho hum amigo muito curioso, e o maior espreitador de vidas alheas que

Actor representando o papel de constitucional, sendo-o com tanta verdade como hum comico he Tarmelão Rei da Persia, quando o representa» (Tripa por huma vez, p. 66).

259 A Tripa Virada. Nº 2, p. 14.

260 «Tão memoravel e prodigioso foi, e será nos Fastos de todas as Nações civilisadas, o dia cinco do

corrente Junho de 1823, pelo quadro unico, e sem exemplo que nos offerece a Historia, como agradavel e divertida oi para mim a noite do mesmo dia, pelo espectaculo que me offereceo o acaso» (Ibidem. Nº 1, p. 1).

261 Macedo morava, à época, na Calçada do Forno do Tijolo, em Lisboa, e assinava por vezes as suas

cartas, artigos ou poermas «Forno do Tijolo». A Tripa Virada era impressa na Oficina da Horrorosa Conspiração, ex-Impressão Liberal, localizada na Rua Formosa, nº 42.O nome evoca a «conspiração da Rua Formosa», intentona contra-revolucionária denunciada por Rodrigo da Fonseca Magalhães, em Junho de 1822, e que levou à prisão o impressor Januário da Costa Neves e Francisco Alpoim de Menezes, futuro redactor d’A Trombeta Luzitana (Ver MESQUITA, Pedro Teixeira – A Trombeta Lusitana. [Em linha]. Lisboa: Hemeroteca Municipal, 2014, p. 1-2. [Consult. 02.04.2017]. Disponível em http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/ATrombetaLusitana.pdf.

110 tem apparecido no Mundo [...] convidou-me para assistir a huma Comedia, que nessa noite se representava, e que com effeito foi vista por hum buraco, porque morando elle em casa contigua ao Grande Oriente Lusitano, tanto esgravatou, tanto minou, e contraminou, pôde por huma fresta subtil abrir caminho aos olhos para o grande salão das grandes sessões do Grande Oriente, e ver, sem ser visto, as grandes Farças dos Grandes Palhaços (Tripa Virada. Nº 1, p. 1-2).

A descrição inclui elementos que permitem, facilmente, identificar os

participantes na sessão maçónica.

[…] conhecia-os como os meus dedos. O primeiro veio para debaixo de hum docel velho assim do feitio de barraca da feira da ladra [...] tinha ar de quem ainda dava Conselhos de Estado, e era com aquella figurinha de placart magro, e calvo, o Grão Mestre do Grande Oriente262! Pois hum Demonio negro com duas mitras, e duas coroas, huma de Conde, outra de Frade! Todo elle cheio de Synonimos263 […] vi o Pato264 no caracter de Grande Secretario [...]. Muito gostei de ver os dois Grandes Vigilantes! Hum Conego outro Abbade [...] sem egreja muito sabio na opinião, com a cara velha, e franzida como huma correa265, e homem de tantos dias, que já tinha idade para ter juiso, e não se meter naquellas encamizadas (Ibidem, p. 3-4).

Sob a forma de discurso pronunciado por um maçon, à laia de confissão, segue-

se uma catilinária contra a Maçonaria, que serve para introduzir o título escolhido por

Macedo para o periódico:

Não sei como isto foi, o que sei he que não pomos mais pé em ramo verde, e vos confesso, venerandos irmãos, que vejo de todo = A TRIPA VIRADA […] virá o Forno do Tijollo266, todas as paz, todos os basculhos, todas as talhas, e meias talhas de pinho nos cahirão em cima do toitiço, e assim como nós quizemos esmagar o Infame, o Forno do Tijollo nos esmagará a nós… (Ibidem, p. 9-10).

O mesmo título é depois justificado, bem como o estilo jocoso adoptado:

[…] este gracejo com o fundamento da verdade serve de Prefacção ao Periodico, que vou offerecer á Nação Portugueza, com o titulo que lhe supponho dado pelo Orador – A TRIPA VIRADA – e começamdo do primeiro acto da rebellião, começada desde o dia infausto de 24 de Agosto de 1820, até o dia faustissimo 5 de Junho de 1823, eu hirei seguindo em seus passos a obra da iniquidade […] eu levantarei o véo que encobre ainda o abysmo de males, em que os malvados nos precipitarão. Talvez hum seculo não possa remediar de todo as desgraças de trez annos (Ibidem, p. 10).

262 João da Cunha de Sotto Maior (1767-1850).

263 Alusões à dupla condição de conde (de Arganil) e frade (beneditino) de Frei Francisco de S. Luís

Saraiva (1766-1845), bispo de Coimbra e reitor da Universidade, autor do Glossário das palavras e frases em língua francesa que se tem introduzido na locução moderna portuguesa, ex-presidente das Cortes, futuro ministro do reino e cardeal patriarca de Lisboa.

264 Nuno Álvares Pereira Pato Moniz (1781-1826).

265 Abade Correia da Serra (1750-1823), fundador da Academia das Ciências, representante diplomático

de Portugal nos EUA e íntimo do presidente Thomas Jefferson, que morreu poucos meses depois desta referência, em Setembro de 1823.

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O recurso ao riso ou, pelo menos, ao risível não mitigava a violência d’A Tripa

Virada. O Nº 2, sob o título «S. Miguel, e os Diabos» consiste num exercício de

diabolização literal do outro, neste caso o inimigo político:

Houve no Ceo huma grande batalha: S. Miguel pelejou com o Dragão, e com os seus Anjos, e por fim atirou com todos os Diabos aos quintos infernos. Isto foi no Ceo, e ainda que a imagem he muito alta, o mesmo succedeo com outro Miguel, que parece, e he hum Anjo cá na Terra; com a differença, que os Diabos de que o Miguel cá da Terra deo cabo, ainda erão peores que os Diabos que Miguel do Ceo mandou para as profundas. O diabo Lucifer por certo, até pelas pinturas que vemos, não era mais feio que Manoel Fernandes Thomaz. Belsabú não era peor que José da Silva Carvalho. Asmodeo tinha muito melhor cara, e melhor genio, que José Joaquim Ferreira de Moura. Moloc não era mais feio, nem mais Asno, que Drago Cabreira. Astaroth não era mais grulha, e arengueiro, que José Ferreira Borges (Ibidem, Nº 2, p. 13).

Desumanizado o adversário ao ponto de o equiparar ao mal absoluto, não é de

estranhar que o passo seguinte seja o apelo ao seu extermínio. Para completar a

mensagem, Macedo continua a usar a comparação céu/terra, com a particularidade de

utilizar palavras como pendurados e corda, alternadamente, como elementos de uma

alegoria e no sentido concreto:

Com a victoria de S. Miguel, segundo se nos diz, e crê, ficárão muitos Diabos espalhados nos ares, em justo que o S. Miguel da Terra, deixasse alguns, e bastantes pendurados no ar, e como elles não são tão leves como os outros Diabos, eu lhe aconselhara, que mandasse uzar de hum atilho assim por modo de huma CORDA […] a não se uzar do remedio eficacissimo da CORDA continuarão a maquinar da mesma sorte, a revolver, e a minar tudo como espiritos de rebellião e verdadeiros genios do mal […] porque o Maçonismo, e o Carbonarismo continuão da mesma sorte, e se estes diabolicos ajuntamentos se não arrancão de raiz, os effeitos continuarão a ser os mesmos. Ó S. Miguel nosso defensor cá de telhas abaixo, CORDA, e mais CORDA, olhai que elles são teimosos como o Diabo (Ibidem, p. 15).

O outro, em termos de luta política, ganha corpo na sociedade concreta. Macedo

não hesita em apontar os grupos socio-profissionais mais vulneráveis ao «contágio»,

todos da pequena burguesia urbana, classe média-baixa ligada ao comércio, viveiro de

liberais:

A Magdalena tinha sete Diabos no corpo (ha mulher que ainda tem mais) pois eu mostro ao nosso S. Miguel sete classes de Diabos onde tem muitos que lançar fora. Mercadores (fecharão as portinholas no dia do triunfo da justiça e da verdade), Capelistas, Fanqueiros, Bacalhoeiros, Ourives, Confeiteiros, e Chapeleiros, não digo, que todas estas sete classes sejão todas compostas de Diabos, porque em todas conheço muitos homens honrados, assim como na meia classe dos Retrozeiros, pios, religiosos, caritativos, e Portuguezes, mas os seus subalternos, e os seus Caixeiros! Que monda, que monda, não tem que fazer aqui o nosso S. Miguel! (Ibidem, p. 17).

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O preconceito social desdobra-se em preconceito cultural, quando Macedo

constata que os de baixo procuram a emancipação através da palavra impressa. A

solução para «estes nojentos empecilhos»? Apelar ao «milagroso S. Miguel da Terra»

para que não lhes deixe «osso em seu lugar»:

O nosso S. Miguel com hum rol exacto tirado por estas sete claces e meia achará os peores Diabos […] elle os pode exterminar com hum assopro, porque ainda que não causem próxima ruina, servem de enxovalho, e vergonha a homens encanecidos no estudo das Letras humanas, […] indignão-se de ouvirem caixeiros, e Patrões tão asnos como eles, porque com as mesmas cirollas, e tamancos vierão de Vasto, e de Biana a falarem no Governo mixto, na Oligarquia dos cantões, e na confederação do Reno baixo, e do Reno alto, e não passa hum homem pela rua Augusta, que não oiça dizer ao Caixeiro Mondim para o Caixeiro Cabeceiras – Tens lá o 3º volume do contracto social, que quero ver huma coiza? […] Ó milagroso S. Miguel da Terra, basculho, e mais basculho nestas classes, e livrai os homens de bem, e de juizo destes nojentos empecilhos, pegai, pegai nos seus mesmos covados, e nas suas mesmas varas, e não lhes deixeis osso em seu lugar por todo o seu vasto, e alarvado espinhaço (Ibidem, p. 18).

Apesar de tudo, ainda apresenta uma alternativa ao extermínio pura e simples –

o desterro: «mas se elle não póde pôr os diabos na mesma distancia em que os pôz S.

Miguel do Ceo, isto he, quanto vai do Imperio ao inferno, que vem a ser quanto vai de

Portugal a huma, e outra costa d’Africa oriental, e ocidental, não temos nada feito»

(Ibidem, p. 21).

O ridículo volta a ser a arma de eleição para apoucar os adversários ao historiar a

repressão aos liberais, enumerando os momentos altos das «montarias e coças

formidáveis» à Maçonaria, com destaque para a Setembrizada de 1810 e as

«fogueirinhas do Campo de Santa Anna» (Conspiração de Gomes Freire, em 1817),

com os «mentecaptos ali pendurados e depois assados»:

[…] deportados na Setembrisada, encafuados nas demolidas cazinhas, como se descuidáraõ delles, assim mesmo ganindo como cães apaleados se tornavão a ajuntar, e se tornavão á mesma teima, e levavão a sua por diante. Parece que se emendarião alguma coisa com a grande maquia, que levou o corpo Maçonico nas fogueirinhas do Campo de Santa Anna a que escapou o mais perverso de todos eles o Tenentinho; foi o mesmo que nada. Aquelles mentecaptos alli pendurados, e depois assados forão huma guarda avançada que o grande Exercito pedreiral quiz arriscar, e quiz perder na contingencia de lhe sair o gado mosqueiro. Continuarão com mais afinco, e invidarão o resto no infausto dia 24 de Agosto (Ibidem, Nº 3, p. 27).

O último dos três números «violentamente antimaçónicos»

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d’A Tripa Virada

conclui com uma espécie de mantra: «Alimpem a mão á parede». Debaixo dessa

chamada à ordem, Macedo arrola tanto as «patifarias» levadas a cabo pela «cáfila

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opinante, preopinante, constituinte e legislante» de «furiosos Pedreiros», «Palhaços» e

«molho de gaiatos» (Ibidem, p. 29), como as críticas à arrogância e pusilanimidade dos

«nobres e Grandes» que forão «humildes, submissos, mudos e dóceis» a «jurar

vassalagem ao Círio de Palhaços». Aponta-lhes a «mal fundada soberba» e lembra-lhes

que «se a fortuna vos deo destincções, nem a todos deo merecimento a Naturesa».

Magnânimo, oferece-se: «eu não deixarei, até por caridade, de vos instruir» (Ibidem, p.

36)

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No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 130-134)