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13 «Estejam calados!»

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 149-153)

CAPÍTULO V. HUMOR, INSULTO E POLÍTICA NOS PERIÓDICOS DE JOSÉ

V. 13 «Estejam calados!»

Em Abril de 1829, Macedo volta à carga contra outro dos seus alvos favoritos, a

pequena burguesia urbana em busca de voz política, daquilo que se poderia chamar um

empoderamento cívico e político:

Fanqueiros, Capellistas, Bacalhoeiros, Ferrageiros, etc., etc., etc., feitos a granel Politicos, Estadistas, Publicistas, são entes irrisorios, e cousas ridiculas, ou quando muito desafião a compaixão sobre tanta miseria. Seja tudo isto assim; mas quem pode duvidar que todos estes Batalhões de empecilhos são de huma impertinencia insopportavel, e de huma zanga invencivel? A poeirada da Besta fez destas gentes, ou o que quer que sejão, hum tropel de insolentes, e atrevidos, perturbadores da ordem pública, porque estão em mais estreito contacto com as classes do Povo miudo, que formão huma grande maça no Estado, e esta fermentada, e corrompida produz huma contaminação geral (Besta, Nº 12, p. 8).

O espaço público não é, portanto, para todos. O acesso à opinião pública (a

expressão foi usada por Macedo em Tripa por Huma Vez

289

) deve ser cuidadosamente

reservado em exclusivo aos «homens de bem», sinónimo de realistas ou corcundas.

Quanto aos outros, a ordem é para calar.

Oh! porque nós sômos Cidadãos, sômos partes essencialissimas da Nação, e a forma do Governo he do nosso arbitrio, porque o Contracto Social tambern em Lamego se fez comnosco. Para nós tambem escrevêo Montesquieu, tambem escrevêo Mably: estão enganados. VV. m.ces são Capellistas, são Bacalhoeiros, Mercadores, Fanqueiros, Ferrageiros vendão, trampolinem nas suas lojas, mas estejão calados: seus discursos, e seus atrevimentos são crimes na Policia, porque perturbão a ordem. Ha muitos annos que eu embirrei com vossas mercês, porque os seus despropositos, alem de impacientarem o Mundo sensato, causão mil prejuizos no meio dos Povos (Besta, Nº 12, p. 9).

287 MACEDO – Cartas Escriptas ao Senhor Pedro Alexandre Cavroé Mestre Examinado do Officio de

Carpinteiro de Moveis. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821. Ver FERREIRA, A. M.– Op. cit., p. 206.

288 Cavroé foi ainda redactor da Minerva Constitucional (ver TENGARRINHA – Op. cit., p. 229 e 376). 289 Sobre o uso pioneiro da expressão no vintismo ver TENGARRINHA – Op. cit., 2006, p. 15.

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V.14. Liberdade de imprensa: «Não querem revoluções? Pois não haja

periódicos»

Estava dado o mote para a entrada em cena do principal instrumento da

revolução, da democracia, do mal absoluto, enfim, segundo Macedo. «Sempre me deo

no gôto esta Liberdade da Imprensa» (Besta, Nº 15, p. 3), ironiza, considerando-a «um

sofisma» que se propõe destruir e oferecendo o exemplo do processo em que foi

condenado, em 1822 (Ibidem, p. 4).

Livros impressos – eis «a mais pestilenta, e venenosa dentada» da Besta

revolucionária, «em que a Religião era atacada, e a Moral pública corrompida; a

mocidade, e talvez que tambem a decrepitude, pervertida, e assim preparada para o

Atheismo, e para a Democracia» (Ibidem). Repentinamente, queixa-se Macedo, o povo

português tornou-se desmoralizado, incrédulo e ímpio.

Donde vem isto? De tanto Livro, e de tanto papel, que fez em hum instante de hum aleijador de Relogios, de hum empresilhador de Chapeos, de hum arredondador de Confeitos, hum Doutor da Sorbona. […] Caixeiros com as mãos, com a cara, com o toutiço besuntado de azeite, de manteiga, de toucinho, trascalando a bacalháo, e a carne do Norte, fallando na Chronologia dos Papas, nas doações de Constantino, e de Pipino, erão na verdade huma caricatura ridicula, mas offerecia huma caterva de impios materiaes mais brutos, que o bruto Polifemo (Ibidem, p. 5).

Macedo tem, naturalmente, uma solução – a fogueira para o livro e a forca para

o leitor:

Eis-aqui os fructos colhidos da leitura dos pestilentos Livros, aqui impressos, vulgarisados, espalhados, e embutidos. Querem sarar das dentadas da Besta? Pois he preciso começar pela abolição destas producções das trevas; e depois desta Lei de exterminio, e desta basculhação Inquisitorio-Politica, se na mão de algum se achar Livrinho desta natureza, fogueira com o Livro, e Forca com o dono (Ibidem, p. 6).

Pior do que os livros, só o «diluvio universal de Brochuras politicas, de

Periodicos, verdadeira praga de Gafanhotos, que roêrão, e estragárão tudo» (Ibidem).

O problema afigura-se mais difícil de resolver do que o dos livros, mas, ainda assim,

José Agostinho tem uma proposta:

Os Periodicos […] não só devem ficar prohibidos, para não apparecerem mais para o futuro, mas fazer a Lei pela primeira vez retroactiva para se fazer hum miudo, escrupuloso, e circumstanciado exame de quantos (bem sei que seria trabalho para cem homens, e para cem anos) se imprimírão, desde que a Besta metteo a cabeça pelas cancellas de Arroios no dia 1º de Outubro de 1820, até 22 de Fevereiro de 1828, mandando-se , com penas gravissimas, a todas as pessoas de qualquer estado, e condição que fossem, que tivessem em seu poder os taes Periodicos, que os fossem levar, ou mandassem pôr no Campo Pequeno (se o local désse para isso) em pilhas

130 regulares, mas contiguas, permanecendo alli a Tropa em armas […] vir o Executor da alta Justiça com seu fuzil, e pedra de petiscar, e competente archote, ou archotes, mechas, e mais utensilios, e largar, como Omár Califa, á immensa Bibliotheca de Alexandria, deposito da sciencia, e da insipiencia moderna, fogo a todos aquelles Castellos, e Torreões de papeis volantes, e reduzi-los a cinzas, para voarem mais. Concluida a queima, e apagadas todas as fagulhas, levantar o Carrasco a voz, e dizer como o Presidente mensal das Côrtes dizia — Está acabada a Sessão — Meus Senhores, está concluido o assado; e assim levou o Diabo os Periodicos. Em todas as Terras do Reino, grandes, e pequenas, no mesmo dia, á mesma hora […] executar-se pontual, e rigorosamente a mesma Lei (Ibidem, p. 6-7).

Para classificar os periódicos e o periodismo, Macedo consome boa parte de um

dicionário: pesadelo, delírio, flagelo devastador, diabólica invenção, dilúvio periodical,

produto das pocilgas dos filosofantes (Ibidem, p. 8), o segredo do seu êxito foi o baixo

custo que tornou «a peçonha» acessível a praticamente todas as camadas da população:

Em todos os Reinos, em que os Periodicos se multiplicárão muito, se tornou inevitavel a Revolução. Estes venenos custavão pouco a preparar, e menos a distribuir; pelo seu preço chegavão a todas as Classes, á Classe agrícola, á Classe operaria; a mesma canalha sem classe, e sem mister algum se occupava na Leitura dos Periodicos; e, como pouco reflexiva, não conhecia a peçonha, que se lhes propinava; desta maneira se contaminou em geral a maça da População de hum Reino, e tão vasto como o de França (Ibidem).

A ideia do veneno a dez réis – preço dos Periódicos dos Pobres –, ministrado

pela Censura liberal, é reforçada no penúltimo número d’A Besta:

A maior impulsão, que se dêo para a desgraça pública, e particular do Reino, foi dada pela mão da Commissão da Censura; e para que esta desgraça de desmoralisação, e frenética rebellião chegasse, e se estendesse até ás ultimas classes, com licença da Commissão da Censura, se imprimírão os diversos Periodicos dos Pobres, e para os Pobres, para venderem a dez réis, veneno barato, e a que todos chegavão para beberem a tragos a morte dos sentimentos moraes, e políticos (Besta, Nº 23, p. 8).

Em suma, contra o «contagio universal dos Periodicos» – «talvez o maior mal,

que tenhâmos padecido» – impõe-se a sua total abolição

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. «Não querem revoluções?

Pois não haja Periodicos» (Besta, Nº 15, p. 11).

Pouco mais de um mês depois, volta ao assunto, com a metáfora da peste: «com

effeito rompeo do Levante, porque em Veneza se começou a ouvir primeiro a

aterradora, e sempre espantosa palavra — Gazeta — diante da qual a verdade treme

como varas verdes» (Besta, Nº 19, p. 13). Ou, se se preferir, os periódicos são «fabricas

da impostura, do embuste, e do desaforo» (Ibidem, p. 14).

290 Logo no início do regime constitucional, Macedo escrevera, sob anonimato, um violento requisitório

contra a imprensa livre, com argumentos que foi refinando ao longo dos anos seguintes, mas com poucas variações do mote «Fugi de Periodicos = Fugite partes adversae» (Exorcismos Contra Periodicos, e Outros Maleficios. Lisboa: Na Off. da Viuv. de Lino da Silva Godinho, 1821, p. 34).

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V.15. Senhoras Malhadas: «Querem moral sem freio, por isso se metem a

políticas»

Padre freirático

291

, Macedo manifesta na sua obra a misoginia de que deu provas

na sua vida pessoal

292

. A mulher é o outro e, no caso das mulheres liberais – as

«Senhoras Malhadas» – a palavra é desbragada: «A reverencia devida ao sexo, isso não

he para mim. O sexo tem-se feito muito ridiculo, e muito desprezível» (Besta, Nº 12, p.

9).

Prometeu, cumpriu:

Para darem á lingua não erão precisos remedios tópicos […]. Invadio-as a mania politica, puxárão-se os registos todos aos órgãos fallatorios […]; ninguem mais dormio onde ellas estão, nem mesmo na visinhança. Os maridos fogem, os filhos abalão, os moços despedem-se, as criadas móscão, e a desenteria lingueira não acaba, he chronica, não acabará senão quando ellas acabarem (Ibidem, p. 9-10).

A propósito de uma brincadeira entre duas liberais, que enfeitaram um galo com

fitas constitucionais nas asas, para simbolizar a liberdade, atando-lhe as patas com uma

fita realista, para lembrar o despotismo, Macedo desabafa:

Ah! o meu bordão ainda se não quebrou; e se eu tivesse relação com esta Malhada, eu lhe prometto que, assentando-lho pela omoplata, fizera com que outro Gallo lhe cantara! Dizem ellas que o Systema Representativo lhes dá mais liberdade na sua condição. E que lhes faltava antes deste Systema celestial? Já então andavão meias nuas pela rua, talvez queirão andar de todo! (Ibidem, p. 11).

No número seguinte, a conversa é mais crua, apontando para a sexualização de

uma suposta – aos olhos de Macedo – intervenção política:

Vós sabeis muito bem que a vossa influencia não vem da Politica. […] Que influencia teria no Mundo hum focinho com mais pregas, que os dous roquetes de hum Conego, huns olhos mais encovados que dous Hermitães em duas covas, hum queixo, ou mandibula inferior, que tremesse mais que hum Clerigo mandado para Rilhafóles, com dous timbales do Inferno […] feitos dous figos passados (Besta, Nº 13, p. 6-7).

Daí a equiparar política e imoralidade vai um passo, rapidamente dado pelo

autor:

A Malhadice tem para vós outro attractivo. O vosso Imperio no Mundo […] he hum Astro, que faz a sua revolução á róda do Sol em vinte cinco até trinta cinco annos (muito lhe alargo a orbita!) Vós quereis as maximas da nova Politica, porque em si, e comsigo trazem as maximas de huma nova moral… Desterrão o pudor do sexo, convertem a natural timidez em desenvoltura, o recolhimento em impudencia, a sujeição em licença […]. Abrem o passo a hum luxo immoderado, ou sem limites, que deixando no vestido apenas

291 OLAVO – Op. cit., pp. 85-152; FERREIRA, A. M. – Op. cit., p. 227-239. 292 ANDRADE – Op. cit. Vol. I, p. 55-57.

132 coberta a metade do corpo, deixa inteiramente núa, e vasia a bolça dos Maridos. Facilita-lhes a frequencia daquellas escandalosas orgias nocturnas, em que, o menos que se perde he o dinheiro ao jogo; não me atrevo a dizer qual seja o mais que alli se perde […] Seja qual fôr a fórma do Governo, a Malhadice destas Malhadas corre de outra fonte, e he a que eu aponto; querem moral sem freio, por isso se metem a Politicas sem surrilfra (Ibidem, p. 7).

Em suma, «fôrão para a malhadice porque tinhão vontade de dar á lingua.

Badalar, badalar, e mais badalar» (Besta, Nº 16, p.16). Como resolver o problema das

«Malhadas» que «quizerem fallar em Politica? Deita-se-lhes pimentão na lingua, que

logo se calão» (Besta, Nº 21, p. 12).

O nível da linguagem consegue descer ainda mais: «não vem hoje as Malhadas

para o degoladouro. Hoje era o dia. O ar está pardo, a trovoada era infinita; mas peior,

porque com a demora cresce! Ah Cadellas! Não tarda o dia do pagamento» (Besta, Nº

21, p. 16).

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 149-153)