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José Agostinho de Macedo e os limites do humor

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 176-180)

CAPÍTULO V. HUMOR, INSULTO E POLÍTICA NOS PERIÓDICOS DE JOSÉ

V. 25 «Doentissimo, decrepito e moribundo»: vitimização e auto-promoção

V.27. José Agostinho de Macedo e os limites do humor

A leitura dos periódicos A Tripa Virada (e do respectivo complemento Tripa por

huma vez), A Besta Esfolada e O Desengano, focada na análise da componente

humorística neles presente, é uma viagem pela fronteira entre o sério e o risível no

decurso da qual os excessos de linguagem revelam uma amoralidade

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que permite ao

riso funcionar de forma eficaz ao serviço de uma estratégia política determinada.

A busca do efeito cómico é instrumental em Macedo. A «sua apparente

futilidade: nem he fútil a obra em si como obra, nem o pode ser por seu relevantissimo

objecto […] que apanhe todo o ridiculo em qualquer objecto, que se queira

redicularisar» (Besta, Nº 12, p. 12). Trata-se de um recurso que utiliza conscientemente

para fazer passar a sua mensagem, não hesitando em afirmar – «no vehiculo do

divertimento com o gracejo vai o util, e muito util conhecimento da verdade, já que a

condição humana pede que esta mesma verdade, para ser gostada, seja adubada. Sêccas

dissertações são para poucos; e se convencem pouco divertem menos» (Besta, Nº 21, p.

9) – e repetir essa escolha: «E devo eu com outra arma, que não seja a do ridiculo,

combater tantas parvoices, infamias, e até atrocidades? Esta será a arma, o Povo

entenderá o que se lhe diz» (Besta, Nº 5, p. 13). A insistência – «combato com as armas

do ridículo» (Besta, Nº inédito [27], p. 3) – mostra a determinação de usar o riso como

325 Ver OLAVO – Op. cit., p. 83 e FERREIRA, A. M. – Op. cit., p. 301-306.

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mais do que uma mera manifestação de desaprovação, uma verdadeira «disciplina do

embaraço»

327

.

A comicidade que disciplina, que reprime, é a contribuição de Macedo – «Grão

Major da Brigada Carcundal»

328

– para a construção da opinião pública, expressão que

usa por duas vezes em Tripa por Huma Vez, sem perder, no entanto, alguma capacidade

de auto-irrisão: «[…] foi a impazinação das promessas de escrever, de dirigir a opinião

publica, de advogar a cauza, persuadindo-se que o Povo hiria atraz de mim […] ainda

mais, que atraz do Senhor dos Passos. Faltava ainda mais este ridiculo a tantos

ridiculos!» (Tripa por huma vez, p. 66)

329

. Mas, ao mesmo tempo, deixa claro que o

acesso ao espaço público, a expressão pública da opinião não para todos, não é para o

outro: «Estejão calados!» (Besta, Nº 12, p. 9).

O riso de Macedo prefere o sarcasmo e a sátira à ironia

330

. É um riso liberticida,

«anti-filosófico», chocarreiro, tantas vezes cruel, lembrando a forma como, segundo

Deleuze, Foucault encarava os mecanismos de vigilância e repressão: «até rebentar de

rir»

331

.

José Agostinho explora a fórmula até aos limites e para lá dos limites – da

decência, da crueldade, da obscenidade. Os livros e os periódicos são para queimar, os

ossos são para quebrar com a ajuda do cacete, os corpos para enforcar. A tentação

fescenina chega a sujar a lei fundamental: «os punhados de papeis que nos vêdes nas

mãos são as folhas da Constituição; se faltar alguma, he porque já cá servio em caso de

necessidade» (Desengano, Nº 11, p. 8).

O outro, o adversário, o que é diferente (pedreiro livre, malhado, mulher,

brasileiro) é objecto de uma desumanização, por vezes de uma diabolização literal –

«verdadeiros Demonios com apparencia humana» (Desengano, Nº 13, p. 2).

A consequência é uma recusa absoluta da alteridade, da possibilidade de diálogo,

sequer de coexistência entre «nós» (homens de bem, portugueses honrados, realistas,

327 BILLIG – Op. cit., p. 235. 328 A Besta Esfolada, Nº 21, p. 3.

329 A primeira referência foi a propósito de manifestações populares pró-liberais que, segundo Macedo,

seriam compradas: «[…] Isto se disse em muito silencio, porque não tinha apparecido, por estar occupado na Taberna, o homem que trazia o saco com os patacões de dois vintens para dar aos rapazes, que davão os vivas segundo o costume, chamando a estes vivas a opinião publica em que descançava o systema que felizmente nos regia» (Tripa por huma vez, p. 9).

330 ANDRADE – Op. cit. Vol. I, p. 141; JANKÉLÉVITCH – Op. cit., p. 9-37.

331 «Divina comédia das punições: é um direito elementar ficar-se fascinado até rebentar de rir diante de

tantas invenções perversas, de tantos discursos cínicos, de tantos horrores minuciosos. Desde os aparelhos anti-masturbatórios para as crianças até aos mecanismos das prisões para os adultos, vai-se desenrolando uma cadeia que suscita risos inopinados que nem a vergonha, nem o sofrimento, nem a morte conseguiram calar» (DELEUZE, Gilles – Foucault. Lisboa: Vega, 1987, p. 45.

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apostólicos, corcundas, veneradores de S. Miguel, seguidores de D. Miguel) e o outro.

Mesmo quando o outro era dos dele, como o seu, aliás benévolo, censor privativo, Frei

Henrique de Jesus Maria, a quem chamava, pelas costas, Frei Velhaco de S. Patife.

Macedo gostava de criar cenários em que punha na boca dos adversários as

palavras que gostaria de ouvir: «[…] assim como nós quizemos esmagar o Infame, o

Forno do Tijollo nos esmagará a nós»

332

(A Tripa Virada, Nº 1, p. 10). Sempre a

procurar fazer jus ao alto conceito com que se auto-avaliava: «o Padre do Forno do

Tijolo […] he a lingua mais livre de papas, que ainda até agora para badalar se tem

mexido na boca humana» (Besta, 23, p. 3). Não era. O humor foi, também, um

instrumento do seu oportunismo. Apesar de tudo, tinha amigos que lhe apreciavam o

estilo. Como o editor Joaquim José Pedro Lopes, que lhe dedicou um soneto «Por

occasião da sentida morte do Padre J. A. de Macedo», onde se lê uma referência

expressa ao grato recreio, aos poemas jocosos à graça da erudição, com que fustigava

«charlatães e impostores»

333

.

Macedo era incapaz de reconhecer o outro e de dialogar. Odiava a liberdade de

expressão do pensamento e a própria liberdade de pensamento. Tinha uma profunda

aversão à mudança política e social. A sua visão do mundo era auto-centrada ao ponto

de apelar à eliminação física dos adversários. Ao mesmo tempo, as suas formas de

pensar e agir estavam sustentadas por uma erudição, um conhecimento e uma cultura

sólidos, servidos por um talento indesmentível, capaz de utilizar recursos literários entre

os quais avultavam os jocosos, com destaque para a sátira, o sarcasmo e a troça. Usou-

os a todos com eficácia, ao serviço da violência e do extermínio, do obscurantismo, da

misoginia e do racismo. A sua obra, e particularmente os periódicos aqui estudados,

desafiam uma reflexão permanente sobre o «imoralismo cómico», a amoralidade e os

limites do humor.

332 «A canalha que lhe é contemporânea (e a canalhice é a moeda corrente do seu tempo) é, na sua

esmagadora maioria, anónima; mas Macedo pôs assinatura em (quase) todas as patifarias que cometeu […] Macedo dá corpo à figura de l’Infâme, tal como o zurziu Voltaire: uma mistura sulfurosa de preconceito, injustiça, fanatismo e malevolência» (FERREIRA, A. M.– Op. cit., p. 14-15).

333 «Impoz da Patria aos Inimigos freio,/ Illusos Cidadãos desenganando;/ Charlatães, e Impostores

fustigando,/ Deo proficuas lições; grato recreio:// Creou Poemas immortaes na mente,/ Filosoficos, Epicos, Jocosos,/ Que encantão, que arrebatão douta gente;// Possuio os thesouros mais copiosos/ Da erudição, de graça huma torrente,/ Macedo, e a todos nos deixou saudosos» (Desengano, Nº 27, última página, sem numeração).

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CAPÍTULO VI. O HUMOR NA CONSTRUÇÃO DA ESFERA

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 176-180)