CAPÍTULO V. HUMOR, INSULTO E POLÍTICA NOS PERIÓDICOS DE JOSÉ
V. 25 «Doentissimo, decrepito e moribundo»: vitimização e auto-promoção
V.27. José Agostinho de Macedo e os limites do humor
A leitura dos periódicos A Tripa Virada (e do respectivo complemento Tripa por
huma vez), A Besta Esfolada e O Desengano, focada na análise da componente
humorística neles presente, é uma viagem pela fronteira entre o sério e o risível no
decurso da qual os excessos de linguagem revelam uma amoralidade
326que permite ao
riso funcionar de forma eficaz ao serviço de uma estratégia política determinada.
A busca do efeito cómico é instrumental em Macedo. A «sua apparente
futilidade: nem he fútil a obra em si como obra, nem o pode ser por seu relevantissimo
objecto […] que apanhe todo o ridiculo em qualquer objecto, que se queira
redicularisar» (Besta, Nº 12, p. 12). Trata-se de um recurso que utiliza conscientemente
para fazer passar a sua mensagem, não hesitando em afirmar – «no vehiculo do
divertimento com o gracejo vai o util, e muito util conhecimento da verdade, já que a
condição humana pede que esta mesma verdade, para ser gostada, seja adubada. Sêccas
dissertações são para poucos; e se convencem pouco divertem menos» (Besta, Nº 21, p.
9) – e repetir essa escolha: «E devo eu com outra arma, que não seja a do ridiculo,
combater tantas parvoices, infamias, e até atrocidades? Esta será a arma, o Povo
entenderá o que se lhe diz» (Besta, Nº 5, p. 13). A insistência – «combato com as armas
do ridículo» (Besta, Nº inédito [27], p. 3) – mostra a determinação de usar o riso como
325 Ver OLAVO – Op. cit., p. 83 e FERREIRA, A. M. – Op. cit., p. 301-306.
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mais do que uma mera manifestação de desaprovação, uma verdadeira «disciplina do
embaraço»
327.
A comicidade que disciplina, que reprime, é a contribuição de Macedo – «Grão
Major da Brigada Carcundal»
328– para a construção da opinião pública, expressão que
usa por duas vezes em Tripa por Huma Vez, sem perder, no entanto, alguma capacidade
de auto-irrisão: «[…] foi a impazinação das promessas de escrever, de dirigir a opinião
publica, de advogar a cauza, persuadindo-se que o Povo hiria atraz de mim […] ainda
mais, que atraz do Senhor dos Passos. Faltava ainda mais este ridiculo a tantos
ridiculos!» (Tripa por huma vez, p. 66)
329. Mas, ao mesmo tempo, deixa claro que o
acesso ao espaço público, a expressão pública da opinião não para todos, não é para o
outro: «Estejão calados!» (Besta, Nº 12, p. 9).
O riso de Macedo prefere o sarcasmo e a sátira à ironia
330. É um riso liberticida,
«anti-filosófico», chocarreiro, tantas vezes cruel, lembrando a forma como, segundo
Deleuze, Foucault encarava os mecanismos de vigilância e repressão: «até rebentar de
rir»
331.
José Agostinho explora a fórmula até aos limites e para lá dos limites – da
decência, da crueldade, da obscenidade. Os livros e os periódicos são para queimar, os
ossos são para quebrar com a ajuda do cacete, os corpos para enforcar. A tentação
fescenina chega a sujar a lei fundamental: «os punhados de papeis que nos vêdes nas
mãos são as folhas da Constituição; se faltar alguma, he porque já cá servio em caso de
necessidade» (Desengano, Nº 11, p. 8).
O outro, o adversário, o que é diferente (pedreiro livre, malhado, mulher,
brasileiro) é objecto de uma desumanização, por vezes de uma diabolização literal –
«verdadeiros Demonios com apparencia humana» (Desengano, Nº 13, p. 2).
A consequência é uma recusa absoluta da alteridade, da possibilidade de diálogo,
sequer de coexistência entre «nós» (homens de bem, portugueses honrados, realistas,
327 BILLIG – Op. cit., p. 235. 328 A Besta Esfolada, Nº 21, p. 3.
329 A primeira referência foi a propósito de manifestações populares pró-liberais que, segundo Macedo,
seriam compradas: «[…] Isto se disse em muito silencio, porque não tinha apparecido, por estar occupado na Taberna, o homem que trazia o saco com os patacões de dois vintens para dar aos rapazes, que davão os vivas segundo o costume, chamando a estes vivas a opinião publica em que descançava o systema que felizmente nos regia» (Tripa por huma vez, p. 9).
330 ANDRADE – Op. cit. Vol. I, p. 141; JANKÉLÉVITCH – Op. cit., p. 9-37.
331 «Divina comédia das punições: é um direito elementar ficar-se fascinado até rebentar de rir diante de
tantas invenções perversas, de tantos discursos cínicos, de tantos horrores minuciosos. Desde os aparelhos anti-masturbatórios para as crianças até aos mecanismos das prisões para os adultos, vai-se desenrolando uma cadeia que suscita risos inopinados que nem a vergonha, nem o sofrimento, nem a morte conseguiram calar» (DELEUZE, Gilles – Foucault. Lisboa: Vega, 1987, p. 45.
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apostólicos, corcundas, veneradores de S. Miguel, seguidores de D. Miguel) e o outro.
Mesmo quando o outro era dos dele, como o seu, aliás benévolo, censor privativo, Frei
Henrique de Jesus Maria, a quem chamava, pelas costas, Frei Velhaco de S. Patife.
Macedo gostava de criar cenários em que punha na boca dos adversários as
palavras que gostaria de ouvir: «[…] assim como nós quizemos esmagar o Infame, o
Forno do Tijollo nos esmagará a nós»
332(A Tripa Virada, Nº 1, p. 10). Sempre a
procurar fazer jus ao alto conceito com que se auto-avaliava: «o Padre do Forno do
Tijolo […] he a lingua mais livre de papas, que ainda até agora para badalar se tem
mexido na boca humana» (Besta, 23, p. 3). Não era. O humor foi, também, um
instrumento do seu oportunismo. Apesar de tudo, tinha amigos que lhe apreciavam o
estilo. Como o editor Joaquim José Pedro Lopes, que lhe dedicou um soneto «Por
occasião da sentida morte do Padre J. A. de Macedo», onde se lê uma referência
expressa ao grato recreio, aos poemas jocosos à graça da erudição, com que fustigava
«charlatães e impostores»
333.
Macedo era incapaz de reconhecer o outro e de dialogar. Odiava a liberdade de
expressão do pensamento e a própria liberdade de pensamento. Tinha uma profunda
aversão à mudança política e social. A sua visão do mundo era auto-centrada ao ponto
de apelar à eliminação física dos adversários. Ao mesmo tempo, as suas formas de
pensar e agir estavam sustentadas por uma erudição, um conhecimento e uma cultura
sólidos, servidos por um talento indesmentível, capaz de utilizar recursos literários entre
os quais avultavam os jocosos, com destaque para a sátira, o sarcasmo e a troça. Usou-
os a todos com eficácia, ao serviço da violência e do extermínio, do obscurantismo, da
misoginia e do racismo. A sua obra, e particularmente os periódicos aqui estudados,
desafiam uma reflexão permanente sobre o «imoralismo cómico», a amoralidade e os
limites do humor.
332 «A canalha que lhe é contemporânea (e a canalhice é a moeda corrente do seu tempo) é, na sua
esmagadora maioria, anónima; mas Macedo pôs assinatura em (quase) todas as patifarias que cometeu […] Macedo dá corpo à figura de l’Infâme, tal como o zurziu Voltaire: uma mistura sulfurosa de preconceito, injustiça, fanatismo e malevolência» (FERREIRA, A. M.– Op. cit., p. 14-15).
333 «Impoz da Patria aos Inimigos freio,/ Illusos Cidadãos desenganando;/ Charlatães, e Impostores
fustigando,/ Deo proficuas lições; grato recreio:// Creou Poemas immortaes na mente,/ Filosoficos, Epicos, Jocosos,/ Que encantão, que arrebatão douta gente;// Possuio os thesouros mais copiosos/ Da erudição, de graça huma torrente,/ Macedo, e a todos nos deixou saudosos» (Desengano, Nº 27, última página, sem numeração).
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