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Recepção, circulação e apropriação

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 174-176)

CAPÍTULO V. HUMOR, INSULTO E POLÍTICA NOS PERIÓDICOS DE JOSÉ

V. 25 «Doentissimo, decrepito e moribundo»: vitimização e auto-promoção

V.26. Recepção, circulação e apropriação

A recepção dos periódicos «de combate» esteve à altura de outras obras de José

Agostinho de Macedo. Um contemporâneo que se cruzasse com ele na calçada do Forno

do Tijolo ou, anos depois, nos cada vez mais raros passeios que dava em Pedrouços, não

diria que aquele padre «despenteado, de batina desabotoada, mal barbeado, pingado de

rapé»

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auferia pela sua obra literária rendimentos consideráveis. A Besta Esfolada foi

um êxito comercial: tinha uma tiragem de 4000 exemplares por edição

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– «número

astronómico para o tempo»

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–, o que, aplicando o mesmo índice de leitura usado por

Tengarrinha para as Cartas de J. A. M. a seu Amigo J. J. P. L., permite estimar uma

audiência superior a 20 mil leitores por número

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. O impacto político foi, todavia,

316 Ver ANDRADE – Op. cit. Vol. I, p. 89-99 e FERREIRA, A. M. – Op. cit., p. 179-192. 317 OLAVO – Op. cit., p. 82.

318 SILVA, I. – Diccionario Bibliographico. Vol. IV, p. 197. 319 FERREIRA, A. M.– Op. cit., p. 298.

320 TENGARRINHA – Op. cit., 2013, p. 430. Na última página da 32ª carta ao seu editor Joaquim José

Pedro Lopes, Macedo inclui a seguinte nota: «A estas 32 Cartas, que vem a ter humas 384 paginas, e formão hum arrazoado volume, se pode ajuntar a Voz da Justiça, do mesmo A., em defeza de algumas das mesmas Cartas. A Collecção das 32 Cartas custa 1900 rs., e esta ultima custa 60 rs., posto que seja maior» («Carta 32ª e Ultima». In Cartas de José Agostinho de Macedo a seu Amigo J. J. P. L. [Joaquim José Pedro Lopes]. Lisboa: Impressão Régia, 1827, p. 16). Os valores indicados correspondem, respectivamente, a 43,89 euros e 1,38 euros, aplicado o coeficiente de desvalorização da moeda em vigor (4631,11). Portaria nº 316/2016 de 14 de dezembro – Diário da República, [Em

linha]. 1.ª série, N.º 238. [Consult. 24.04.2017]. Disponível em

https://dre.pt/application/conteudo/105367399. Sobre a mesma obra adiantou Inocêncio: «D'estas cartas se tiravam em principio 2:000 exemplares. A 1ª reimprimiu-se por tres vezes, tirando-se 500 de cada vez. A 2ª tambem se reimprimiu, e se tiraram depois mais 1.000. Depois continuaram a extrahir- se das seguintes até ao fim 3:500 exemplares. Ouvi a pessoas bem informadas que o editor Lopes retribuíra a J. Agostinho estas cartas a razão de quatro peças cada uma, quantia então equivalente a 30:000 réis [693 euros]. Remuneração bem mesquinha, comparada com os avultadissimos lucros que elle editor recolhia da empreza; mas que ainda assim produziu ao padre um capital de 960:000 réis [22.175,88 euros]. Dizia elle ser a primeira vez que via tanto dinheiro junto!» (SILVA, I – Diccionario, p. 197).

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superior, pelas polémicas suscitadas

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e pelo papel desempenhado nas lutas intestinas

entre as diferentes facções miguelistas

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.

Quanto a O Desengano, editado por Joaquim José Pedro Lopes, a tiragem dos

primeiros números (2500 exemplares) não chegou para as encomendas. De acordo com

Inocêncio, alguns números foram reimpressos, aumentando-se a tiragem dos seguintes

para 3500, reforçada ainda mais no último (nº 27), que teve uma impressão de 4000

exemplares

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.

A estes valores é preciso acrescentar ainda uma outra fonte de rendimento

relacionada com o âmbito e influência da recepção, circulação e apropriação d’A Besta

Esfolada e d’O Desengano. Trata-se, ao mesmo tempo, da confirmação da venalidade

de Macedo e do desmentido da auto-proclamada independência da sua pena

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: a

intervenção na polémica atribuição do contrato do tabaco, o mais lucrativo e apetecido

monopólio arrematado pela coroa a particulares. José Agostinho deixou-se arregimentar

pelos interesses em confronto (José Ferreira Pinto Basto e João Paulo Cordeiro),

atacando ou elogiando a capacidade económica e a generosidade do apoio político à

causa realista por parte de quem lhe pagava.

A denúnciade um

[…] Corpo Commercial, que impa de farto […] e se apparece alguma especulação, por exemplo, de huma arrematação, não de carnes verdes, mas de cousas seccas, se depois de se lhes dar o ramo, […] se he preciso, que appareção alguns vintens, como em seus cofres só existe huma cousa que os Filosofos negão, que he o Vácuo, que em todos os Cofres se acha, depois que a Besta escoucêa, ei-los pegados ás paredes, mettendo agulhas por alfinetes; como não tem a quem saccar, e sobre quem saccar, saccão, e tornão a saccar sobre si mesmos com hum pequenino interesse de três e meio por cento ao mez […] se as nevoas são grossas, mais palpaveis são as MALHAS. He onde se encontra maior malhadaria: nem as desgraças proprias os desenganão; nunca houve hum tão grande exercito de falidos, e nunca hum mais teimoso diluvio de calotes! (Besta, Nº 11, pp. 14-15).

Dá lugar a um texto inesperadamente apologético:

[…] não pode o Ceo deixar de abençoar os progressos de hum Contracto o mais vantajoso para o Estado, vendo que d’antemão assim se empregão lucros não recebidos, e do que pode ser contingente fazer-se já hum

321 TENGARRINHA – Op. cit., pp. 430 e 438; 322 Ver ANDRADE – Op. cit., vol. I, p. 108 323 SILVA, I. – Op. cit., p. 198.

324 «Tudo o que tinha escrito, e destinava escrever, nascia de hum movimento espontaneo de meu

coração; nem o interesse, nem o espirito de partido, nem a auctoridade, nem a cobarde condescendencia, nem a vil assalariação me sustentarão, ou dirigirão nunca a penna nestes dedos» (Tripa por huma Vez, p. 3-4); «Eu tenho sessenta e quatro annos de idade, e quatro mil pedras na uretra, pouco me resta de vida tão dolorosa; e como não tenho de que fazer testamento, deixo verdades, e muito escarnadas» (Besta, Nº 27, p. 10).

155 beneficio tão certo, tão fixo, e tão indisputável. […] A primeira qualidade, que nelles querem, e nelles buscão, he a de huma acrisolada adhesão á Realeza: nenhum suspeito de Liberalismo he admitido (Besta, Nº 21, p. 16).

A alavanca da mudança foi o pagamento de uma avença anual de 300 mil réis

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(6.929,96 euros, depois de aplicado o coeficiente de desvalorização) – ainda assim, com

um assomo de ironia:

O Contrato do Tabaco he, considerado politica, e economicamente, a Chave de hum Cofre nunca exhausto depositada nas mãos do Governo, onde se encontra o prompto recurso de urgencias; e nas mãos de huma revolução, he hum manancial das suas escandalosas rapinas. Oh! que este Contrato exclusivo tem engrossado tantas casas. Sim, Senhores, e estas enchem tantas mil barrigas! Inda bem que algumas invadio a mania da Arquitectura para levantarem Porticos Gregos, com as Cornijas vindas das ruinas de Palmyra, e Bronzes da abrazada Corintho! Tanto melhor! Isto não se faz com assopros, para isto empregão-se braços, e os sucos gastricos de tantos estomagos se tem posto em movimento para tantas digestões! (Desengano, Nº 11, p. 10- 11).

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 174-176)