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Os alvos

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 58-74)

CAPÍTULO I. À DESCOBERTA DO OUTRO NO ALMOCREVE DE PETAS

I.5. Os alvos

É nos alvos do humor do Almocreve que se torna possível identificar todos

aqueles que constituem o “outro”. Tipos socio-profissionais (o taful «escravo da moda»,

o criado, a criada, o amo, a senhora, o avarento, o que aspira a subir na escala social, o

pobre, o ocioso…); culturais (o estudante, o moço do poeta, o poeta falhado, a rústica, o

pseudo-erudito «taful da língua» que usa frases incompreensíveis a partir de sinónimos

135 A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, de autor anónimo, é recorrente

nas listas de livros mais vendidos em Portugal e também enviados para o Brasil (ABREU, Márcia – «Livros ao mar – circulação de obras de Belas Letras entre Lisboa e Rio de Janeiro ao tempo da transferência da corte para o Brasil». Tempo. [Em linha]. Vol. 12, nº 24, 2008, p. 84. [Consult. 31.10.2017]. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n24/a05v1224.pdf).

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inapropriados e retirados do contexto); étnicos (o «preto», a «preta velha», a «criada

preta» e até uma «preta cativa»); de género (a referência à mulher é quase sempre

pretexto para assumir posições misóginas; o transgressor da norma incorre numa

violenta diatribe); etários (o velho, a velha, o jovem tolo); o guloso; o estrangeiro; o

portador de deficiência física (todo aquele que foi «marcado pela natureza»: anão,

calvo, coxo, corcunda, com seis dedos) – todos são objeto de irrisão.

O alvo favorito é o taful. Tal como casquilho, peralta ou peralvilho, o termo era

comum, na época, para designar, em tom pejorativo, os seguidores da moda e do novo.

Os equivalentes femininos são tafula, adela ou sécia. A secção «Maximas do Velho de

Romulares»

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, habituando o leitor a sentenças moralistas, por vezes em verso, usa uma

expressão que atravessou os séculos: «Mandas fazer hum vestido/ Para o corpo te

cubrir,/ Porém, por desvanecido,/ Tafulão e pouco esperto,/ És tão escravo da moda,/

Que andas sempre mal cuberto» (XC, p. 6).

A visão satírica do taful surge também associada a quem deseja dar-se ares de

ter subido na vida e conhecer os protocolos mundanos:

Largo da Esperança 23 de Abril. Haverá seis mezes que hum rapaz de dezoito annos bem puxados acabou de preencher o tempo dos seus annos, que dava a hum Estrangeiro, que lhe ensinou a manufacturar luvas para os pés das Senhoras, cujo rapaz sahio tão perito, que deixou o Estrangeiro a perder de vista, andando por isto nas palmas de todas as suas freguezas […] Principiou a tufar como peru, e até arrastando a aza, com grandes desejos de ser hum completo Tafulão […] Vendo entrar e sahir os Chefes da peraltice, gostando do feitio do vestido á Paqueta, azul com golla encarnada, ou amarello com golla verde, fingindo os que trazem os Agentes das Nações Estrangeiras […] á noite vai pelas famosas Casas do Café, aonde só a barafunda de pedir ponxe, filipina, capilé, e licores fórma hum alarido, que confunde o mais habil Caixeiro; e decorando os nomes das bebidas para as pedir com aquella arrogância, e liberdade com que qualquer Taful, fazendo huma carinha de anojado entra, pede, bebe, e satisfaz o ambicioso bandulho (CI, p.2).

A sátira tem quase sempre uma moral: o taful acaba por ser castigado,

denunciando a sua origem social (popular) e o desconforto sofrido ao tentar integrar-se

na vida da «sociedade» cujas regras mostra, com estrondo, desconhecer.

[…] ultimamente deo comsigo na Opera do Salitre, onde fez pateada com a mais Padaria, e á voz de dá cápo dizia ele muito presumido dá cabo, dá cabo: concluida a primeira scena vio que sahia muita gente, sahio elle tambem porque não queria ficar atraz; e como estava afflicto com o calor, e com o pezo da casaca, foi como hum raio á loja de bebidas fronteira a tempo que hum alli pedio café com leite; e elle para o imitar pedio limonada com leite; rirão-se muito os que o ouvirão, e o bom do caixeiro lhe perguntou

136 Corruptela de Remolares. A rua e travessa dos Remolares, em Lisboa, ainda existem com esse nome; a

39 como queria aquelle ingrediente? Ao que elle respondeo, que queria o leite quente, e a limonada fria, mas tudo junto: assim se lhe fez, bebeo o rapaz, e estantaneamente se lhe poz o ventre em huma desordem, entrando logo a fazer versos, huns curtos, e outros compridos, deo a Opera por acabada, e a bom salvamento dizem que escapou de morrer de bexigas, por ser bebida muito boa para sarampo (CI, p. 2-3).

Seguir a moda pode ser motivo de equívocos embaraçosos. Note-se a

preocupação em registar com rigor a localização dos episódios no tempo e no espaço,

mesmo tratando-se de «petas»:

Rua dos Confeiteiros 3 de Dezembro. Neste instante nos chega á noticia hum caso succedido no dia 31 de Agosto, dia memoravel, porque foi aquelle em que derão fim os caniculares do presente anno […] era lusque fusque, já tinhão dado Ave-marias na Sé havia cousa de hum quarto, e a lua parecia huma talhada de melancia sem miolo, por signal fazia hum luar tão reles, que se não enxergava quasi nada […] Quando o grande Semeão de Bulhões, homem Camponio […] tendo vindo pela primeira vez a Lisboa […] ao voltar de huma esquina encontrou huma Tafula, vestida toda de branco, com estes vestidos que começão com a cintura ao pescoço, com huma barretina na cabeça, feita de palhinha, que parecia ametade de hum melão com a pevide fóra, e justamente o nosso Semeão de Bulhões, pois que nunca tal tinha visto, ajuizou, que aquella Senhora era doida, e que vinha em camisa pela rua fóra; e como se persuadisse disto, no mesmo momento em que a vio, pro honestitate, tira o gabão dos hombros e bota-lho por cima. A Senhora, que inopinadamente vê cahir sobre si aquella montanha de çaragoça, e baeta, igualmente assentou, que aquelle homem era doido, e pôz-se a gritar segurem neste doido, agarrem neste doido: ele para outro lado a bradar, agarrem nesta doida: segurem nesta doida: foi-se juntando gente de roda a ver a scena, até que a prudencia de alguns circunstantes fez serenar a tempestade, e cada hum foi para sua parte; ella protestando de nunca mais se pôr em corpo na rua, vestida de branco, e elle jurando de nunca se espantar do que visse nesta lôba (CXXXIV, p. 5-6).

Os mal-entendidos provocados pelos excessos da moda – neste caso de

penteados – chegavam a causar desavenças familiares.

Rua de São de Paulo 22 de Julho. Aos homens de senso não faz expectação os extravagantes, e exquisitos penteados das Senhoras Modistas […] Ora contarei o que succedeo de próximo a certa Senhora a respeito do tal penteado de geringonça: Mandou chamar Monsieur Serveté, mestre affamado de perucas, para a pentear no ultimo ponto da moda, pois havia ir aos annos de sua Cunhada […] com caracóes soltos: Veio o mestre, pôz-se á chirinola, e disse-lhe: Senhora, jã se não usão pós, o chefe da moda he ir o cabello como azeviche; aqui trago hum vidrinho de oleo de nozes, que he com que o cabello póde ir negro, e lustroso. Ficou a Senhora saltando de contente, fez-lhe o mestre toda a cabeça em caracóes do tamanho de carambolas de jogo de bilhar, com muita sinalefa pelo meio, e o cabello escorrendo em óleo […] no fim da festa tanto o marido, como os mais milords, que a segurárão parecião huns azeiteiros; porque aonde a Senhora arrumou a cabeça cheia de oleo de nozes, deixava os vestidos huma miseria (LXVII, 1-3).

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Por vezes a história tem um final moralizador: o pai e marido, que acreditara que

os cabelos curtos da mulher e das filhas era resultado de doença grave, acaba por impor

«reforma» na casa, transformando as escravas da moda em modelo das «antigas e

modestas portuguesas»:

Poiaes de S. Bento 29 de Novembro. Chegámos finalmente á época da maior parte dos homens casados se fazerem doidos; não bastava aos tristes o flagelo de andarem grangeando os vinténs […] se não também vir inquietallos a multidão de modas das desvanecidas mulheres! [...] chegou o pobre homem aturdido […] Vossês por compaixão me querem occultar o que cá se passou na minha ausencia, mas eu o infiro pelo que vejo, paciencia, são molestias que Deos dá, devemos ter toda a conformidade; já sei que saltárão as [febres] malinas na minha casa, e corrêrão por todas vossês, que se virão obrigadas a cortar os seus ricos cabellos, e a botar cabelleiras, inda que mo negassem as suas cabeças o estão mostrando, mas humas coifas fazião o mesmo. Porém que transporte foi o deste homem, quando a mulher lhe disse, que por causa da moda he que tinhão cortado o cabello, e usado de crespa cabelleira! […] Consta-nos […] que ha tal reforma nesta casa, que já Mãi, e filhas são o fiel modelo das antigas, e modestas Portuguezas, á custa do Pai servir naquelles primeiros dias de Guardaportão da sua casa, a despedir os Tafues franxinotes, que hião conviver com as prendas das Meninas, todas as noites de Mandolins, e Guitarras (CXXXII, p. 2-3).

Assim como «reforma» os costumes da mulher e das filhas, o pai «à antiga»

castiga o filho que persiste em seguir modas estrangeiras que trazem a desordem à

ordem estabelecida:

Chiado 25 de Novembro. A soberba do homem fez nos passados seculos confundir em Babylonia a materna linguagem dos nossos primeiros Pais; e a loucura do homem tem feito nos presentes séculos confundir os trages dos nossos primeiros Povoadores. Erão algum dia os Portuguezes conhecidos á legoa em todas as partes do Mundo por onde viajavão, ou por onde a ventura os alongava: Hoje em dia no centro de Lisboa os vemos confundidos huns com os outros, pela sua perspectiva, affectando meios Portuguezes, meios Alemãos, meios Inglezes, meios Polacos, meios Ungaros, meios Holandezes, meios Suiços, e meios Suecos, e com muita brevidade os espero vêr, no trage, meios Turcos, meios Mahometanos; pois que tão junto de nós andão os modelos; huns com botas, e çapatos de unha de Grão-besta, outros com os calções, que fazem lembrar o ditado, Calçotes mana calçotas, e tudo o mais que serve de compostura ao homem, desorganisado, e fora dos eixos, chapéo, penteado, gravata, casaca, sobrecasaca, e mais huma albardinha, vestia, e calção, meias, e botinhas, tudo sem ordem, tudo a fogir, que nem para se usar dão espera, desafiando de propósito o luxo, para se arruinarem asi, e a todos aquelles, que principião a abrir os olhos da razão, como succedeo, ha oito dias neste Bairro a hum filho de hum Negociante rico, a quem a loucura fez comer mal pelo seu dinheiro. Porque passando o Pai pelo desgosto de lhe dizerem os Amigos, que seu filho já não merecia a pena de lhe chamarem Portuguez, mas sim Arlequim, fez este Velho huma seria reflexão; foi para casa, e como pai honrado chamou o filho, e tudo que era do seu vestuário, cortou, rasgou, esbandalhou, e fez em fanicos. E não satisfeito, pegou em hum páo, e malhou no filho, como quem malha em senteio verde (LXXXIV, p. 1-2).

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Mas não é só através do vestuário que se denuncia o taful. A tafularia é todo um

estilo de vida. Sinónimo Vaz Mendes é um «taful da língua»: só usa palavras difíceis,

transformando qualquer tentativa de diálogo num exercício de descodificação de frases

enigmáticas.

Bairro Alto 14 de Novembro. Mudou-se estes seis mezes hum sugeito para este Bairro, chamado Sinomino Vaz Mendes por alcunha, o qual falla huma linguagem, que nem o Diabo o poderá entender, ao mesmo tempo que presume de muito sábio, e de manejar a lingoa perfeitamente, substituindo ás palavras os sinónimos. Hontem á noite descompoz de rustico, e de ignorante hum seu creado, porque o não entendeo, quando lhe disse, hoje quero andar de habitação quadrúpede, firmeza, Ison, aquella agora na mesma, que espara frio. Ora vamos á interpretação, que o nosso Taful da lingoa deo a esta nigromancia. Hoje quero andar de habitação quadrupede, quer dizer quero andar de cazacão, porque caza he o mesmo que habitação, e cão o mesmo que quadrupede. Firmeza, Ison aquella agora na mesma, quer dizer fecha aquella janella: firmeza he o mesmo que fé, e Ison, o mesmo que chá, logo diz fecha: agora he o mesmo que já, e na mesma o mesmo que nella, logo faz janella: que espara frio quer dizer que está frio; porque pára he o mesmo que tá logo espara diz está, vindo a dizer toda esta perlenga, hoje quero andar de cazacão, fecha aquella janella, que está frio. Muitos dos seus amigos vem de longe tomar a sua casa barrigadinhas de riso com esta lingoagem, que elle com toda a seriedade julga perfeita. Ás nuvens nunca chama senão despido aproximaste, dizendo que despido he o mesmo que nú, e aproximaste he o mesmo que vens. Ao canapé nunca chama senão ouco arbusto pata; porque cana he hum arbusto ouco, e pé he o mesmo que pata. Fica-se esperando até á Lua que vem que mude de lingoagem; que senão mudar, sahirá despachado para Lente de lingoa Portugueza, dando-se-lhe casas, e ração gratuita, em quanto viver, no Hospital Real (LXXXIII, p. 1-2).

Inseparável da sátira das modas é a crítica das mulheres:

Rua das Janellas verdes 30 de Agosto. A que ponto não chega a vaidade das mulheres! Mas a sua inveja he igual á sua vaidade. Nenhuma quer ser excedida por outra, nem ainda nas mesmas faltas, ou defeitos. Juntárão-se huma noite destas em huma casa deste Bairro quatro Senhoras, a qual mais presumida, e invejosa, e porque huma dellas disse que era muito delicada, logo as outras tres o quizerão ser mais do que ella: conversou-se, e vindo a preguiça ad rem, todas se quizerão exceder em preguiçosas; daqui entrárão a altercar sobre a delicadeza, e preguiça, de sorte que fizerão largas apostas…. Eu, tornou outra vez a primeira, sou tão preguiçosa, que estando sentada no meu jardim, veio huma vespa para me morder, e por não levantar o braço para a enxotar, levei huma ferroadela, que me fez immensas dores: Disse então a segunda; Estando eu hum dia encostada ao fé de hum repucho da minha Quinta, rebentou este, e eu não só por não fogir, me deixei alagar, mas estando com sede não abri a boca para beber: Mais tenho eu feito, disse a terceira; Levantando-se hum dia hum pé de vento em hum passeio, que dei, e erguendo-se huma grande nuvem de poeira; foi tal a minha preguiça, que por não fechar os olhos, consenti que nelles me entrasse tanta terra que hum mez não pude ver: Respondeo logo a quarta muito delambida “Ao meu ver, nenhuma me excede, pois estando sentada em minha casa, por descuido pegou fogo, e eu por preguiça de fugir, hia morrendo queimada, se não viesse gente, que me levou ao collo dalli para fora (LXXI, p. 6-7).

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Contra a mulher («má como as cobras»), o autor chega a fazer a apologia do

homicídio, muito para além do que era socialmente tolerado na época, rematando a

narrativa com uma moral –

«a toda aquella que for de máo genio, com perdão de vv. mm., eu lhe desejo hum marido do mesmo molde»

:

Rua dos Alamos 14 de Março. Pelas ultimas cartas recebidas da Gollegã nos foi noticiada a célebre invenção de um Lavrador matreiro: Erão indisiveis os flagellos que este homem tal, e qual passava com sua mulher, a qual era má como as cobras, e por esta razão intentou desfazer-se della, mas por modo que a Justiça lhe não podesse imputar crime algum; ajustou com huns amigos, e outras mulheres conhecidas, e visinhas, hirem hum Domingo a Santarém, todos de cavallo, ora o tal Lavrador tinha huma mulla nova muito valente, e espantadiça, e três dias antes do mencionado Domingo a teve sem beber agoa: chegada a hora da partida disse-lhe a mulher, que também queria ir, ao que elle de maganão, que lhe conhecia o genio, respondeo: Que não podia ser, porque não tinha se não huma mulla, que era muito brava, e hum burro velho, que tropeçava, e que ella não havia querer ir na mulla por ser espantadiça, que sim a levaria no burro, porém que se encommodava muito, e havia dar muita quéda: a mulher que era huma vibora, logo lhe replicou: Essas escusas, para mim não valem nada, vossê quer-se apanhar só com o ranchinho para as suas estravagancias, pois desengane-se que na mulla he que eu hei de ir: Está bem, está bem não se afflija, lhe disse o paciente do marido, depois não se queixe se lhe succeder alguma desgraça. Não me hei de queixar, lhe tornou ella, e se a fizer não ha de ser a vossê, callou-se o marido, albardou-lhe a mulla, segurou-a para ella montar, elle cavalgou no jumentinho, e forão com roda a mais companhia á projectada romagem. Como a mulla estava desesperada com sede, apenas sentio a agoa do Tejo deo em correr a toda a brida saltando troncos, e barrancos, e deo hum pulo por cima de huma rebanceira, que margiava o rio, e precipitadamente se lançou della abaixo, e ficou tão maltratada a mulher que morreo dahi a duas horas: eis-aqui tem vv. mm. o modo muito politico com que este bom varão se desfez da mulher que tinha, que tanto o intisicava, e já se lhe conhece a differença, pois dizem que ha cinco dias que não toma leite de burras, e com tudo já tem engordado outro tanto: a toda aquella que for de máo genio, com perdão de vv. mm., eu lhe desejo hum marido do mesmo molde (XCVII, p. 1-2).

A homossexualidade, tanto masculina como feminina, surge no Almocreve em

dois folhetos afastados no tempo, o primeiro com uma profusão inusitada de

estereótipos e uma chamada de atenção hiperbólica, com recurso a exclamações

sucessivas:

Escolas Geraes 27 de Outubro. He boa historia esta! Não ha hum caso assim! O caracter do homem prevertido, a ordem da natureza alterada! As Senhoras vestidas como homens, e os homens vestidos como as Senhoras! He boa historia esta! Huma mutação simples, que faz pôr em confusão a mesma natureza! O homem exhalando de si afeminados cheiros, e enfeitando-se com melindre! vestido com huma casaca até aos pés, e com roupinhas, parecendo a casaca depois de abotoada huma saia: he boa historia esta! Sugeitando-se para figurar de Senhora, a fiar na força do seu maior negocio; até cozendo pela boa digestão do estomago a sua fornada, com agilidade propriamente mulheril, não só para arrimar hum baú de roupa, mas

43 desarimar dois, ou tres, o ponto he chegar-lhe quando tem vocação; fallando de falcete, e amaricado, figurando em si o mundo ás avessas, sómente por capricho; he boa historia esta! A Senhora com o cabello desgadelhado, chapéo na cabeça, lenço no pescoço em ar de gravata, ou pescocinho; capote de mangas, e çapatos de cunha, passeando com varonil desembaraço, indo á Praça da Figueira tratar do seu negocio, se lhe he preciso, mette mão á sua espada, e corta com ella peor que as columbinas, he boa historia esta! Se ha occasião agarra a sua cabelleira como hum homem, fallando com voz de trovão, para affectar homem, figurando de Amazona sómente por liviandade: he boa historia esta! Sexta Feira passada andavao neste sitio os rapazes da escóla á aposta com as suas materias, e vendo ao longe huma figura destas, se forao a ella como gato a bofes, e entrão a gritar huns daqui, outros dalli, senhor homem dê aqui o seu voto nesta materia, cujos votos senão derão não porque os não soubesse dar a quem os merecesse a tal figura, mas porque hum dos rapazes dos ultimos, que chegárão, desmanchou a festa, pois conhecendo que era huma tia sua a quem estavão pedindo os votos, lhe entrou a dar sorriadas, e então he que conhecêrão que era mulher quando se desembuçou para deitar a benção ao sobrinho; a razão deste engano dos rapazes está conhecida; foi porque a tal figura vinha de chapéo redondo na cabeça, capote de mangas, çapatos de cunha, embuçada, e arregaçada por amor das lamas, e por isso lhes pareceo que era homem, he boa historia esta! Logo mais abaixo sahindo as raparigas da Mestra se foi huma abraçar por detrás a hum homem destes que representão de saias, pois se enganou com a cor do vestido, e cuidava que abraçava sua Madrinha: he boa historia esta! Ah bom Simão de Orates, só tu sabias curar isto sem páo nem pedra; e tudo o mais he historia (LXXX, pp. 1-2).

Outro momento semelhante encontra-se na secção “Máximas do Velho de

Romulares” e inclui uma referência ao estrangeiro seguidor de uma religião diferente

(«descendente dos grandes de Meca»): «Todo o homem maricas, funéca,/ Com

perfumes, e pós pela cara,/ Descendente dos Grandes de Meca,/ Que em tregeitos, e

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 58-74)