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O outro: diabolização, racismo, violência

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 169-173)

CAPÍTULO V. HUMOR, INSULTO E POLÍTICA NOS PERIÓDICOS DE JOSÉ

V. 18 «Esta pena é um arrocho: pois aí vai uma arrochada»: uma violência «alegre»

V.24. O outro: diabolização, racismo, violência

Como antes n’A Tripa Virada e n’A Besta Esfolada, também n’O Desengano

Macedo vai proceder à desumanização e à diabolização do outro, conduzindo os leitores

para o corolário de toda a sua argumentação: a aceitação, vide exigência, do extermínio

dos adversários, «verdadeiros demónios com aparência humana»:

Eu, sem poder eximir os Ladrões da Forca, parece que não devo querer absolver os Revolucionarios do cadafalço. Comparados com estes os Ladrões vulgares, me parece que se lhes podem chamar os Santos innocentes. Tal he a atrocidade dos crimes destes verdadeiros Demonios com apparencia humana (Desengano, Nº 13, p. 2).

Os pedreiros livres começam por ser equiparados a cães que ladram e,

desaçaimados, mordem.

Ladrões mais que Ladrões, nunca se virão no Mundo, senão depois que no Mundo se descobrirão, e existem Pedreiros Livres [...] De tal maneira nos tem estes Cães ladradores, e Cães derramados com seus latidos, e irremediáveis mordeduras roubado este bem preciosissimo, que se chama socego individual, que não ha hora do dia, e muito mais da noute em que estes Cães desaçaimados deixem de ladrar, e deixem de morder (Ibidem, p. 3).

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Macedo constrói o texto em crescendo, os pedreiros deixaram de ser homens,

tornaram-se cães, e cães danados, que, ao morder, transmitem a raiva. Urge – «é o

procedimento» – abatê-los. Com bala, zagalotes ou veneno:

[…] he o procedimento que se deve ter com os Cães; para os que ladrão, páo; para os que marfados mordem, e damnados communicão a hydrofóbia, tiro com balla, e tiro com zagalotes; e, ou viver inquieto com os latidos, e uivos, e esperar a morte na agonia do veneno, ou dar por huma vez cabo de toda está canzoada (Ibidem).

A mesma desumanização do outro está patente nas manifestações de racismo,

quando troça do suposto apoio do Brasil a uma expedição militar liberal, em Fevereiro

de 1831: «[…] estão já a bordo dos Transportes oitenta mil Granadeiros, todos elles cor

de café […] he huma nuvem negra, cuja presença assustará mais com o cheiro que com

as armas; tantos Catingas, ou tanta Catinga corromperá os ares» (Desengano, Nº 13, p.

9). E em Agosto do mesmo ano, num comentário à abdicação D. Pedro:

A abdicação do Senhor D. Pedro he de huma especie nova: chegão junto ao Throno Imperial tres homens, não affianço, nem digo, que erão de côr uniforme, n’hum mais fechada, n’outro mais aberta; e para me explicar melhor, erão de huma côr, que não he a do dia, nem he a da noute, ficava no meio; mas em fim, os Roxinoes são pardos, mas cantão bem, e lhe disserão, olhando para o alto do Throno: — Ponha-se cá em baixo, porque ca em baixo he que o queremos; até agora era o primeiro Cidadão, agora he o ultimo. […] A esta vergonhosa nullidade o reduzio a perversidade Maçonica, mas nunca o despojará da Magestade, e da Grandeza de ser Irmão d’ElRei Nosso Senhor, isto o fará mais respeitavel, e venerando no Mundo do que o fazia o Imperio dos Macacos, e das Bananas (Desengano, Nº 25, p. 2).

Tal como nos periódicos anteriores, a solução proposta para os problemas

políticos da sociedade portuguesa vai desembocar sempre no simplismo da violência,

verbal e física: «se as revoluções são muitas, he porque têm enforcado poucos»

(Desengano, Nº 8, p. 2). A linguagem torna-se, contudo, sempre mais excessiva, e o

extermínio é apresentado como o corolário lógico de premissas alinhadas como num

silogismo: «Combater os Pedreiros Livres, isto he, os inimigos de Deos e do genero

humano, he cousa muito necessária» (Desengano, Nº 10, p. 1). Logo, «eu desejava que

se exterminassem, como se exterminárão os Lobos em Inglaterra, isto he, que se

matassem todos n’huma só montaria» (Ibidem). Confortado pela inspiração – «A idéa

de montaria, he com effeito original!» – elabora-a numa descrição gráfica: «Veriamos

cahir á bala, o que virão os Judeos no Deserto, nuvens, e nuvens de Codornizes cahir

dos ares para saciar a sua fome, nuvens de Pedreiros em terra para satisfazer o nosso

desejo, e saciar o nosso apetite» (Ibidem).

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A conclusão é um apelo: «Pois atirem-lhe, como fazem os d’Aldêa, e não haja

arcabuz, fouce, páo, pedra, olho de enchada, que lhes não vá á cabeça como se costuma

fazer a hum Lobo damnado» (Ibidem, p. 2).

Com o outro apresentado desta forma, o diálogo é impossível:

Nestes termos, combatidos os Pedreiros pelo raciocinio huma vez somente, escusado he entrar em campanha com elles, porque não poderemos ouvir mais do que temos ouvido, nem á centessima facada ouviremos daquellas bocas mais que os mesmos nomes, as mesmas frases, ou, para me explicar mais Portuguezmente, as mesmas parvoíces (Ibidem, p. 5).

Levando o humor negro a ultrapassar todos os limites, o sarcasmo transforma-se

em insulto e o insulto em apelo à violência e ao crime:

Nem estes textos merecem os Pedreiros, eu digo o que elles são, para se entenderem melhor. São Burros de Nora por dentro, e por fóra: e ainda que haja alguns que sendo filhos de Burros possão ser cavallos, digo que são como os cavallos á guia, andão em circulo cujo centro he o pilão. Ouvem estalar o açoute, barafustão, e escouceão […], mas o circulo não he maior, nem he menor. […] Veio a caterva em 1820: desde 24 d’Agosto deste anno, até 27 de Maio de 1823 […] o que disserão no primeiro, estavão dizendo no ultimo, naquelle momento em que ouvírão o assovio do páo que rompia o ar, e lhe vinha ás costas sacodidamente […] quando sentindo as costellas em imminente perigo, começárão de gritar, — moderação, moderação. […] Moderação tem havido com as prisões, podendo trabalhar bem despejadamente a Forca! (Ibidem).

A violência do discurso é omnipresente nas páginas do periódico, oferecendo

pequenas variações no modo de tratar os «pérfidos e impudentes malhados», aliás

«cáfila» de «estúpidos» e «mentecaptos»: pau, bala ou zagalotes.

[…] os da mesma cáfila são tão estupidos, e mentecaptos, que não prevêm, nem ao menos se lembrão, que incorrendo, como incorrem, no odio, ou aversão de todos os homens de bem, de quem he a maioria, ficão expostos ao que tem já recebido, levarem publicamente com hum páo á face do Ceo, e da Terra sem osso no corpo que são lhes fique; e se o páo, conforme a planta de que fôr tirado, o carrasco, o zambujo, o marmeleiro, ou ainda mesmo a cerejeira brava, por alguma sua flexibilidade, moleza, ou elasticidade, natural, ou accidental, não produzir logo o seu desejado effeito, então tiro, não simples, mas com duas ballas, ou quatro zagalotes, que he o que elles merecem, e he, a meu vêr, a unica receita para acabar com os perfidos, e impudentes Malhados (Desengano, Nº 23, p. 7-8).

Em Julho de 1831 surge uma inovação que vai enriquecer a panóplia macediana

(e miguelista) de instrumentos de suplício, fazendo companhia – quiçá concorrência – à

já familiar forca: o garrote. A novidade permite uma tentativa cómica em que o riso é

suscitado pela explicação jocosa que o autor faz do contraste entre a designação

pejorativa dos liberais em Espanha – «negros» – e em Portugal, «malhados», isto é,

misturados com «outras cores», que até «podem ser agradáveis».

151 Ergão as mãos para o Ceo, porque aqui em Portugal são mais bem tratados que na Hespanha, nossa amiga, e companheira, até no nome; lá chamão-se Negros, aqui Malhados, que sempre presuppõe a mistura de outras cores, que determinem as malhas; estas cores podem ser agradaveis, e adoçarem o horror do negrume. Na Hespanha são todos Negros, negros n’alma, e negros no corpo. Inda mais negros se fasem, quando os pendurão na Forca, ou lhes apertão os gorgomilos no fatal barrote (Ibidem, p. 10).

Com recurso a uma linguagem sarcástica – «Cartas nem as do correio, e

persuadão-se Vossas Excellencias que panela mexida por muitos não tem chorume

nenhum» (Desengano, Nº 14, p. 11) –, até mesmo fescenina

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– «os punhados de papeis

que nos vêdes nas mãos são as folhas da Constituição; se faltar alguma, he porque já cá

servio em caso de necessidade» (Desengano, Nº 11, p. 8) –, o objectivo é sempre louvar

a «prodigiosa virtude, e sobre humano poder de hum Cacete» (Desengano, Nº 24, p. 5),

fazer passar a mensagem: «Não deixar hum só de taes réos vivo» (Desengano, Nº 25, p.

7).

Curiosamente, é no meio de mais uma apologia da pena de morte contra a

«bosina da moderação» – «A impunidade he filha da frouxa tolerancia. […] A

Clemencia de Tito he cousa muito boa, mas he para huma Opera de Metastasio»

(Desengano, Nº 16, p. 8) – que Macedo como que se transfigura num humanista

improvável, a quem uma execução tira o apetite:

Eu sou formado pela natureza de hum modo tal, que em hum dia de execução de pena ultima, seja o réo qual for, porque o delicto não lhe faz perder a qualidade de homem, o coração me bate de outra sorte, e huma horrivel convulsão me sacode os membros todos, nem o necessario alimento posso tomar (Ibidem, p. 9).

No entanto, passa-lhe depressa e ainda na mesma página regressa o velho padre

José Agostinho, que nunca desilude os seus leitores fiéis:

Mas he tal a maldade Maçonica, que no dia 30 de Abril [de 1824, a Abrilada] desejei vêr na fachada do Palacio da Bemposta aquelles adornos de Arquitectura amovivel, que tantas vezes se descobrem nos Porticos do Palacio das Sete Torres em Constantinopla — quatro cabeças gotejando sangue (Ibidem).

Os últimos números do periódico – e os seus últimos meses de vida – dedicou-os

Macedo a defender por todos os meios a cada vez mais isolada causa miguelista.

Sugeriu uma forma imaginativa e expedita de financiar o regime:

Eu só queria que a Capitalistas, e Dinheiristas se fizesse huma pergunta, mas com a cara, e gesto de Ignacio Ferreira Souto, que foi o primeiro Intendente: — V.m. outro dia era hum Jan-Fernandes, que trazia o espinhaço dobrado, e calejado debaixo do pezo dos costaes, que acarretava alli pelo Cáes do

152 Sodré; hoje tem quatro milhões; donde lhe vierão? Esta pergunta não quebrava osso, mas abria sacos, e tudo isto não seria empréstimo, mas restituição (Desengano, Nº 20, p. 7).

Apontou um dedo acusador aos liberais pela morte de D. João VI (Desengano,

Nº 26, p. 8) e insinuou que «dois pingos d’agua Tofana em hum cristallino copo fazem

esse facil milagre, e o mais glorioso troféo do Maçonismo» (Desengano, Nº 25, p. 8).

Na frente diplomática, comparou a situação internacional a um «Entremezão tão

destampado, que parece de bebados em dia de S. Martinho» (Ibidem), e insurgiu-se

contra as pressões estrangeiras (leia-se inglesas e francesas) a favor dos liberais,

assegurando: «Gritarem-nos muito lá de fora, e cá dentro; fazerem grandes féros, e

ameaços, isso he querer albardar o Dono á vontade dos Burros. Nós não queremos outro

Rei» (Desengano, Nº 23, p. 12).

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 169-173)