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1 «Debaixo da capa de hum gracejo»

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 125-130)

CAPÍTULO V. HUMOR, INSULTO E POLÍTICA NOS PERIÓDICOS DE JOSÉ

V. 1 «Debaixo da capa de hum gracejo»

O padre José Agostinho de Macedo não tinha dúvidas de que o riso era uma

arma eficaz: «Com este estilo ludrico, ou gracejador se misturão, e insinuão os

documentos da Moral mais pura, do amor da Pátria o mais acrisolado, se inspira hum

odio perfeito, e huma aversão invencivel ás revoluções»

230

. E usava-a sem hesitação no

seu combate: «Debaixo da capa de hum gracejo se apresentão os mais sólidos, e

proveitosos documentos para a conservação, e independencia deste Reino, e se

escondem as armas mais poderosas para combater, e derrotar os mais poderosos

inimigos»

231

.

Este capítulo aborda a componente humorística nos periódicos A Tripa Virada (e

o seu complemento Tripa por Huma Vez), A Besta Esfolada e O Desengano,

procurando determinar o seu lugar no âmbito de uma estratégia política determinada.

Busca-se, igualmente, problematizar os limites do humor e dos excessos de linguagem

de Macedo

232

na fronteira entre o sério e o risível, bem como o seu uso por parte do

autor na construção de uma opinião pública favorável àquela estratégia.

V.2. Um criador literário com uma vida agitada

Quase dois séculos depois da sua morte José Agostinho de Macedo (1761-1831)

continua a não deixar indiferente quem o lê

233

. Macedo cultivou a polémica com

entusiasmo furibundo, tanto na sua polifacetada actividade literária, «onde todos os

saberes, atitudes, paixões intelectuais características da época adquiriram uma

230 MACEDO, José Agostinho de – A Besta Esfolada, Nº 12, p. 12. 231 Ibidem. Nº 21, p. 1.

232 «Usando o chasco e o insulto como armas ideológicas» (DIAS, Graça e José Sebastião da Silva – Os

Primórdios da Maçonaria em Portugal. Vol. I, Tomo II. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1980, p. 603).

233 ANDRADE Maria Ivone de Ornelas de – José Agostinho de Macedo: Um iluminista paradoxal. 2

vols., Lisboa: Edições Colibri, 2001-2004; FERREIRA, António Mega – Macedo: Uma biografia da infâmia. Lisboa: Sextante Editora, 2011; OLAVO, Carlos – A Vida Turbulenta do Padre José Agostinho de Macedo. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, [1938]; SILVA, Inocêncio Francisco da – Memórias para a Vida Íntima do Padre José Agostinho de Macedo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1899; idem – Diccionario Bibliographico Portuguez. Tomo IV. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860, p. 183- 184.

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veemência e uma vitalidade realmente criadoras»

234

– dividida entre a poesia, o teatro, a

epistolografia, a filosofia, a história, a crítica, a política, a parenética, a oratória fúnebre

e a periodística, incluindo, quer a colaboração, quer a redacção de periódicos de sua

exclusiva autoria – como na sua agitada vida pessoal

235

.

O jovem alentejano de Beja que veio para Lisboa estudar com mestres da

Congregação do Oratório antes de ingressar no Convento de Nossa Senhora da Graça da

Ordem dos Agostinhos apenas usou o nome de Frei José de Santo Agostinho durante

pouco mais que uma dúzia de anos. Mal professou, em 1778 ou 1779, «desapareceram

logo todos os vestígios de sua imaginária se não forçada vocação»

236

. O roubo de umas

lampreias que os responsáveis conventuais se preparavam para degustar em homenagem

ao santo patrono foi apenas o ponto de partida do «extraordinário percurso cadastral»

237

de um «ladrão, indisciplinado, apóstata, devasso, rufiote, oportunista e desleal»

238

, que

culminou com a expulsão da ordem, por sentença conventual, a 18 de Fevereiro de

1792. No ano anterior deixara de usar o nome de José de Santo Agostinho, passando a

assinar José Agostinho de Macedo, a que faria corresponder nas lides poéticas da época

o nome arcádico de Elmiro Tagídeo. Contudo, o labéu da expulsão viria a ser suavizado:

interpôs recurso da sentença e acabou por obter um breve de secularização da Sé

Apostólica concedendo-lhe, em 1794, a passagem ao estado de presbítero secular

239

.

Reconhecimento social não faltou ao padre José Agostinho de Macedo, entre a

fama e a infâmia, consoante a apreciação de admiradores ou de detractores. Em 1802,

foi nomeado pregador régio (já em 1798 pregara na festa por ocasião do nascimento do

futuro D. Pedro IV, na Capela Real do Palácio de Queluz

240

); foi sócio da Arcádia de

Roma e da Academia de Belas-Letras de Lisboa; durante o triénio liberal foi eleito

deputado substituto por Portalegre às Cortes de 1822 (não chegou a tomar posse); e, já

no fim da vida, em 1830, foi nomeado por D. Miguel substituto do cronista do Reino.

Quando morreu, com 70 anos, a 2 de Outubro de 1831, o rei absoluto mandou que o

caixão fosse transportado num coche funerário puxado por oito cavalos de sua casa em

234 LOURENÇO, Eduardo – Prefácio. In ANDRADE – Op. cit. Vol. I, p. 13.

235 «Porventura, para nós, hoje, é esta desbragada assunção da liberdade e o carácter quase lúdico da sua

postura vital, intelectual e moral que conferem a Macedo um perfil de modernidade, como se fosse, na sua ordem e no seu tempo, uma espécie de Céline» (Ibidem).

236 Apud FERREIRA, A. M.– Op. cit., p. 70. 237 Ibidem, p. 71.

238 Ibidem.

239 SILVA, I. – Diccionario Bibliographico, Tomo IV, p. 183. 240 MACEDO – O Desengano. Nº 25, p. 4.

106

Pedrouços até ao convento de Nossa Senhora dos Remédios, das freiras trinitárias, no

largo do Rato, em Lisboa, onde foi sepultado, como era sua vontade

241

.

V.3. Polémico até no nome

Nem o nome do autor escapou à polémica. Se José de Santo Agostinho foi

tomado ao entrar na vida religiosa, o apelido Macedo só o adoptou por volta dos 30

anos, depois de perder o hábito da sua congregação e passar ao estado de padre secular.

O nome de família era Teigueira ou Teiguera

242

, mas José renegou-o.

Os inimigos sabiam e não perdiam uma oportunidade de lho chamarem. Foi o

caso de Hipólito da Costa, redactor do Correio Braziliense, membro destacado da

Maçonaria e um dos «ódios de estimação» de Macedo

243

, numa manobra provocatória

que se prolongou pelo segundo semestre de 1816. O que começou em Agosto daquele

ano com uma «Resposta aos Folhetos de Jozé Agostinho de Macedo, Presbitero

Secular»

244

, tomou a forma de uma «Carta ao Redactor sobre o Espectador Portuguez»,

assinada por um enigmático Menchenio Teiguera, em Outubro

245

. Ora, no Solilóquio

VIII do Motim Literário, publicado em 1811, Macedo fizera referência ao livro sobre a

charlatanaria dos eruditos, do jurista e historiador alemão Johann Burckhardt Mencke

(1674-1732), que assinava Menchenio em latim

246

. Hipólito terá lido o Motim e não

perdeu a oportunidade de cravar a farpa no «Menchenio» do Espectador – o Teiguera

ou Teigueira que tanto incomodava Macedo. O redactor do Correio Braziliense

esclareceu, por fim, a referência a Teigueira num texto com um título sintomático: «O

Energúmeno», publicado no número de Dezembro de 1816 daquele periódico – era

241 SILVA, I. – Op. cit., p. 184; FERREIRA, A. M – Op. cit., p. 338. 242 ANDRADE – Op. cit. Vol. I, p. 29.

243 Macedo retribuía a deferência: escolheu-o para abrir uma das versões do «primeiro poema herói-

cómico-satírico da Europa», Os Burros: «Qual de tantos heroes primeiro, ó Zanga,/ Me mandas celebrar? Teu guincho escuto,/ Hyppolito immortal, dos Trolhas mestre./ Com teu Correio Capataz te acclamas/ Da turba jumental que o Tejo assombra» (MACEDO – Os Burros, Lisboa: Na Typographia da Rua direita do Salitre, 1837, p. 23-24).

244 COSTA, Hipólito da – Correio Braziliense. Vol. XVII, Nº 99, p. 209. 245 Ibidem. Nº 101, p. 532.

246 «[…] mas não sei porque azar me cahio nas mãos o celebrado Menckenio author do livro que trata da

charlatanaria dos eruditos. Eis-me aqui tentado de novo, e o endiabrado livrinho, cum notis variorum, despertando em mim novas idéas. Menckenio, dizia eu, estendeo bem o seu guardanapo, correo as artes, as sciencias todas, e em todas achou charlatães, e porque não heide eu com a mesma sem ceremonia chamar-lhes salteadores? Heide-lhe descobrir podres, malhadas, e baldas, com que os heide fazer andar corridos e envergonhados por toda a República das letras» (MACEDO – Motim Literario em Fórma de Soliloquios. [Em linha]. Tomo I. 3ª edição. Lisboa: Typographia de Antonio José da

Rocha, 1841, p. 136-137. [Consult. 03.11.2017]. Disponível em

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasraras/or1320144/or1320144.pdf. Ver ANDRADE – Op. cit. Vol. I, p. 103.

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aquele, de acordo com as anotações a um soneto atribuído a Bocage, o verdadeiro

apelido de José Agostinho de Macedo

247

.

Macedo replicou à sua maneira. Fingiu estranheza

248

, acusou Hipólito de estar

mancomunado com o seu inimigo figadal Nuno Álvares Pereira Pato Moniz – um dos

alvos principais da truculência macediana, desde a polémica contra os sebastianistas até

à denúncia dos malhados e ao apelo ao extermínio dos pedreiros livres, que nem a morte

no degredo, em Cabo Verde, para onde fora desterrado na sequência da Vilafrancada,

livraria de ser ridicularizado muitos anos depois, n’A Besta Esfolada

249

– e ameaçou-o:

«Que porcaria! Nem huma só palavra do seu infame Jornal de Dezembro ficará sem

huma aterradora resposta»

250

.

247 «Tem-nos continuado a chegar á maõ os folhetos de Jozé Agostinho, tam propriamente denominado o

Author Energumeno; cujas producçoens são favorecidas pelo Governo de Lisboa, ao ponto de lhe nomear um Censor especial, a fim de que tam preciosos escriptos naõ soffram demora em sua publicaçaõ. He este censor especial o Monsenhor Gordo; a quem desejamos muitas felicidades, no honroso, e instructivo lugar, de lêr e dar licença para se imprimir o jornal Critico e Literario, que só tracta do Braziliense e do Pato. Podemos assegurar a Monsenhor Gordo, que naõ julgamos de tal influencia no publico, a obra que elle approva por especial commissaõ, que supponhamos necessario responder-lhe; porque nisto naõ consideramos senaõ a astucia de ridicularizar o Correio Braziliense, suscitando-lhe taõ desprezivel adversario; como se com isto se quizesse fazer crér ao publico, que para responder ao Correio Braziliense só basta o Jozé Agostinho. Na verdade, neste sentido, naõ deixamos de attribuir algum mercimento á lembrança; pois naõ se poderia dar ao Correio Braziliense mais ridicula resposta, nem por mais vil individuo. Como olhamos porem a cousa por ésta face, he claro o partido, que devemos tomar; e nos contentaremos, quando tivermos alguma pagina vazia neste Periodico; enchêlla com alguma galantaria, sobre o chocarreiro Jozé Agostinho, e suas obras, approvadas por um censor especial do Governo; assim publicamos agora o seguinte.

Biographia de Jozé Agostinho por Bocáge. SONETO.

Velut in speculo.

Cortando déz sermôens a canivete, (1)/ E roubando uma inteira livraria, (2)/ Acompanhando a corja que assovia, (3)/ E dando á Mãy dois murros no topéte; (4)// De Arrieiro na estrada andando ao frete, (5)/ E cozendo Comédias á Maria, (6)/ Empregado vilmente como espía (7)/ Entregando o Doutor que em caza o mette.(8)// Nos pulpitos fazendo alto berreiro/ Sem ley co’as leys mettendo aos outros medo/ E á tôa descompondo o mundo inteiro: (9)// Eis como vive com perpetuo enredo/ Para tudo o que he máo sempre em terreiro/ O fôfo Exfrade, que se diz Macedo. (10)

Annotações.

(1) Jaz o corpo do delicto em um Sermonario Italiano na livraria de S. Francisco da Cidade. (2) A dos Paulistas.

(3) O Exercito da Penha.

(4) Quando sahio de prégar, de S. Izabel, pedindo-lhe esmólla. (5) Sendo procurado pelo Manique.

(6) Maria da Luz, comica, de quem era amantarraõ. (7) No tempo de Lucas de Seabra.

(8) O Sepulveda accuzado na Intendencia de Pedreiro. (9) Sempre foi seu argumentar.

(10) Seu nome todo verdadeiro he Jozé Agostinho Teigueira.

Feito em 1803» (Correio Braziliense. Vol. XVII. Nº 103, p. 818-820).

248 «[…] agora diz que eu sou Teiguera? Isto será algum Mac-Benac? Ou outra qualquer senha da ordem

dos Innocentes?» (MACEDO – O Espectador Portuguez. Segundo Semestre. Nº 25º, p. 236.

249 A Besta Esfolada. Nº 21, p. 5.

108

V.4. Periódicos para além dos limites

Falhada a pretensão de ser reconhecido como ideólogo do absolutismo

251

,

Macedo entregou-se ao papel de seu mais exacerbado propagandista. Esta vocação

manifestou-se, particularmente, em três dos muitos periódicos que redigiu: A Tripa

Virada, A Besta Esfolada e O Desengano.

A veia polemista do autor levou-o, em momentos importantes da sua longa

carreira, a entrar em choque com figuras da área do poder ou próximas dele

252

,

nomeadamente elementos destacados da igreja, incluindo, os jesuítas – de quem mais

tarde se aproximaria, numa das suas características e ruidosas mudanças de opinião

253

,

tal como sucedeu, por exemplo, com o geral dos Bernardos, ridicularizado no prefácio a

Os Burros que mais tarde renegaria

254

. Da pena verrinosa de Macedo não escapou

sequer a mais alta hierarquia eclesiástica: um dos seus alvos favoritos foi o «malhado»

Frei Francisco de S. Luís, futuro reitor da Universidade de Coimbra e cardeal patriarca

de Lisboa (cardeal Saraiva)

255

. Tanto a campanha anti-sebastianista como a sua

megalómana comparação com Camões foram degraus que conduziram Macedo à

maturidade como autor e como protagonista político.

Foi nesta fase que, depois de um momento de aparente hesitação em que

publicamente manifestou adesão ao novo regime saído da revolução de 1820, quer

candidatando-se e fazendo-se eleger deputado substituto às Cortes ordinárias de 1822

pelo círculo eleitoral de Portalegre (embora nunca tenha tomado posse), quer aceitando

incumbências e fazendo «promeça de escritos Constitucionaes»

256

, Macedo fez jus à

fama de vira-casacas

257

. Confessando a falsidade da «comédia» que representou

258

,

251 ANDRADE – Op. cit. Vol. II, p. 58-74.

252 Caso de António Ribeiro dos Santos: ver FERREIRA, A. M – Op. cit., p. 179-182. Sobre Ribeiro dos

Santos ver PEREIRA, José Esteves – O Pensamento Político em Portugal no Século XVIII. António Ribeiro dos Santos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983.

253 ANDRADE – Op. cit. Vol. I, p. 105-112. 254 Os Burros, p. 7-9

255 FERREIRA, A. M. – Op. cit., p. 190-192. 256 Tripa por Huma Vez, p. 66.

257 «[…] ha circunstancias taes, e tão imperiosas que obrigão o homem mais constante a representar o que

não he, e a identificar-se em aparentes sentimentos com seus mesmos inimigos, e perseguidores, escrevendo como elles escrevem, falando o que elles falão, louvando, e promovendo o que elles louvão, e promovem» (Ibidem, p. 62); «[…] apenas dizia em tom baixo, submisso, e não escutado pelos filhos da Besta – Até ao lavar dos cestos he vindima!» (Besta, Nº 3, p. 2).

258 «Que couza mais ridicula, que querer fazer de hum jurado inimigo dos Pedreiros, hum Apologista da

cauza Pedreiral! Que cousa mais ridicula, que não se lembrarem que eu com o conhecimento da cauza, que elles tão ingenuamente me davão, fazia hum farnel que ainda algum dia devia vir á luz do Mundo! A muita gente parece hum milagre a minha conservação não partecipando da sorte dos mais que gemerão em degredos; não foi causa sobrenatural, e milagrosa, foi a Comedia em que eu entrei como

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assumiu, enfim, a sua verdadeira identidade política: «carcunda», adorador do «Anjo

Miguel cá na Terra»

259

.

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 125-130)