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O humor face à diferença

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 74-78)

CAPÍTULO I. À DESCOBERTA DO OUTRO NO ALMOCREVE DE PETAS

I.6. O humor face à diferença

Identificados os alvos, importa questionar o papel do humor do Almocreve face à

diferença. Ao troçar, satirizar e fazer ironia à custa do outro, José Daniel Rodrigues da

Costa receia-o e recusa a alteridade ou, reconhecendo o outro, descobre essa alteridade?

De salientar, desde logo, a presença avulsa de notas autocríticas sobre a

comunidade:

Alfama, 18 de Maio [...] vendo tanto povo ao Edital, demorou-se na explicação daquelle Enigma, porque havia sujeito de tanta curiosidade, que estava olhando para o papel desde as sete horas da manhã até ao meio dia, costume antigo de Lisboa, que em parando hum homem, párão logo meia dúzia ao pé delle, e alli ficão sem saberem para que párão (LVII, p. 2).

Por outro lado, se o autor manifesta a sua adesão à ordem vigente, assumindo o

preconceito social contra os pobres e os fracos, os que estão mais em baixo na escala –

«A esperteza, e a vilhacaria quasi sempre andão annexas aos moços de servir, únicos

dotes com que a natureza os enriqueceo» (CXVIII, p. 1) – há episódios que denotam

uma espécie de vingança dos de baixo, numa inversão dos «lugares naturais»

característicos de uma sociedade pré-moderna. É o caso do camponês («rústico da

aldeia») que dá o troco ao «cavalheiro» que o comparara a um porco, comparando-o por

sua vez a um burro.

Perguntou hum Cavalheiro a hum rustico em huma Aldêa, qual era o tempo no anno da sua maior alegria, respondeo-Ihe o rustico que o tempo da castanha, porque á noite as assavão ó fogão conversando muito, e comendo- as, e depois se hião deitar: disse-lhe o Cavalheiro, sois vós justamente como os porcos, que se deitão depois de fartos; tornou-lhe o rústico: ora Senhor, se tanto vos mereço, haveis dizer-me também qual he o tempo do vosso maior gosto: disse-Ihe o Cavalheiro, nós outros gostamos muito da Primavera, principalmente do mez de Maio, porque he muito agradavel ouvirem-se cantar as aves, ver os campos floridos, e nisso temos o maior contentamento: respondeo-lhe então o rustico: pois Senhor sois vós justamente como o meu burro, que tambem no mez de Maio se enche da maior alegria a zurrar muito (CXXXIX, p. 6-7).

O mesmo se verifica noutro exemplo, quando reconhece a inteligência vinda de

onde menos esperava. Uma rapariga de 17 anos, filha de um pescador, aproveitava as

saídas do pai para o mar para receber em casa o amante. Num dia de temporal, o

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pescador ficou em casa e podia ter apanhado o intruso, mas este foi avisado in extremis

pela moça quando já estava a arranhar a porta da casa. Ela pegou numa roca e sentou-se

junto à porta a cantar uma cantiga cuja letra preveniu o amante do perigo, permitindo-

lhe retirar-se a tempo de evitar a ira paterna. O episódio suscitou de imediato a

comparação: se era assim com «gente rude e baixa», que faria com as «senhoras

polidas»...

Barreiro 14 de Agosto. O certo he que a finura, e as idéas delicadas se tem hoje estendido até aos mais remotos lugares, achando-se até nas pessoas mais rusticas o modo mais subtil de enganar, e de prevenir os lances mais arriscados…. e foi deste modo, que a pobre rapariga encobrio ao Pai a sua leviandade. Ora julguem vv. mm. quando na gente rude, e baixa se encontra huma subtileza destas, que farão estas Senhoras polidas, vestidas á trágica, onde as lunetas andão sempre nos olhos, e as filosofias na ponta da lingua! (CXVII, p. 2-3)

A visão misógina da mulher está patente nos estereótipos que alimentaram uma

polémica fictícia. Foi uma «guerra dos sexos» travada ao longo de sucessivos folhetos.

Carta que do Porto escreveo hum sugeito a hum seu Amigo de Lisboa, dando-lhe parte do mal que se dava com sua mulher […] Infelizmente me acho casado, porque invejando o Matrimonio de alguns Amigos meus, me apaixonei por huma mulher, sem me lembrar da desigualdade de génios, de que se compõe este sexo. Agora vejo bem a meu pesar, que ha mulheres que formão hum composto de labyrintho, onde o homem se não sabe entender, nem entendêlas. Questionarão certos Filósofos, em que tempo a mulher era boa, melhor, e óptima, e assentarão que era boa, quando morria, melhor quando morria logo, e optima se deixava o marido rico. Também questionárão quando era má, pêor, e pessima; e igualmente assentárão, que era má sempre, pêor quando a tratavão bem, e péssima quando a tratavão mal […] poucas merecerão a excepção desta regra. Se lhes dá em serem doentes, os ais são immensos, as queixas são eternas, as convulsões, os estericos, as epicondrias, tudo anda em contínuo gyro de hora a hora, até que huma dóze de Opera, de Quinta, ou de Assembléa tomada a miudo, faz serenar por huma noite aquella tormenta. Se lhes dá em serem soberbas, divinizão-se nas fallas, as mesuras são de cabeça, como que se arrependem no meio dellas, tudo lhe faz hum dissabor, tudo lhes ha de render vassalagem […] Se lhes dá em serem vaidosas, não querem se não companhias, onde se fação ver; janella, onde todos as cortejem; cumprimentos de Milords, que de minuto a minuto despendão hum chuveiro de lisonjas, e mais que tudo assentando que a belleza dos 20 dura nos 60; e que a roda do tempo parou a seu respeito. Algumas se esquecem do estado, que tem; dos filhos, que crião, e do respeito que devem conciliar. Se lhes dá em serem perguiçosas, a manhã leva-se de cama, a tarde na Quinta, a noite nas visitas […] Se lhes dá em serem golosas, sahem humas perfeitas Conserveiras, e chamando a isto governo, não ha doce que não fação; nada avistão que não desejem, e são peiores de que os próprios filhos, quando passeião na Feira por lugares de bonitos de crianças. Se lhes dá em serem enxovalhadas, cuidão só nas apparencias, e todo o interior da casa he hum nojo continuado, os filhos immundos, a cosinha em podridão […] Se lhes dá em serem discretas, de tudo entendem, de tudo fallão, e são logo Mathematicas, Filosoficas, Francezas, e do que mais devião ser, não são, pois não sabem ser humas boas

55 donas de suas casas. Em fim chorão, e riem juntamente, affagão, e escandalisão […] querem ser livres, e que os homens sejão huns escravos. Eis-aqui as condições da desordenada máquina de huma grande parte deste sexo […] Se o homem se agrada da mulher porque esta tem alguma cousa de seu, e ella lhe pilha huma tal paixão, faz-se muito humilde, muito meiga, muito extremosa; porém apenas se casa, quer ser fidalga, quer tratamento de ostentação, lançando em rosto que trouxe com que…. Huma barraca, que trouxe, que seja tida por hum Palácio; hum Quintal por huma Quinta…. Estas puras verdades, de que sem pejo o sexo femenino se ri, tendo-as por petas, são o nosso flagello, e de immensos indivíduos, que se calão, por não agravarem mais as suas feridas; e nós tambem assim faremos, visto que a nossa enfermidade já não tem cura (LXXXIV, p. 2-5).

Para alimentar a polémica de modo a manter o interesse dos leitores – e

leitoras –, José Daniel publica no folheto seguinte a «Resposta que dá uma Senhora».

Ali se rebatem, ponto por ponto, os motivos de queixa expostos, num argumentário

igualmente estereotipado. A réplica devolve as acusações e apresenta os homens como

os responsáveis dos «defeitos» das mulheres. Uma pseudo-denúncia que nem por ser

oportunista deixa de reconhecer as razões do outro – a mulher, apresentada sempre à luz

do preconceito

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:

Resposta que dá huma Senhora á Carta que se publicou no Folheto passado, desaggravando o seu sexo […] sendo para nós outras tão sensivel o vermos que quasi todos os homens atirão ao nosso sexo, increpando-nos de defeitos, de que muitas vezes os homens são motivo, passo em nome de todas a advogar nesta causa pela melhor forma de direito, fazendo vêr que o nosso sexo tem assáz toda a razão para mostrar aos olhos do Mundo, e da verdade os homens, por suas culpas, representados na mais triste figura […] Provará que os homens são huns inquietadores de nós outras, pois ainda não consta que huma só se tirasse de sua casa para hir buscar hum homem, com quem caze, antes elles valendo-se das assembléas, das funções públicas, dos passeios, das introducções nas casas de cada huma; hum porque canta, o outro porque toca, este porque dança, aquelle porque faz versos, e muitos porque são d’aquem e d’além, Morgados disto, e daquillo, até, com bem magoa minha o digo, se valem dos lugares mais sagrados, sómente para o fim de inquietar-nos.

Provará que as molestias sempre forão pensão da humanidade, e que a mulher doente por mais enferma que esteja, não perde da lembrança o governo da sua casa […], porque o homem com qualquer dôr de cabeça logo perde o animo, e deseja metter em casa quantos Medicos ha, e quantas Boticas tem Lisboa, julgando-se ás portas da morte […]

Provará que elles são huns soberbos […] pois destroindo quanto a favorecida mulher trouxe, deixão-se a si, e a toda a família pedindo huma esmola, e conservando apenas os fumos da abundancia, que já tiverão, fazem da mulher huma escrava, onde a necessidade augmenta o odio, e fulmina o seu máo comportamento, pensando que isto de receber huma mulher, he o mesmo que alugar humas casas, d’onde se muda, quando se não dá bem.

142 Para uma reavaliação do sarcasmo no humor baseado na perceção do papel social do género ver

DRUCKER et al. – «On sarcasm, social awareness, and gender». Humor-International Journal of Humor Research. Vol. 27, N º 4, 2014, p. 551-573.

56 Provará que a vaidade nasceo nos homens […] O solteiro por vaidade julga que todas lhe querem bem, trazendo enganadas dez, e vinte ao mesmo tempo […] elles na confusão deste labyrintho, nem se canção em fazer escolha: Inquietão a velha, a rapariga, a ama, a creada para brazão da sua grande lista, e bazofia. O viúvo gabando muito a primeira, chorando por ella, anda palpando onde acha maior somma para se conchegar; com a vaidade de ficar melhor, que da primeira vez. O velho com entusiasmo de rapaz he hum baboso continuado […] certamente não ha para as Madamas hum papel de tanto gosto, como o vêr hum Ginja namorado.

Provará que ha homens de perguiça, e tao poltrões, que aferrados á ociosidade, faltão até aos deveres dos seus officios […] casa, em que habitão solteiros, he hum chiqueiro, onde então melhor se mostra a falta daquelle pique, e aninho feminil para o asseio.

Provará que são tão golotões […] que fazendo gasto diario na sua casa, andão pelas de pasto porque ha bifesteques, vitellas de leite, podins, guizadinhos fomentadores das boas feições, chegando os individos ao ponto, até de se recolherem bebados para suas casas, onde nós outras vivemos sacrificadas a ouvir os gritos, a vêr os máos modos, como victimas da bebedeira para que não concorremos.

Provará que são tao enxovalhados, que de contínuo fazem andar a triste familia sempre de ferro na mão; porque a camisa engomada apenas serve huma vez, o colete, o calção, são os estragadores de quanta greda ha; e quanto mais se lhes manifestaria este defeito, se nós, as pobres mulheres os desamparássemos! [...]

Provará que, passando ao fingimento de que somos accusadas, elles homens são muito mais fingidos; em quanto amantes são huns alfenis, em quanto casados huns tigres, em quanto pobres huns servos humildes, em quanto ricos huns Neros tyrannos; elles na dependencia tem lagrimas nos olhos, mel nos beiços, e fel no coração […] e finalmente huma, e muitas vezes Provará o nosso sexo, em defeza propria, com a verdade sabida, que o homem he huma Camera optica, onde com agradáveis côres se mostrão os vicios, e as virtudes, em continuada confusão; e ou se componhão nesta demanda, refreando a lingoa a nosso respeito, ou acharão em mim huma Advogada, que lhes faça com ajustadas razões, mais immortaes no Theatro do Mundo as suas desenvolturas (LXXXV, p. 1-4).

Até mesmo na omnipresente crítica das modas e das novidades vindas do

estrangeiro o Almocreve permite vislumbrar um discurso de aceitação da mudança. Por

entre um extenso rol de estereótipos culturais e gastronómicos, o passado é colocado em

perspetiva – e não há maneira de voltar atrás. «Como quer v. m. que tornemos a esse

tempo?» É que o tempo mudou e agora «as coisas estão todas alteradas». Como se não

bastasse que «este país» seja «composto de diferentes gostos» – uma inusitada

declaração de reconhecimento da diferença –, ainda por cima trata-se de «gostos que

não são persistentes» (CXXXVII, p. 2). Apesar do distanciamento crítico e do tom

moralista, o que fica é a cristalização de uma outra realidade.

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No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 74-78)