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Adotando uma perspectiva para uma análise do discurso em sala de aula em diálogo com estudos de campo da Educação em Ciências e da Linguagem

CAPÍTULO I REVISÃO DE LITERATURA

1.4 Adotando uma perspectiva para uma análise do discurso em sala de aula em diálogo com estudos de campo da Educação em Ciências e da Linguagem

De uma perspectiva sociocultural ou sócio-construcionista entendemos que o aprendizado é construído socialmente, por meio das interações discursivas e práticas sociais que os participantes estabelecem entre eles e os artefatos em um determinado contexto social. Os participantes mais experientes inserem os mais novos nessa cultura socialmente construída e “na medida que isso acontece eles ‘apropriam-se’ das ferramentas culturais por meio de seu envolvimento nas atividades dessa cultura” (DRIVER et al, 1999, p. 34).

Dessa forma, vários pesquisadores da educação em ciências argumentam que é por meio dos processos discursivos e das práticas sociais que os membros de uma comunidade constroem definições locais sobre várias coisas como, por exemplo, o que é ciências ou o que é aprender ciências (GREEN e DIXON, 1993; KELLYe CRAWFORD, 1997; KELLY, CHEN e CRAWFORD, 1998; KELLY, 2007). Nesse conjunto, uma série de aspectos da vida social define os participantes como membros daquele grupo, como por exemplo a negociação dos papeis que cada um desempenhará na comunidade, as normas, os direitos e deveres. O que, por sua vez, acaba influenciando a construção de suas relações e suas expectativas quanto ao pertencimento àquele grupo. (KELLY, 2007)

Para Gregory Kelly (2007), uma das grandes potencialidades dos estudos sobre análise do discurso é que, de uma forma geral, eles nos proporcionam compreender melhor como os eventos, que dão forma a Educação em Ciências, são construídos por meio da linguagem e dos processos sociais. Nesse sentido, eles nos permitem investigar questões como: “o que conta como ciências nesses determinados contextos”, “como a ciência é interacionalmente construída”. (KELLY, 2007, p. 443. Tradução nossa.) Com foco nas interações discursivas que ocorrem nas salas de aulas de Ciências da Educação Básica, Kelly (2007) destaca que a importância de tais estudos pode ser justificada por meio de três observações primárias, de que

(i) [...] ensino e o aprendizado ocorrem por meio de processos construídos através do discurso e da interação.”; (ii) “[...] o acesso

do estudante à ciência é alcançado por meio do engajamento no mundo social e simbólico compreendendo os conhecimentos e práticas de comunidades especializadas.” e (iii) “[...] o conhecimento disciplinar é construído, moldado, retratado, comunicado e acessado por meio da linguagem e, assim, aprender a base epistemológica da ciência e da investigação requer atenção para com o uso da linguagem. (p. 443. Tradução nossa)49

Todavia, o autor ainda destaca que parecem ser escassas as pesquisas que se debruçam sobre o estudo das interações em sala de aula e sobre os discursos produzidos no âmbito da formação de professores de Ciências (KELLY, 2007). Assim, faz-se importante investigar os processos de ensino-aprendizagem com foco nas interações discursisvas que ocorrem nas sala de aula, especialmente na universidade, espaço que ainda carece de maior atenção e que pode contribuir sobremaneira para a formação dos professores.

Há certa variedade nas abordagens das pesquisas que se dedicam a realizar análises dos discursos nas salas de aula. (BlOOME et al, 2008; CAMERON, 2001; KELLY 2007). Tal diversidade reflete a relação entre o quadro teórico adotado pelos pesquisadores e seu objeto de estudo.

Deborah Cameron (2001) lembra-nos que a análise do discurso tem interessado a vários pesquisadores além de linguistas. Nessas análises do discurso falado, adota-se como meta tornar explícito aquilo que normalmente é concebido como dado, assim como mostrar como tais discursos realizam coisas na vida das pessoas e da sociedade. Todavia, Cameron (2001) aponta que há diferenças nas pesquisas que realizam a análise de discurso, pois há aquelas análises com o fim em si mesmas, geralmente realizadas por linguistas, nas quais se procura descrever e compreender as complexas estruturas e mecanismos do uso da linguagem em um dado contexto. Enquanto há outras, realizadas principalmente por outros cientistas sociais, que se interessam mais em perceber como as pessoas conseguem realizar determinadas ações em suas vidas por meio da linguagem.

49

“[...] teaching and learning occur through processes constructed through discourse and interaction. [...] student acess to science is accomplished through engagement in the social and symbolic worlds comprising the knowledge and practices of specialized communities. [...] the disciplinary knowledge is constructed, framed, portrayed, communicated, and assessed trough language, and thus understanding the epistemological base of science and inquiry requires attetionto the uses of language.”(KELLY, 2007, p. 443)

Logo, como afirma Cameron (2001, p.17. Tradução nossa.) a análise do discurso

é um método para fazer pesquisa social; é um corpo de conhecimentos empíricos sobre como a fala e o texto são organizados; é um lar de várias teorias sobre a natureza e o funcionamento da comunicação humana e também de teorias sobre a construção e a reprodução social da realidade. É tanto linguagem quanto sobre a vida.50

Neste estudo, partimos de uma noção de discurso como linguagem em uso. Mais especificamente, compreendemos discurso a partir da perspectiva de Bloome et al. (2008), que o significa “como verbo”, pessoas agindo e reagindo entre si a partir da linguagem. De acordo com esses autores:

Ao definir-se discurso como verbo, enfatizamos as ações orquestradas que as pessoas tomam através da linguagem e sistemas semióticos relacionados, para criar, manter, desafiar, interpelar, resistir e transformar as ideologias manifestadas e ferramentas sociais, culturais e econômicas de uma instituição social, incluindo as relações das pessoas entre si e o movimento de pessoas ao longo do tempo e do espaço (...) como um verbo, discurso pode ser visto como ações que as pessoas e as instituições tomam em resposta umas as outras; e mais especificamente, ações feitas com linguagem e outros sistemas semióticos para criar, recriar, mudar e manter identidades, papeis e contextos sociais em que as pessoas vivem dentro (e sem). (BLOOME et al., 2008, p.58-59)51.

A seguir iremos contrapor nossa perspectiva de análise do discurso com outra perspectiva amplamente divulgada em outros campos.

Uma das formas de se analisar o discurso produzido nas salas de aula é com foco sobre os discursos hegemônicos que são muitas vezes tomados como racionalidade,

50

It is a method for doing social research; it is a body of empirical knowledge about how talk and text are organized; it is the home of various theories about the nature and workings of human communication, and also of theories about the construction and reproduction of social reality. It is both about language and about life. (CAMERON, 2001, p. 17)

51 By defining discourse as a verb we emphasize the concerted actions people take through language and related semiotic systems to create, maintain, challenge, circumvent, interpellate, resist, and transform the manifest ideologies and social, cultural, and economic tools of a social institution, including the relation- ships of people to each other and the movement of people through time and space. In other words, instead of viewing discourse as a set of concepts, structures, and practices, at either a micro levei or macro levei, as a verb discourse can beviewed as actions that peopleand

institutionstakeinresponsetoeachother;andmorespecifically, actions done with language and other semiotic systems in order to create, rec- reate, change, and maintain identities, roles, and social contexts that people live within (and without). (BLOOME et al., 2008, p.58-59)

verdade absoluta ou até mesmo percebidos como senso comum. Nessas investigações, geralmente são analisados a influência de certos discursos macro em discurso e práticas socais locais organizando os modos desses sujeitos de ver, pensar, perceber, sentir, comunicar e categorizar o mundo. Bloome et al (2008, p. 53. Tradução nossa) os define como “[...] um sistema de conceitos, ideias e práticas sociais, uma ideologia que aparenta ser natural, óbvia e isenta de questionamentos.”52 Para esses autores, os discursos hegemônicos promovem definições acerca, por exemplo, do que conta como conhecimento e sobre os argumentos válidos em um determinado espaço social.

Estamos, assim, mais interessados em perceber como as pessoas estão utilizando a linguagem em interações discursivas complexas no seu cotidiano, para construir as relações teoria-prática. Portanto, por um lado, não negamos e estamos atentos para perceber a influência de contextos discursivos macro na construção discursiva local. Todavia, nossos olhares voltam-se mais para a compreensão de como as pessoas (professores, alunos e convidados), ao construírem discursivamente as relações teoria- prática na sala de aula, reconfiguram discursos hegemônicos para esse contexto específico.

Em nossas análises, nos apoiamos nas considerações de Michel de Certeau (1998, p. 38) para investigar as construções discursivas do dia-a-dia, nas quais compreende-se que “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”. Nessa concepção, os sujeitos sociais não são tomados como seres “passivos ou dóceis”, mas como “consumidores” que ao fazerem o uso de produtos culturais também “fabricam” algo com esses produtos (CERTEAU, 1998, p. 38-39). Desse modo, voltamos nossos olhares para esses modos de “produção” do consumidor, dimensão que embora “se insinue ubiquamente”, estando assim em todas as relações, pode ser muitas vezes difícil de se notar porque é “astuciosa”, “dispersa”, “silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas na maneira de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante.” (CERTEAU, 1998, p. 39)

A ideia de Certeau (1998) aponta em uma direção de que, provavelmente, sempre haverá algo de inédito e autônomo nos discursos cotidianos, pois eles não se

52 “[...] as a system of concepts, ideas, and social practices, an ideology, that appears natural, obvious, and without question.” (BLOOME et al, 2008, p. 53)

configuram como atividades ritualísticas – repetitivas e fixas – mas, sim, modificam- se de acordo com os objetivos e a imprevisibilidade dos momentos.

Nesse sentido, nossos questionamentos se alinham com aqueles propostos por Certau (1998, p. 41):

Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da ‘vigilância’, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também ‘minúsculos’ e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que ‘maneiras de fazer’ formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou ‘dominados’?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política.

Para Certau (1998, p. 41) a perspectiva de análise de discurso por ele adotada em seus estudos tem aproximações e distanciamento daquela adotada por Foucault. Por um lado elas se aproximam, são “análogas”, pois ambas tratam de “distinguir as operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de ‘tácticas’ articuladas sobre os ‘detalhes do cotidiano’”. Por outro lado, se distanciam, são “contrárias”, “por não se tratar mais de precisar como a violência da ordem se transforma em tecnologia disciplinar, mas de exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos indivíduos presos agora nas redes de ‘vigilância’.” (CERTAU, 1998, p. 41)

Portanto, investigamos como as pessoas – alunos, professora e convidados -, na interação umas com as outras e com os artefatos, constroem discursivamente as relações teoria-prática em seu cotidiano de aulas de uma disciplina de Laboratório de ensino de Patologia ofertada por uma grande universidade pública do sudeste brasileiro. Com isso, entendemos que este contexto local da sala de aula não está alheio a outros contextos macro, como os políticos, históricos, econômicos, culturais, sociais, teóricos etc.

Sabemos que, como pesquisadores do campo da Educação, torna-se uma tarefa difícil para nós imaginarmos que tais construções das relações teoria-prática possam não ser fortemente influenciadas por alguns contextos discursivos como, por exemplo, das

principais tendências do campo da Formação de Professores e da Educação em Ciências; da prescrição das propostas das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de formação de professores; do teor da própria história da instituição e do instituto; ou por outros. Todavia, é nesse esforço que nos mantivemos, de desenvolver uma análise que se concentrou, eminentemente, a partir das construções discursivas locais, para em seguida ser possível sugerirmos quais contextos que estão presentes em determinados momentos. Todo esse movimento foi realizado mantendo uma atenção especial de como esses discursos macro estão sendo reconfigurados pelas pessoas nessa construção das relações teoria-prática local. Quer sejam negados, negligenciados, reiterados, reconfigurados. Em outras palavras, como esses atores sociais fizeram o “consumo” desses discursos macro e o que está sendo produzido em outros contextos.

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