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Olhando as relações teoria-prática como categoria não-clássica: de uma perspectiva essencialista para uma perspectiva articulada

CAPÍTULO I REVISÃO DE LITERATURA

1.3 Dialogando com a literatura dos estudos das relações teoria-prática na formação inicial de professores.

1.3.3 Olhando as relações teoria-prática como categoria não-clássica: de uma perspectiva essencialista para uma perspectiva articulada

Em alguns estudos sobre as RTP que investigamos nessa revisão, observamos que os pesquisadores se depararam com dificuldades para encontrar definições “puras” para as dimensões teoria e prática. Por exemplo, Moreira (2012) considera que as pessoas normalmente falam de teoria e prática em conjunto e não de forma isolada:

Pudemos perceber também como a relação entre teoria e prática é forte. Apesar de esta análise ter sido realizada categoria a categoria, nas quais optámos por selecionar nos discursos dos estudantes seus posicionamentos sobre a teoria e a prática de maneira separada, é importante pontuarmos que em raríssimos momentos conseguimos essa pureza nos discursos. Mesmo quando a ênfase do discurso era voltada para a prática, este ainda continha alguns resquícios de teoria. No caso contrário, quando buscamos a teoria pura nos posicionamentos dos estudantes, ela nos apareceu salpicada com bocadinhos de prática. (MOREIRA, 2012. p. 74-75. Grifos nossos)

Como se pode observar no trecho anterior, criar categorias isoladas para analisar os significados de teoria e prática, que os participantes da pesquisa estavam apresentando em seus depoimentos, acabou revelando-se uma grande dificuldade do ponto de vista analítico. Para a autora, tal forma com que tais dimensões foram apresentadas pelos participantes da pesquisa também revelam a indissociabilidade entre tais dimensões:

Isso significa dizer que, mesmo ocorrendo a valorização de uma em detrimento da outra, ou mesmo uma relação de dependência (na qual, na maioria das vezes a teoria depende da prática para sobreviver), a ligação entre a teoria e a prática é tão sólida que elas são praticamente indissociáveis. Sendo o discurso destes alunos reflexo dessa impossibilidade de separação. (MOREIRA, 2012. p. 74-75. Grifos nossos)

Na pesquisa de Holland, Evans, Hawksley (2011) também observamos que os pesquisadores encontraram dificuldades para investigar concepções de teoria de forma isolada da prática. Em seu trabalho, os autores procuravam compreender como, na perspectiva dos professores-estudantes, os aspectos teóricos de ensino e aprendizagem estavam sendo desenvolvidos durante o período de atividades escolares em um programa de formação docente na Inglaterra.

Percebemos que, quando solicitaram que os entrevistados falassem de forma isolada sobre Teoria, eles não souberam se posicionar. Holland, Evans, Hawksley (2011) apontam que quando os solicitaram a responder sobre quais tipos de teoria você tem

discutido em seu curso, assim como, que descrevessem seus conhecimentos sobre teorias de currículo, não pareceu estar claro para os participantes da pesquisa sobre a

que Teoria se referia, uma vez que muitos deixaram o questionário em branco.

Em nossa perspectiva, tal dificuldade de denominar e de encontrar sentidos e significados puros e bem delimitados para o que seria teoria e prática, teria relação com nossa própria maneira isolada de olharmos para essas dimensões. Em outras palavras, a dificuldade está relacionada ao modo de categorizar a teoria e a prática.

Categorizar, dispor em categorias44, é uma das formas que temos para melhor compreender e interagir com o mundo ao nosso redor. De acordo com Lakoff (1987), os seres humanos categorizam o mundo (tanto entidades físicas como abstratas) a todo o tempo, de forma automática, inconsciente ou consciente, traduzindo-se em maneiras pelas quais nós pensamos, percebemos, agimos e falamos. Para o autor, a categorização é uma atividade tão importante para a vida humana que “sem esta habilidade de categorizar, nós nem funcionaríamos, tanto no mundo físico, como em nossas vidas sociais e intelectuais”45. (LAKOFF, 1987, p.6) Um sentido mais cotidianamente compartilhado é o de que categorizar é aglomerar em conjuntos coisas com propriedades em comum. Contudo, haveria somente essa forma de categorizar as coisas e ideias ao nosso redor? A partir das características comuns existentes entre elas?

44

Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Acesso em http://www.priberam.pt/dlpo/categorizar. 45 “Without the ability to categorize, we could not function at all, either in the physical world or in our social and intellectual lives.” (LAKOFF, 1987, p.6)

Para Lakoff (1987) essa forma mais conhecida é entendida como categorização

clássica e, embora não esteja errada, é apenas uma parte das formas de categorização

que ocorreram ao longo da história, como estudado pela teoria das categorizações (denominada como prototype theory). Lakoff (1987) traz uma diversidade de estudos que apontam inconsistências nas formas clássicas de categorização. Nesse sentido, resgata, por exemplo, as ideias de Wittgenstein, as quais propõe categorização por

semelhança de família (family resemblances) na qual “os membros de uma categoria

podem ser organizados na relação uns com os outros sem que todos os membros compartilhem propriedades em comum que definem a categoria”46 (p.12), como no caso de se categorizar o jogo. Nessa direção, os limites da categoria também podem ser ampliados (extendable boundaries), na medida em que a sociedade se desenvolve. Wittgenstein, por exemplo, ao propor tal reflexão sobre a categoria jogo, em meados do século passado, não fazia ideia dos jogos de informática, que hoje existem em computadores, tablets e smartphones, mas que ainda se inserem na categoria jogo. Ou seja, as fronteiras da categoria foram deslocadas.

Neste estudo, apoiamo-nos em ideias de Lakoff (1987) para propor um distanciamento de uma visão de categorização clássica para as relações teoria-prática, baseada no princípio de que existiria uma definição essencial sobre o que é teoria e o que é prática nessa relação. Em outra direção, consideramos ser mais pertinente interpretar que nas relações teoria-prática (RTP), os sentidos e significados atribuídos à teoria e à prática podem ser melhor compreendidos a partir da articulação estabelecida entre ambas as dimensões. A prática adquire sentido e significado na interação com a teoria da mesma forma em que a teoria é compreendida na sua interação com a prática.

Tal proposta articulada de categorização das relações teoria-prática, ao nosso ver, já está presente em trabalhos como os de Ferreira et al (2003), Terreri (2008) e Terreri e Ferreira (2013). Afinal, como constatado por Ferreira et al (2003, p. 36), “os sentidos que a prática adquire nos cursos de licenciatura podem ser pensados na relação que estabelecem com diferentes saberes mobilizados na ação pedagógica”.

46 “[...] that members of a category may be re- lated to one another without all members having any properties in common that define the category.” (LAKOFF, 1987, p.7)

Dessa forma, na análise dos sentidos de prática em normatizações oficiais e institucionais para a formação de professores e licenciatura em Ciências Biológicas, Terreri (2008, p.73) já aponta para uma diversidade de sentidos que puderam ser percebidos, em seus termos: “a compreensão da ‘dimensão prática’, bem como do que significa a articulação entre teoria e prática no interior e nos currículos dos cursos de formação não é homogênea ou única, mas, sim, expressa diversos sentidos de prática e também de teoria.” Alguns dos sentidos de prática construídos na relação com sentidos de teoria, identificados pelas autoras seriam: sentido epistemológico da

prática, sentido teórico da prática, sentido de prática social, sentido investigativo e reflexivo; sentido epistemológico das ciências de referência, sentido epistemológico escolar, sentido técnico, sentido profissional, sentido de instrumentalização, sentido lúdico e sentido de experimentação (TERRERI, 2008, TERRERI e FERREIRA,

2013).

A seguir, buscamos ilustrar, a partir de alguns exemplos, essa forma de caracterizar relações teoria-prática. De acordo com Terreri (2008), o sentido técnico da prática resgata concepções de prática derivadas do modelo da racionalidade técnica, ainda presente em cursos de formação de professores atuais. Nele, a “prática permanece sendo olhada como um espaço-tempo de aplicação de modelos, metodologias e técnicas aprendidas em contextos – na universidade, por exemplo – e, muitas vezes, produzidas por terceiros que não o professor.”(p.76-77) O sentido profissional, por sua vez, compreenderia “a articulação entre os conhecimentos teóricos aprendidos nos cursos de formação e os conhecimentos práticos advindos da prática profissional e do fazer docente, bem como do universo escolar onde os futuros docentes irão atuar.”(p.60). Já o sentido de prática social é interpretado em termos de uma valorização de uma “articulação entre teoria e prática para melhor formar o docente e prepará-lo para compreender a realidade social na qual atua e contribuir para modificar a mesma”. (p.68) O sentido espitemológico da prática identifica a prática como “um espaço-tempo de construção de saberes e de conhecimentos genuínos do contexto onde se dá o exercício profissional”. (p.78) O sentido teórico da prática é entendido como os saberes trabalhados em disciplinas pedagógicas nos cursos de formação de professores que “se destinam a focalizar e problematizar a realidade da

educação brasileira considerando os problemas práticos do universo escolar e da atuação docente sem, no entanto, se aproximar dos mesmos,”(p.79)

Na perspectiva das autoras, esses sentidos se misturam e se confundem em diferentes trechos da legislação, sendo também assumidos de diferentes formas nos contextos das instituições de ensino superior analisadas. Terreri e Ferreira (2013) já apontam a dificuldade, para não dizer a impossibilidade, de encontrarmos uma definição essencialista dos sentidos de prática, uma vez que, para as autoras, “não é possível encontrar sentidos puros de prática e que o sentido técnico que foi hegemônico na formação de professores no país vem sendo recontextualizado e hibridizado historicamente.” (p.1015. Grifos das autoras)

Portanto, consideramos que, tal como observado nesses trabalhos (TERRERI, 2008 e TERRERI e FERREIRA, 2013), não deveríamos investigar prática e teoria de forma isolada, mas, sim, em conjunto. Assim, adotar uma concepção articulada de categorização das relações teoria-prática traz duas importantes implicações: i) de que

não buscamos significados ou sentidos isolados e essencialistas para cada uma das dimensões (teoria e prática); e ii) de que em quaisquer definições das relações teoria- prática, sempre haverá uma concepção - mais ou menos explícita, mais ou menos evidente - do que seria prática ou teoria. Além dos estudos acadêmicos, as discussões

sobre relações teoria-prática têm ocupado também espaços como o das políticas públicas – por exemplo, ao definirem-se diretrizes curriculares para cursos de licenciatura – ou das instituições de ensino superior que abrigam cursos de formação de professores.

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