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“Agradecemos aos nossos clientes que não discutam política em voz alta”

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 56-58)

“Eu sou um artista que pensa na história”10, afirma Pedro Barateiro.

De facto, o trabalho artístico que desenvolve tem mobilizado momentos significativos da história do século XX – modernismo, colonialismo e pós- colonialismo -, interrogando e desmontando as relações e retóricas de poder na contemporaneidade através de uma diversidade de media e temáticas: história, arquitectura, sociedade e política (Melo 2013:11).

Destaquemos alguns exemplos. Num projecto que ocupou o espaço público da cidade de Lisboa, fixou em diferentes locais cartazes com a frase “Agradecemos aos nossos clientes que não discutam política em voz alta” (Nicolau, 2009) ao lado de uma fotografia do pai agarrando um bezerro, imagem captada durante a guerra na Guiné. Nas palavras do artista:

“Em 2005 e 2006 fiz um projecto em que colei um série de posters na rua onde eu usei uma imagem do meu pai. Aquelas típicas imagens que os soldados traziam da guerra. O meu pai estava na Guiné. E eu achava aquilo estranho porque as imagens eram todas muito alegres, em situações muito simpáticas. E aquilo que eu achava que era a vida lá, não era nada daquilo. As imagens que eles mandavam eram imagens para a família. Era uma filtragem. […] Obviamente que eles não iam mandar fotografias de matanças ou coisas desse género. Obviamente eles estavam na guerra e as fotografias que havia lá em casa eram só aquelas. Não havia imagens de edifícios. Pareciam que estavam fechados numa espécie de comunidade. Na verdade, interessou-me bastante pensar o que tinha acontecido naquela altura, naquele tempo porque o meu pai falava pouco sobre isso. Na altura utilizei aquela imagem porque achava que todas as pessoas deviam conhecer.”11

A relação entre as ex-colónias e o antigo centro imperial é, também, trabalhada por Pedro Barateiro através da interpelação do quadro ideológico e dos mecanismos de propaganda do fascismo português. Tomando como ponto de reflexão a sua prática artística, Pedro Barateiro, refere o processo que conduziu à instalação Travelogue (2010), que implicou uma pesquisa aturada no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, em particular os jornais de actualidades cinematográficas sobre Angola e Moçambique12,

instrumentos de propaganda durante o Estado Novo. Nesta vídeo-instalação são mobilizados excertos dos filmes, construindo o artista uma narrativa entre as imagens procurando “o que faltava, que tem a ver com uma ausência, com o que não está lá” 13.

E é precisamente esta dimensão que, também, encontramos discutida em O Cinema Proibido (2008), instalação exibida na exposição Domingo realizada no Pavilhão Branco do Museu da Cidade em Lisboa no ano de 2008. Um projector de 16mm, colocado sobre uma cómoda da década de 60, direcciona uma luz sobre um volume escultórico que aproxima espectador de uma lista de títulos de filmes objecto de censura durante o Estado Novo. Pedro Barateiro dirige a nossa reflexão para a ausência da sua exibição e para a relação de poder que lhe está subjacente. Nas palavras de Alexandre Melo: “O projector não projecta imagens dos filmes censurados, limita-se a criar um lugar onde a ausência histórica dos filmes que não foram vistos comunica com o nosso presente. O que se mostra não são os filmes, mas (a memória da) sua não exibição” (Melo, 2013: 12)

O artista identifica singularidades e apresenta-as “num contexto em que as pessoas lhes prestem mais atenção” (Nicolau, 2009), sublinhando as ausências ou o que já existe, isto é, relacionando-os e exibindo-os de uma outra forma, criando novas conexões. Para Pedro Barateiro:

“os artistas são pessoas, são pessoas como outras pessoas quaisquer. São indivíduos que fazem o seu trabalho e que tentam fazer com que o seu trabalho seja de alguma forma seja visto e lido pelas pessoas de forma a que elas consigam com elas próprias criar e alimentar a sua subjectividade, a sua maneira de ver e olhar para as coisas. O que eu acho é que os artistas no fundo são uma espécie de amplificador, uma espécie de catalisador de coisas que já existem. […]” (in Melo & Leitão 2013).

4. É preciso recomeçar a viagem. O viajante volta já

“O fim de uma viagem é apenas o começo doutra”, diz-nos José Saramago porque é preciso ver outra vez o que já se viu, repetir os passos que já foram dados para traçar novos caminhos. Acompanhando a proposta do escritor, este texto procurou problematizar o conceito de prática artística percorrendo

Antropologia e performance

um colectivo de autores preocupados com a dimensão performativa do quotidiano. Os contributos emanados da antropologia da performance foram particularmente enriquecedores na interrogação dos aspectos associados à construção, expressão e disseminação de sentidos, reforçando o argumento de que as práticas artísticas são “maneiras de fazer”, formas de classificar e interpretar o mundo.

Ancorado numa etnografia do campo artístico português contemporâneo, examinámos as práticas artísticas enquanto espaços de contestação e de exibição da cultura. A produção de Manuel Botelho e Pedro Barateiro, foi mobilizada na análise da forma como os artistas reelaboram o “espaço das coisas comuns” e como o exibem através da ideia de nação. Esta surge como uma plataforma que permite expressar interpelações e desconfortos relativamente ao colonialismo e ao fascismo português, às assimetrias de poder, à subalternidade ”doméstica”, assumindo-se como matéria fecunda para a expressão e interrogação estética. Neste sentido, os artistas imagimam a nação de forma selectiva, direccionando o “espelho” para os territórios que pretendem escrutinar criando uma relação com o espectador.

Deste modo, a visualidade contemporânea intersecta histórias e geografias nacionais, internacionais e transnacionais, urdindo o local e o global. Nestas dinâmicas, as práticas da arte, assumem um papel central ao articular a capacidade de significar, de construir e exibir as subjectividades dos sujeitos.

Os processos artísticos, perspectivados enquanto modos de comunicação, assumem-se como performances culturais, revelando - e “amplificando”, na expressão de Pedro Barateiro - as posições políticas dos artistas na sua reflexão crítica sobre a contemporaneidade. O seu trabalho dissemina sentidos, traça uma paisagem nova, exibindo novos nexos, incitando o espectador a agir, observar, relacionar e interpretar, em suma, a construir o seu “próprio poema” a partir do “poema que tem à sua frente” (Rancière: 2010 [2008]: 22). As artes, enquanto performances culturais, desenham este jogo de poemas.

É preciso recomeçar a viagem…

bibliografia

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