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O Monumento como performance

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 112-116)

O Monumento aos Combatentes do Ultramar é uma forma de mise-en- scène do drama social das guerras coloniais e do fim do império português. É, portanto, uma plataforma dramatúrgica, um palco, onde o drama social em questão é performatizado de acordo com um script particular. O estabelecimento deste palco, bem como a definição do script, evidenciam

 - http://ultramar.terraweb.biz/index_ACUP_lutacontagemdetempo.htm. Acedido em 20.12.2013.

Antropologia e performance

a ação de agentes particulares sobre os meios de produção simbólica com o objetivo de “projetar significados culturais particulares na prossecução de objetivos práticos” (Alexander, 2004: 91). Ou seja, a performance serve para algo; é suposto ter um fim, um propósito, geralmente a renovação da identidade ou a purificação da ordem social através do sacrifício ou da iluminação. O “sucesso” relativo com que as ações performativas atingem este objetivo vai depender do grau de integração dos vários elementos que compõem o drama social e também da capacidade integrativa do script definido. Quanto mais os scripts forem definidos de acordo com categorias de significado imediatas e imanentes no meio social mais vasto, e quanto maior for o controlo exercido sobre os seus elementos constituintes, maior será a possibilidade da performance atingir o objetivo para que foi criada. Mas independentemente da sua maior ou menor capacidade de integração, toda a performance é uma ocasião “em que, como cultura ou sociedade, refletimos sobre e definimo-nos a nós mesmos, dramatizamos os nossos mitos coletivos e a nossa história, apresentamo-nos alternativas e, eventualmente, mudamos em alguns aspetos, mantendo-nos no mesmo em outros” (MacAllon in Cohen et al, 2008: 78).

Esta dimensão autorreflexiva está expressa nas palavras do Ministro da Defesa à altura da inauguração do Monumento, Fernando Nogueira, quando classificou o polémico ato inaugural como “um encontro de Portugal consigo próprio e com os seus valores mais genuínos e universais” (in Diário de Notícias, 16.01.1994). Neste local de encontro, ou de reencontro, “a persona social maculada pode ser purificada e renovada” (Turner e Turner, 1978:30), mediante a refirmação da unidade e da indivisibilidade do grupo. Esta intencionalidade está presente nas próprias opções estéticas que guiaram a tipificação arquitetónica prevista para o monumento. Pretendia-se um monumento que fosse “sóbrio e acolhedor”, tivesse a “maior dignidade” e que fosse capaz de “transmitir força, serenidade e respeito” (Magalhães, 2007: 25). De entre os vários projetos que se apresentaram a concurso, a proposta selecionada foi a liderada pela equipa do Arquiteto Francisco Guedes de Carvalho, com base no desenho do escultor João Antero de Almeida. A obra é composta por um simples pórtico de grande dimensão, em forma de V invertido, com os dois braços culminando num vértice apontando para o céu e sob o qual, junto ao chão, está acesa em permanência uma chama ardente. Um epitáfio, também em forma triangular, dedica o monumento “Aos Combatentes do Ultramar” (ver Imagem 1).

Imagem 1 – Monumento aos Combatentes do Ultramar e Memorial

De acordo com a memória descritiva do monumento, o traço minimalista da composição escultórica procura traduzir, através de uma “grande pureza formal e simbólica” e de “grande simplicidade e carácter unitário”, a “união entre todos os povos envolvidos na guerra do ex-ultramar português, sem constrangimentos nem ressentimentos”. Preferido em detrimento de outros

projetos que propunham figurações mais densas ou interpretativas – como os das equipas lideradas pelos arquitetos Ramos Chaves (2.º classificado) e Miranda Guedes (3.º classificado), que propõem, respetivamente, a representação dos três territórios de guerra (Angola, Moçambique e Guiné) através de três peças verticais e a representação dos três ramos das Forças Armadas através de grandes peças equestres (Magalhães, 2007: 42) – o projeto ganhador situa a fronteira do “público” simultaneamente no interior subjetivo (o drama dos que morreram) e no exterior transcendente (a pátria por quem morreram em sacrifício). A feição estética do monumento é, ela própria, propiciadora deste efeito.

Toda a obra de arte é profundamente performativa, criando um poderoso campo de experiência espiritual, moral e emocional. A invenção da estética

 - http://www.ligacombatentes.org.pt/upload/forte_bom_sucesso/exp_permanen- tes/003.pdf. Acedido em 30.05.2013.

O Monumento aos Combatentes: A Performance do Fim do Império no Espaço Sagrado da Nação

 

pode, inclusivamente, ser entendida como a transferência de valores espirituais do campo do sagrado para o campo do tempo e do espaço seculares (Duncan, 1995: 14). A opção pela estilização da representação memorial, ao invés de uma representação figurativa, é uma forma de estabelecimento de um campo sagrado no qual se situam tanto a nação quanto os seus corpos sacrificados. A ascensão funerária que a forma geométrica do monumento sugere, assume, neste sentido, propósitos profundamente didáticos e terapêuticos: minimiza a guerra; glorifica a pátria e os seus valores mais elevados; cria um corpo sacrificial – o combatente morto – que se transcende no coletivo; reconhece a conexão espiritual, cultural e emocional entre os mortos e a pátria. Neste sentido, a própria estrutura do monumento torna-se axiomática. A morte é transformada em sacrifício e é sacralizada através do fogo alquímico da chama ardente da pátria e, tal como em muitos outros memoriais, é por esta via destituída de conteúdo político (Sturken, 2004: 314). As áreas de sensibilidade social que subjazem à construção memorial, tanto aquelas que dizem diretamente respeito aos dramas dos combatentes, como aquelas que se relacionam mais amplamente com as responsabilidades políticas associadas ao colonialismo português, são transcendidas pelo efeito de suspensão sugerido pela estética monumental.

Este modo de veneração sacramental é também ditado pela própria delimitação do espaço e pelo “tipo de comportamento” que os visitantes do local devem ter. Uma placa junto ao monumento instiga, em sete idiomas diferentes, ao “Silêncio, Respeito e Recolhimento”, definindo os comportamentos que são e não são permitidos (ver Imagem 2). Uma guarda permanente zela pela integridade do espaço, assinalando por via da sua presença inamovível as barreiras (reais ou simbólicas) que não é possível transgredir. Também a contínua inclusão de evocações religiosas nas cerimónias que anualmente têm lugar junto do monumento sugerem a sua sacramentalização. Aliás, o “Programa Preliminar” para a construção do monumento previa mesmo a edificação de uma pequena Capela no Forte do Bom Sucesso, local onde se antevia, também, a instalação de um Museu que proporcionasse aos visitantes informações sobre os feitos militares dos portugueses. Nessa Capela seria depositado um “Livro de Honra”, de grandes dimensões, onde seriam inscritos os nomes dos mortos no conflito. Esta solução ditava que os milhares de mortes provocados pelo conflito deveriam permanecer um assunto privado e pessoal, arredado do espaço público e, nessa medida, situado fora da esfera da responsabilidade política.

Imagem 2 – Placa informativa

Não tendo este projeto sido levado a termo, as reclamações de alguns combatentes no sentido do reconhecimento dos nomes das vítimas de guerra, levou a que o projeto do monumento passasse a incluir uma área memorial, de acesso permanente, composta por um mural com as placas dos nomes dos mortos nos conflitos, colocado na muralha do Forte do Bom Sucesso, por detrás do monumento, e enquadrada por este. A cerimónia de inauguração das placas realizou-se no dia 5 de fevereiro de 2000, e foi presidida pelo Presidente Jorge Sampaio. Aqui, o cenário foi outro. De acordo com a notícia publicada pelo Jornal de Notícias no dia 6 de fevereiro, intitulada “Chagas do Ultramar sanadas pela pedra”, assim que Jorge Sampaio abandonou o local, as centenas de pessoas que assistiram à homenagem invadiram o memorial, seguindo com os dedos os nomes dos mortos dispostos cronologicamente por ordem alfabética, até encontrarem “os seus”, familiares ou camaradas. O jornalista adjetiva todos, mortos e sobreviventes, de “vítimas” do conflito, como o caso de um certo Virgínio da Silva Lima, ex-fuzileiro, agora na miséria, que entrega o seu relato: “Todos os dias me lembro dos meus companheiros, não temo a solidão e o sofrimento, aprendi a conviver com eles. Não há heróis na guerra, todos temos medo” (in Jornal de Notícias, 06.02.2000).

Antropologia e performance

A articulação do discurso da vítima, bem presente no relato anterior e em muitos outros de ex-combatentes que, paulatinamente, foram encontrando formas e palcos de expressão desse estatuto, é algo que requer tempo. São geralmente precisos cerca de 25 ou 30 anos – o tempo de uma geração – até que uma comemoração autorreflexiva tome lugar. Por exemplo, aquilo que hoje se pode designar como uma autêntica “paixão” pelo Holocausto, apenas começou a ter expressão a partir dos anos 70 do século XX. A questão geracional indicia a necessidade de uma distância temporal suficiente em relação aos acontecimentos que possibilite uma confrontação com o passado relativamente pacífica do ponto de vista social. A excessiva proximidade temporal com eventos problemáticos pode fazer com que uma memorialização precipitada seja deflagradora de uma conflituosidade social particularmente disruptiva (Connerton, 2008), sobretudo se considerarmos que num tempo demasiado próximo aos eventos, as pessoas neles envolvidas ainda não tiveram tempo para refazer as suas vidas e são, por isso, demasiado suscetíveis aos seus efeitos. Como refere Benjamin Stora, “Após períodos de grandes febres, levantamentos, guerras, revoluções, massacres, genocídios, as sociedades acumulam silêncios para que todos os cidadãos prossigam a sua vida em conjunto. É somente depois que as memórias dolorosas retomam à superfície das sociedades” (Stora, 2008: 7). Até lá vivem no subterrâneo da memória pessoal, à espera de um reconhecimento social mais vasto ou, apenas, da possibilidade de contar. A questão geracional relaciona-se, também, com essa urgência em contar a história num momento em que os seus protagonistas se começam a aproximar do fim das suas vidas. A ânsia de contar, presente em muitos daqueles que participaram em eventos traumáticos, é uma ânsia de ser “aliviado” do excesso de memória pessoal, num contexto de escassez de memória coletiva que lhe permita dar um significado mais amplo aos eventos. É, em última análise, uma ânsia de ultrapassar o trauma, por via da integração da consciência individual da pessoa que experienciou os eventos com a consciência coletiva que lhes atribui um significado, chamando a atenção para o facto de que recordar a violência passada não é apenas um ato terapêutico, mas fundamentalmente um ato político. A ânsia de ultrapassar o trauma é a ânsia de comemorar.

O antropólogo Michael Jackson, inspirando-se em Hannah Arendt, considera que um dos atos mais violentos que podem ser perpetrados contra seres humanos é o ato de privar o indivíduo de fala e de ação. Não se trata, explica Jackson, apenas de uma necessidade fundamental humana

de reconhecimento, mas de “uma necessidade mais profunda de alguma integração e equilíbrio entre o mundo pessoal de cada um e o mundo mais vasto dos outros” (2013: 170). A inscrição dos nomes não é, portanto, apenas uma questão de reconhecimento, mas uma questão de legibilidade dos acontecimentos no contexto mais vasto da história e da sociedade portuguesas. Como refere Friedman “os memoriais são substitutos legíveis da ilegibilidade do Vazio” (1995: 66). Ler é atribuir um significado mais explícito do que o significado apriorístico contido na representação estilística veiculada pelo monumento. Ler o nome de um familiar ou de uma companheiro inscrito no mural, é não só obter reconhecimento por um drama individual, mas também o reconhecimento da integração desse drama individual num drama coletivo mais vasto. É a nomeação que permite que, se não os antigos combatentes, pelo menos o resto da sociedade enterre o passado e siga em frente. A própria ordenação cronológica dos nomes dos mortos no mural é uma forma de “enterro” do passado, pois ao definir um intervalo temporal no qual os eventos ocorreram (1961-1975), remete o drama social em questão para o passado, deslocando-o do presente. O mural transcende, portanto, a possibilidade de a guerra ter sido parte da nossa vida quotidiana há pouco mais de uma geração atrás. O passado fica “enterrado” no passado. Os nomes inscritos no memorial permitem ler que assim é. Daí a preocupação com a legibilidade dos nomes e as ações de restauro no local no sentido de garantir que o tempo não apaga o enterro do passado (ver Imagem 3).

O Monumento aos Combatentes: A Performance do Fim do Império no Espaço Sagrado da Nação

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Mas uma leitura mais atenta dos nomes inscritos nas placas memoriais revela ainda um outro fechamento para o drama coletivo aí representado. 8831 é o número oficial de mortos resultante das guerras travadas por Portugal em África (Angola, Moçambique e Guiné-Bissau) entre 1961 e 1975. No entanto, os nomes inscritos aproximam-se dos 11 000, de acordo com informação de Ricardo Varandas dos Santos, Diretor do Arquivo Histórico da Liga dos Combatentes. A diferença apurada deve-se, por um lado, ao apuramento posterior de mortos em combate cujos corpos ou nomes permaneciam à data da colocação das placas desconhecidos e, por outro, à inclusão na listagem de nomes de soldados locais que lutaram ao lado das Forças Armadas portuguesas. Chihunde, Chipanda, Cuvale, Cussivila, são alguns dos nomes que constam na listagem, muitos dos quais foram acrescentados posteriormente à colocação inicial das placas, em “adendas” nominais que quebram a ordenação cronológica. Muitos mais permanecerão desaparecidos em território africano sem que o seu nome seja alguma vez reconhecido. A sua inclusão no memorial dramatiza, independentemente da sua interpretação como um ato de justiça, uma leitura particular a partir da qual o fim do império, bem como toda a experiência imperial portuguesa, se perpetua no imaginário coletivo nacional. Adriano Moreira, Orador Oficial na cerimónia de inauguração do Monumento aos Combatentes do Ultramar, em 1994, deixaria bem claro no seu discurso quais os fundamentos de tal grelha interpretativa, quando nele proclama a perenidade daquele

espaço, de geometria variável mas vasto, onde a ação missionária, a intervenção civilizacional, a troca dos padrões de conduta, os enxertos de homens, definiam uma zona cultural específica, que ficou e dura para além da derrocada da estrutura imperial europeia portuguesa (Adriano Moreira in Magalhães, 2007: 107).

Atravessado pela mitologia da excecionalidade erigida na última fase da retórica imperial estadonovista, para fazer face às pressões externas no sentido da independência dos territórios africanos, o fim do império é lido, a partir do palco performativo criado pelo Monumento aos Combatentes, simultaneamente como fechamento – o fim do império em termos geográficos e políticos – e como perpetuação – a sua continuidade enquanto imagem de civilização. São as contradições inerentes a esta dupla condição que fazem com que o Monumento aos Combatentes do Ultramar seja um espaço liminar.

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 112-116)

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