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“Eu tenho estado preocupado com as cicatrizes”

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 54-56)

Cartas de Amor e Saudade é o nome da instalação de Manuel Botelho apresentada ao público em Cascais no Verão de 2011. A cobrir as paredes do primeiro espaço um conjunto de panos de tendas de campanha revelam a “história de homens, a história abstracta da guerra e da morte” (Pinharanda, 2011:13). Em frente, três imagens em grande formato invocam a circulação de pessoas, palavras, sentimentos entre o “cá”, o que já foi “lá” e o que agora “não deixa de fazer, de modo diferente, parte do ‘cá dentro’” (Sanches, 2006:8).

A segunda sala constitui-se como um novo “dispositivo cénico” (Pinharanda, 2011:13), recriando um ambiente doméstico, envolto numa luz doce, onde se podia ouvir algumas palavras das cartas trocadas entre Portugal e a Guiné nos anos 60:

Antropologia e performance

“Bom dia meu amor. Sabes onde te estou a escrever? Dentro de um Jipe que está debaixo de uma árvore. Por acaso até está à sombra, o fresquinho vai correndo e ouvem-se os passarinhos a chilrear. Mas para te ser franco, apesar do sítio ser romântico tomara ver-me livre daqui para fora. Cada dia que passo nesta terra horrível e tão longe de ti parece ter o dobro ou o triplo das horas. […]” (in Botelho, 2011:31)

Numa outra carta:

“os homens da minha companhia voltaram a ter contacto com o inimigo. Quando os vi regressar nos Unimog até me assustei, vinham sujos de lama e sangue, as cores das fardas já não se conheciam, as caras eram autênticas máscaras de lama! E vê lá tu, querida, um dos nossos alferes pisou uma mina que lhe arrancou a perna e o pé e teve de ser evacuado de helicóptero para Bissau. […] Quando se soube a notícia sentiu-se um silêncio profundo e tudo ficou triste, alguns nem puderam suster as lágrimas.” (in Botelho, 2011:31)

A produção artística de Manuel Botelho apresenta uma preocupação vital com Portugal. Segundo Porfírio: “desde o início, a vida e a obra, a biografia e as artes, estão intimamente ligadas no percurso de Botelho; entre os anos de 1980 e a actualidade o trabalho deste pintor é uma meditação sobre o seu país […]” (Porfirío, 2010:65). O artista debate a experiência histórica do colonialismo, o tempo denso do fascismo através de um comentário crítico e reflexivo dirigido à Guerra Colonial travada em territórios africanos.

Entre 2006 e 2008, visita o Museu Militar e fotografa as armas usadas neste conflito nos diferentes teatros da guerra. Esta reflexão leva-o, também, à Feira da Ladra em Lisboa procurando objectos e documentos que lhe permitem pensar este período da história portuguesa, reunindo “botas, velhos camuflados, capotes, papéis, fotografias, aerogramas” (Porfírio, 2010: 66) que mobilizou nos seus projectos subsequentes.

O artista dá a ver o “quadro ideológico do fascismo”6, fazendo-nos recuar e

interpelar o passado colonial. Na entrevista realizada, referindo-se à exposição Professores patente no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian7, Manuel Botelho assinala precisamente este aspecto:

“A reflexão sobre as questões de identidade é uma espécie de infra-estrutura

do meu trabalho, desde sempre. Recentemente eu expus na Gulbenkian um trabalho baseado nas mensagens de Natal [dos soldados portugueses durante a guerra colonial]. Eu utilizei as mensagens de Natal por uma razão muito clara: na exposição da Gulbenkian tinha dois grupos de trabalhos: tinha um que tinha os militares a falar e tinha outro onde ninguém falava. Tinha de facto os soldados a falar sem dizer nada, que para mim é a imagem bem acabada desse obscurantismo e dessa incomunicação, do atabafamento desse assunto durante anos. Portugal esteve envolvido numa guerra e nós nunca soubemos nada dessa guerra. As únicas imagens as quais tínhamos acesso eram imagens estereotipadas deles a dizerem uma frase que era invariavelmente a mesma: mandarem as boas festas às famílias e às namoradas. E eles falavam, mas não diziam nada. A gente a única coisa que sabia é que naquele dia, aquela hora aquela pessoa estava viva. Através de uma coisa onde aparentemente se fala, é do silenciamento que eu estou a falar. E tudo isto se liga com o quadro ideológico do fascismo.

Eu tenho estado preocupado com as cicatrizes. E as cicatrizes é aquilo que a gente tem na pele. Interessa-me o soldado que teve caladinho e aguentou. Que veio de lá sem uma perna com os neurónios todos escangalhados.”8

O artista posiciona-se criticamente perante as lógicas hegemónicas do Estado debatendo a identidade nacional trazendo à colação a subalternidade “doméstica”, as “cicatrizes”, o povo “subexposto”, dando voz ao “soldado calado”. Manuel Botelho denuncia, deste modo, a história dos que ficaram arredados do discurso hegemónico e dominante.

Esta iconografia da “nação” constitui-se como um parapeito para a discussão e acção sobre o mundo. Através da exploração da espessura ideológica e biográfica de objectos pré-existentes, Manuel Botelho reactualiza e exibe o passado para pensar os tempos actuais. Num texto escrito entre 2008 e 2009, referindo-se à sua prática artística afirma:

“Já lá vão quase 3 anos de trabalho e sinto que não esgotei este filão. Ao longo desse tempo li livros, vasculhei depoimentos sobre a “nossa guerra”, […] mas em nenhum caso pretendi ilustrar factos reais, específicos. Por isso, as imagens muitas vezes escaparam à ideia que lhes teve na origem e tomaram direcções imprevistas. Desligadas de uma leitura fixa e imutável, basta trocá- las de lugar para num instante tudo ser diferente … E a guerra de há 40 anos pode tornar-se na guerra de hoje.” 9

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3.2. Pedro barateiro:

“Agradecemos aos nossos clientes que não discutam

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 54-56)

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