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O Monumento ao Combatente

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 110-112)

Segundo fonte do Estado-Maior General das Forças Armadas, revelada à Agência Lusa em 1990, 8831 é o número oficial de mortos resultante das guerras travadas por Portugal em África (Angola, Moçambique e Guiné- Bissau) entre 1961 e 1975. Serão mais, muitos deles nunca contabilizados, se a esta cifra juntarmos os militares africanos recrutados localmente que lutaram ao lado das Forças Armadas portuguesas e que compunham uma larga percentagem dos efetivos militares em combate (que atingia mesmo os 50% em Moçambique). Aos mortos juntam-se os feridos, que as estimativas apontam para cerca de 30 000. E os cerca de 140 000 que se estima padecerem de “distúrbio pós-traumático de stress de guerra”. No seu tempo de duração, as guerras coloniais, designadas de Guerra do Ultramar na aceção de um regime que se afirma pela unidade e indivisibilidade de Portugal e suas Províncias de além-mar, envolveram 1 368 900 homens, dos quais cerca de 800 000 eram oriundos da denominada metrópole. 80 000 é o número de militares que regressaram a Portugal entre 1974 e 1975, no desfecho do conflito (Ferreira, 1994: 83 e 87).

Os números importam. É muita gente. Sobretudo se tivermos em conta a demografia do país: entre 1960 e 1970, a população portuguesa metropolitana pouco ultrapassava os 8,5 milhões de habitantes. O número de mortos, mutilados e traumatizados de guerra, a que se junta ainda um outro número, e uma imagem – o êxodo dos territórios africanos de 500 000 “retornados” e a sua chegada ao aeroporto de Lisboa e aos cais de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos – ferem uma outra imagem mais perene, construída ao longo de decénios, de um colonialismo exemplar e excecional. Considerando que o império foi, e continua a ser, o principal tropo de articulação da narrativa identitária portuguesa (Peralta, 2013), o seu fim e concomitante processo de descolonização representam um dos principais dramas sociais da história e da sociedade portuguesas.

Para Eduardo Lourenço, escrevendo em 1977-78, e notando com perplexidade o facto de a “amputação” da “componente imperial da nossa imagem” não ter provocado conturbações maiores, “em nada nos [afetou] o regresso aos estreitos e morenos muros da «pequena casa lusitana»” (Lourenço, 1978: 43). A “descolonização exemplar” que muitos propalaram, sendo fruto de um “alheamento” generalizado dos portugueses em relação à história, como refere Lourenço, ou resultado de um cúmulo de contingências históricas e políticas particulares, que precipitam e aceleram o processo de descolonização, acomoda contudo no seu seio um conjunto de tensões assinaláveis. Os números evidenciam essas tensões. Tal como o evidenciam as próprias divisões no seio das Forças Armadas e as relações destas com as novas forças políticas que se institucionalizam no Portugal democrático.

Em última análise, o que motivou a emergência do Movimento das Forças Armadas (MFA) e o 25 de Abril de 1974 foi a necessidade de pôr fim aos conflitos em África. Existiam, contudo, no seio das Forças Armadas, e entre estas e os políticos civis, diferentes leituras no que toca ao rumo a dar à descolonização, leituras estas que traduziam também diferentes agendas ideológicas e diferentes posicionamentos relativamente ao papel histórico de Portugal enquanto agente colonizador. O direito das colónias à autodeterminação revelou-se uma questão sensível, acabando mesmo por ser omissa do Programa das Forças Armadas, optando-se antes, por pressão do General Spínola, por se lançarem “os fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz” (in Fernandes, 1994: 55). Ainda que o curso dos acontecimentos tenha resultado numa descolonização rápida,

Antropologia e performance

precipitada pela conjuntura internacional e pelo clima político do país, ficou por fazer a integração dos diferentes papéis dos militares nas guerras coloniais, no 25 de Abril e no concomitante processo de descolonização. Do ponto de vista da opinião pública, conforme expressa pela comunicação social e pela via das relações privadas e de vizinhança, acumulam-se representações de sentido inverso. Ora “assassinos” e “criminosos”, perpetradores de uma guerra ignominiosa contra os povos africanos, ora “heróis de abril” que libertaram o país do jugo ditatorial, ora “vítimas traumatizadas” ao serviço do dever à pátria, indevidamente reconhecido ou mesmo ostensivamente descurado, como no caso dos muitos ex-combatentes que têm vindo a expor insuficientes condições de vida e de habitação.

O Monumento aos Combatentes do Ultramar foi pensado e erigido de forma a conferir legibilidade às tensões que este passado – bem como seus atores militares – acomoda e reduzir a dissonância entre a imagem que a força da realidade do fim do império impôs sobre a mitologia imperial construída desde o período republicano e mais intensamente durante o Estado Novo (Peralta, 2011). Fruto da iniciativa, em 1985, da Associação de Comandos e da Associação dos Combatentes do Ultramar, a que se juntaria, em 1986, a Liga dos Combatentes, acabando por a encabeçar, a construção de um monumento em homenagem àqueles que combateram em África ao serviço de Portugal foi norteada por objetivos muito claros. De acordo com a memória descritiva disponível no site da Liga dos Combatentes, o “monumento foi construído em homenagem a todos aqueles que tombaram ao serviço da Pátria, durante a Guerra do Ultramar (1961 a 1974)”, com os objetivos de

1) Cumprir um ato de justiça, de homenagem àqueles que, como Combatentes, serviram Portugal no ex-Ultramar português; 2) Exercer uma ação cultural e pedagógica de exaltação do amor a Portugal; 3) Traduzir de uma forma simples, mas duradoura e pública, o reconhecimento de Portugal a todos esses combatentes.1

O general Altino Magalhães, então Presidente da Liga dos Combatentes e da Comissão Executiva do Monumento aos Combatentes do Ultramar, vai ainda mais longe. Na sua leitura, a edificação do Monumento era um urgente “imperativo nacional”, face à “injustiça das injúrias” produzidas no período

 - http://www.ligacombatentes.org.pt/upload/forte_bom_sucesso/exp_permanen- tes/003.pdf. Acedido em 30.05.2013.

O Monumento aos Combatentes: A Performance do Fim do Império no Espaço Sagrado da Nação

pós-revolucionário contra os ex-combatentes, de forma a “repor no País, o sentido de respeito pelos valores cívicos e morais da Nação, que tinham sido tão violentamente ofendidos e abalados” (Magalhães, 2007: 18).

O Monumento surge, portanto, como um imperativo no sentido da normalização da ordem social. Esta normalização envolve a sanação dos ressentimentos dos ex-combatentes mediante o reconhecimento do seu serviço a Portugal e a sua dignificação no seio da sociedade portuguesa como um ato de justiça. Estes atos de justiça e de reconhecimento são acompanhados, no campo das reclamações concretas, de um conjunto de reivindicações por parte dos ex-combatentes, como sejam a contagem do tempo de mobilização para efeitos de reforma ou a criação de mecanismos de apoio e de assistência às várias situações críticas resultantes do envolvimento destes no conflito, como a dos estropiados de guerra que se mantinham arredados da vista pública em hospitais militares, dos casos de stress pós- traumático ou da assistência às famílias dos combatentes mortos, deficientes ou doentes. No plano simbólico, a integração é feita mediante a articulação de um conjunto de verdades autoevidentes que acompanham a edificação memorial e que estão clarificadas nas opções lexicais tomadas na definição dos objetivos norteadores da construção do monumento: a guerra a que o monumento alude é a “Guerra do Ultramar”, não é a “Guerra Colonial”, pelo que os territórios onde essas guerras foram travadas eram territórios ultramarinos, não colónias; a unidade territorial e política de referência implicada nessa guerra é a “pátria” portuguesa, cujo amor deve ser pedagogicamente exaltado. Transcendem-se as mortes individuais por via da transcendência atribuída à perenidade da pátria e ao seu devir histórico. A “Guerra do Ultramar” não foi assim, voltando a citar o General Altino Magalhães, “uma ação deliberada de mal feitores”, mas antes “o cumprimento consciente, com honra, com dignidade e com grandes sacrifícios, do dever cívico indeclinável de legítima defesa do Estado e da vida das nossas populações, na situação da criminosa guerra que tivemos de enfrentar” (Magalhães, 2007: 18). O caso estaria encerrado, não fossem os diferentes focos de tensão que impõem uma leitura mais complexa do trauma histórico criado pelas guerras coloniais e pelo fim do império.

Esta leitura é desde logo sugerida pela intensa polémica que acompanhou, primeiro, o processo de construção do monumento e, depois, a sua inauguração. A “Comissão Nacional Pró-Monumento em Memória dos

 

Mortos no Esforço da Guerra Ultramarina”, criada em 1985 por iniciativa da Associação de Comandos e da Associação dos Combatentes do Ultramar, acabaria por ser extinta logo em 1986 quando a Liga dos Combatentes, depois do Chefe do Estado-Maior do Exército, General Salazar Braga, lhe ter garantido apoio financeiro para a construção do monumento, “decidiu encabeçar e procurar unificar [o] movimento” (Magalhães, 2007: 20). É então criada a Comissão Executiva do Monumento aos Combatentes do Ultramar, liderada pela Liga dos Combatentes e constituída por um conjunto de instituições consideradas de carácter patriótico. Esta Comissão considerou

indispensável a constituição de uma Comissão de Honra para a construção do Monumento de forma a dar-lhe, nas palavras do então Presidente da Liga, “o cunho, bem ostensivo, da aprovação e da participação do Estado no ato de justiça nacional que se pretendia realizar” (Magalhães: 2007:23-24), tendo-se entendido que tal Comissão teria de ser necessariamente presidida pelo Presidente da República, à altura Mário Soares. Feito o convite, Mário Soares declinou-o, declarando não desejar fazer parte dessa Comissão pois, na sua leitura, o Monumento veicularia tacitamente uma imagem de concordância com a guerra do ultramar, imagem essa que não subscrevia.

Os militares não lhe perdoariam. Na inauguração do Monumento em 15 de janeiro de 1994, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém, Mário Soares é vaiado e chamado de traidor. A polémica estava anunciada com críticas à direita e à esquerda quanto à participação de Mário Soares na cerimónia. Kaúlza de Arriaga escreveu que a presença de Soares era “ofensiva” devido às suas responsabilidades no “trágico processo de descolonização”; Vasco Lourenço justifica a demarcação da Associação 25 de Abril do evento devido ao carácter “saudosista e passadista” do ato (in Diário de Notícias, 16.01.1994). Mário Soares chamou-os a todos, mais àqueles que o apupavam no decorrer da cerimónia, de “extremistas” e antidemocratas. Na sua leitura, a homenagem impunha-se como “um exemplo de respeito por aqueles que morreram no Ultramar, independentemente das suas convicções”, lembrando “que muitos dos que morreram (…) não concordavam com a política colonial do Antigo Regime” (in Jornal de Notícias, 16.01.1994).

 - Constituem a Comissão a Sociedade Histórica da Independência de Portugal, a Sociedade de Geografia de Lisboa, a Liga dos Combatentes, a Associação dos Deficientes das Forças Armadas, a Associação dos Comandos, a Associação dos Es- pecialistas da Força Aérea Portuguesa, a Associação dos Combatentes do Ultramar e a Associação da Força Aérea Portuguesa.

A polémica estabelece-se também para além do palco comemorativo onde o monumento de situa, ao nível das muitas associações de ex- combatentes que, com maior ou menor expressividade social, disputam com a Liga dos Combatentes a propriedade desta memória. Em contraste com a leitura oferecida pela Liga, segundo a qual a guerra foi um “dever cívico fundamental” que os portugueses cumpriram com honra em “defesa da nossa Pátria, nas condições difíceis das guerras que, do exterior, nos foram impostas” (Magalhães, 2007: 16), associações de combatentes não-alinhadas com a Liga oferecem uma leitura menos heroica do conflito. É o caso da Associação Combatentes do Ultramar Português (ACUP) criada em 2000 com o objetivo de reclamar politicamente um maior apoio aos deficientes e aos doentes de stress pós-traumático e a contagem do tempo de mobilização para fins de reforma, lançando para isso um abaixo- assinado que viria a ser entregue à Assembleia da República. Na leitura desta Associação, os combatentes foram “obrigad[os] a pegar em armas para defendermos, o que então se dizia ser, o interesse da pátria” e que têm “sido esquecidos” por “muitos dos que hoje detêm o poder [e que] parecem ter vergonha de nós”. Estas leituras de sentido inverso evidenciam que,

tal como todos os lugares de memória, o Monumento aos Combatentes do Ultramar é um lugar de conflito e de luta entre versões dissidentes sobre um mesmo passado, evidenciando as tensões criadas entre a experiência direta do passado e a organização dessa experiência em formas de conhecimento que a tornem inteligível (Sandage, 1993: 137). A performatividade do próprio Monumento aos Combatentes é um instrumento poderoso neste processo, envolvendo uma integração entre memória, esquecimento e identidade da comunidade social.

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 110-112)

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