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O temperamento do jogo dramático

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 41-44)

O jogo dramático opera ao nível da fronteira entre o corporal, o cognitivo e o simbólico, através da experiência participada em grupo. Todos os mecanismos de produzir extensões de que ele se serve são determinados sobre o contexto produzido e emergente em cada jogo. Explora-se a dimensão emocional do trabalho de corpo que traduz, mobilizam-se os afetos, e assegura-se o envolvimento consciente da pessoa dentro do enquadramento do jogo, no cumprimento das suas regras, e fora do enquadramento convencional do self.

Sintetizando as suas qualidades estruturais, o jogo dramático envolve: (1) voluntariedade para jogar e liberdade no jogo que se joga; (2) o reenquadramento de mensagens, que implica uma sensação de deslocamento, de transformação do quotidiano; subjuntividade e, por isso, transporte do jogador para uma outra mundividência (Schechner, 2003); (3) um conjunto de regras ou procedimentos para a interpretação que pode não ser consentânea com as da vida real; (4) metacomunicação (Bateson, 1987), uma vez que o jogo começa por se referir a si próprio, introduzindo a possibilidade de se reinventar e reclassificar as ações, e desenvolver novos enquadramentos, mesmo que paradoxalmente. O jogo enquadra-se fora da vida, refere-se a si próprio. O jogo joga-nos (Gadamer, 1999); (5) reflexividade, isto é, a ação exerce-se sobre a própria prática do jogo, e sobre o sujeito que o pratica; (6) liminaridade (Turner, 1992) e paradoxo, está no domínio do “como se”; não é aquilo que representa e, portanto, o que representa não existe. Ele não é somente jogo, é igualmente uma mensagem sobre si próprio, uma metamensagem e que, simultaneamente, pertence ao mundo e não é deste mundo (Bateson, 1987). Ao ser o que não é, ao (re)enquadrar enquadramentos reflexivamente do que não existe, ele é paradoxal. Sendo liminar, inverte e subverte a realidade e a estrutura social mundana, e todos os papéis que nele desempenhamos desconhecem a lógica das hierarquias impostas na esfera pública; (8) expressões, isto é, objetivações, representações, sedimentações que resultam do ato e experiência de jogar.

Tudo começa com a liberdade de jogar, uma predisposição para entrar num enquadramento outro, no sentido de uma atitude que se toma para se libertar, se separar da vida quotidiana. É um estado de espírito, uma atitude, uma experiência, uma força que, por ser dramática, paralelamente, dá a ordem da ação e do discurso. Etimologicamente, drama vem do grego dran,

“fazer, agir”. Significa, primeiramente, ação. Sugere-se que a narrativa emerge dessa ação que implica um conhecimento experimental que é jogável. Há no jogo dramático elementos que estão fora e para além das palavras que têm de ser interpretados como ação que acontece, que é performada no aqui e agora. A performance é o requisito essencial do drama, dá a ordem do discurso e conecta com o sistema de representações, tem significância simbólica na construção da realidade. A performance do jogo dramático está associada ao ritual porque também “passa por entre”, é um espaço de passagem temporário numa ação previsível e regulada, uma forma de interação social com um sistema de propósitos, um modelo de significado que mantém a eficácia como se da primeira vez se tratasse, como “modelo para”. A performance é parte inerente das expressões de nós mesmos, ao longo da experiência pessoal, é ela que dá sentido consubstanciado ao jogo dramático. Ela opera na dimensão criativa da vida, tanto na construção individual como na do grupo.

O jogo dramático é uma prática coletiva que proporciona conhecimentos sobre os mecanismos fundamentais do teatro. Embora não se possa reduzir o teatro ao jogo dramático podemos, contudo, dizer que há espetáculos que podem resultar apenas de um, ou da combinação de vários jogos dramáticos. Como nos diz Barba, os exercícios são uma “forma pura”:

“There are several categories of exercises, each with different objectives: over-coming obstacles and inhibitions; specializing in certain skills; freeing oneself of conditioning, of ‘spontaneity’, or of mannerisms; the acquisition of a particular way of using the brain and the nervous system. All the different types of exercises involve the development of a scenic bios, which reveals itself onstage through a behavior guided by a ‘second nature’, as Stanilavski and Copeau said.

The exercises do not aim at teaching how to act. Often they do not even aspire to any obvious dexterity. Rather they are models of dramaturgy and composition on an organic, not a narrative level. They are pure form, a linking together of dynamic peripeteias, without a plot, but infused with information which, once embodied by the actor, constitutes ‘the essence of scenic movement’ ” (Barba, 2002: 23). Consideram-se e encaram-se outras realidades e temporariamente habita-se e vive-se com elas, proporcionando descrições e observações da vida quotidiana que, no início, são peripécias, modos de produzir extensões com outras agências: a contracena com o espaço da performance, com os

A política do jogo dramático: marginalidade descentrada como resistência criativa (estudo de caso de um grupo de teatro universitário)

 

objetos ou adereços, ou com os outros jogadores-performers. No centro de dinamismo do jogo dramático há uma dialética entre a criação performativa que as regras do jogo impõem e a ligação que a consumação da criatividade de cada um produz relativamente às referências quotidianas, ou ao senso comum. O jogo dramático distancia do seu contexto original as mensagens, as experiências, os objetos, o tempo e o espaço, e dá-lhes um sentido em novos enquadramentos. Essas mensagens ou experiências surgem como um rompimento, uma separação, e que o jogo permite induzir e transformar em ato criativo do jogador que se consuma e acontece. Somos transportados (Schechner, 2003). Cria-se um novo enquadramento sobre o qual há a segurança da experimentação, de interatividade, de possibilidades criativas múltiplas, de ação espontânea. É nessa liberdade que as conexões parciais com a realidade social são estabelecidas. Também é aqui que se trabalha a possibilidade de constituição das partes teatrais ao longo dos ensaios de preparação de um espetáculo, o que corresponde às primeiras improvisações.

Os principais elementos para entrar no espírito do jogo dramático, onde a géstica que implica o corpo é trabalhada no sentido da autoconsciência (ou da auto-perceção e consciencialização da sua existência e, por isso, da sua possível manipulação), são a espontaneidade, a participação, a intimidade, o prazer, a flexibilidade, a liberdade e o risco, havendo relações harmoniosas entre a parte e o todo (Spolin, 1999). Tudo acontece neste espaço em que se é convidado a entrar, um espaço de disponibilidade para atravessar limites e de aí livremente jogar, no prazer intrínseco de no jogo habitar. Por via do jogar (é intrínseco) nasce um espírito, um temperamento que é associado ao jogo dramático e de que o jogador apenas aufere jogando. Vejamos: a energia que se liberta para atingir os objetivos, estando restringido às regras consentidas, cria uma explosão ou espontaneidade, de onde se libertam quadros de referência que são projetados na ação. Spolin (ibidem) diz-nos que a natureza destas explosões é tudo se poder virar do avesso, ser rearranjado, desbloqueado e manobrado, num clima de uma temporária libertação espontânea. Há um “acordar da pessoa total” que a espontaneidade dentro do jogo dramático promove, expondo uma atitude, uma força, um temperamento de boa disposição e vivacidade de espírito, uma atitude de brincadeira dentro de um engenho, de uma máquina que conjuga sobre o habitus (Bourdieu, 2005).

Susan Stewart (1989) sugere que o nonsense (o absurdo, o contrassenso, o sem sentido, a tolice), aquilo que o jogo instaura e que, em última análise

(quando confrontado com os procedimentos do senso comum), se apresenta como nonsense, é uma forma, uma estratégia, uma tática – tal como definida por Certeau (1998) – importante na vida e na arte, porque define e limita o quotidiano, o ordinário, o real, é jogo. Sem nonsense não há senso comum que é um enquadramento especial do pensamento mundano. Por senso comum referimo-nos ao que Geertz (1983) designa por um sistema cultural de interpretação da experiência que olha o self como um compósito, uma persona, um ponto de um padrão que tem um domínio semântico e que apresenta características estilísticas, ou marcas de uma atitude que estampam de uma forma peculiar a realidade (como o faz a arte, o mito, a ciência). O senso comum representa o mundo como um mundo familiar que todos podem e devem reconhecer. Perante o conhecimento adquirido há um sistema de expectativas mais ou menos claro no horizonte de uma situação, há um universo de sentido que coordena o esquema possível da interpretação. O senso comum é um mundo organizado, o modelo da ordem, da integridade e coerência da vida quotidiana, das formas e conteúdos, mas também dos procedimentos e mecanismos de lidar com eles sendo, indubitavelmente, histórica e culturalmente determinado.

O nonsense de que o jogo dramático no limite do seu mecanismo persegue é visto como o oposto do senso comum, joga quebrando as regras. O que é curioso é que o jogo dramático, apesar de primeiro impor as suas regras, tendo uma atitude ditatorial, numa segunda fase, ele admite e tolera a subversão dessas mesmas regras e fá-lo para induzir a atitude nonsense, uma desestabilização que encerra a possibilidade da sua própria reinvenção. Como Stewart (1989) diz, o nonsense é “aquilo que não devia estar ali”, é desordem, desorganização e reorganização, é “meta”, um discurso (diríamos igualmente, uma ação) sobre a natureza do discurso (ou sobre a natureza das ações). Assim, segundo a autora (ibidem), o nonsense move-se em dois eixos: (1) o eixo metafórico, que implica substituição, reenquadramento, descontextualização e recontextualização; (2) o eixo metonímico, que implica combinação, refere- se à estrutura sintática em vez de ao nível de abstração. E neste movimento, continuando com Stewart, o nonsense refere: (1) movimentos de inversão e de reversão em que se evita categorizar os sistemas de categorização, há um evitar da anomalia; (2) o jogo que advém das características intrínsecas à linguagem, da repetição que lhe dá a capacidade de se constituir como um jogo até ao infinito; (3) coordenação e subordinação, em que a coordenação permite conectarem as realidades numa forma que está em aberto, e a subordinação que as conecta por via de uma forma fechada.

Antropologia e performance

O nonsense contém, portanto, procedimentos que podem ser introduzidos pelo jogo dramático em ordem, no limite, a essa atitude jocosa, de entrar no jogo e explorar espontaneamente as suas regras contextualizadas para um drama e que, por isso, permite descontextualização e recontextualização, o que a autora diz serem movimentos característicos da possibilidade de mudança. Sutton-Smith (2001) diz-nos que o nonsense, assim elaborado, é o mais profundo carácter do temperamento do jogo, a jocosidade (playful), ou o espírito de brincalhão, alegre, trocista, paródico, irónico, e/ou ridículo, que é amplamente ativado por via dos enquadramentos do jogo dramático. O jocoso é o meta-jogo dramático. Funciona questionando, criticando, convidando a uma reavaliação do fenómeno que introduziu, das regras que o jogo dramático imprimiu e que o nonsense reinventa. E isso é válido para o discurso e para as ações do quotidiano que formam a géstica do senso comum e que têm o corpo como transdutor (Gil, 1980), nos seus conteúdos e procedimentos, aqueles que configuram o habitus (Bourdieu, 2005). O jogo dramático contém, por isso, as ideias de limite dentro de uma máquina que conjuga, combina, adapta e procura operar em harmonia (mesmo que no caos), mas também as ideias que consuma de criatividade, de liberdade e de invenção na margem de movimentos possíveis que objetiva.

A manipulação do senso comum é uma característica do comportamento jocoso, do temperamento predileto do jogo dramático. E é por isso que Stewart (1989), reportando-se ao trabalho de Bateson (1987), vem a sugerir que o nonsense acaba por ser uma aprendizagem sobre como aprender. Nonsense é aprender a aprender, na medida em que depende da habilidade em se classificarem os contextos; em se libertarem as mensagens da situação e do propósito que se está a trabalhar; em se reconhecer e organizar aquilo que forma o contexto, ou se enquadrar uma situação do senso comum. O exemplo que o autor dá é ver-se uma imagem numa mancha de tinta. Não se trata de saber se está ou não correta essa representação em imagem da mancha de tinta, apenas se constitui como uma maneira de vê-la e imaginá- la. É como se houvesse marcas pontuadas numa mensagem impressa (o que Bateson chama de sinais metacomunicativos), que o jogo dramático explora e trabalha.

Aprender a aprender depende, sublinho, da habilidade em se classificar contextos. E para além disso pode igualmente ser adaptativo, no sentido de se verificar que persiste ao longo do crescimento de uma pessoa, como acontece num grupo de teatro que pratica durante vários anos a experiência do jogo dramático. Basta ser correta a expectativa de um padrão experimentado

que se passa a inscrever, tornando-se memória incorporada que pode ser usada. Aqui, há uma potencialidade da “pontuação” se inscrever e, portanto, se fazer incorporar. O que importa no jogo dramático é sobretudo essa sua capacidade de se aprender a aprender, de se reconhecer e organizar as condições da resposta a determinado contexto. De facto, não interessam tanto os conteúdos que se estão a jogar mas, mais, os enquadramentos, as discriminações e as classificações que permitem a produção do contexto. Assim, conta a flexibilidade, a liberdade e o risco, perante uma hierarquia de relevância do sentido que se dá às coisas. E a originalidade, a flexibilidade e a redundância podem ser dispositivos potenciadores que o jogo promove e conduzir à variabilidade adaptativa, biológica e cultural (Sutton-Smith, 2001).

O jogo dramático é uma prática coletiva. Mesmo que possa ser jogado individualmente (fica-se, contudo, seriamente limitado), o seu propósito geral é o da prática coletiva, ele reclama pelo coletivo. O jogo dramático tem a função de proporcionar a aprendizagem de procedimentos, comportamentos, formas de ação que contém certas formas de coparticipação social. É necessário interligar a ação coletiva no processo de adquirir conhecimento com as representações mentais desse procedimento e dessa capacidade. Lave e Wenger (2009) alertam-nos para o facto de a aprendizagem envolver um processo de envolvimento numa “comunidade de práticas”, produzindo um modelo a que chamaram de “aprendizagem situada”. Sendo situada, está associada a um tipo particular de prática, a enquadramentos específicos, o que eles chamam de “participação periférica legítima”. A aprendizagem torna- se um modo de compreender a aprendizagem. De alguma forma, a estrutura é uma variável que emerge da ação e não tanto uma pré-condição invariável (apesar da “aptidão para”, o self pode não usufruir dessa competência na prática). Aprende-se fazendo, maximiza-se a aprendizagem, performando, continuamente renegociando significados. As comunidades de práticas são simplesmente formadas por pessoas que “embarcam” juntas num processo de aprendizagem coletiva, num domínio partilhado de comportamentos e conhecimentos, como acontece com cada uma das gerações do CITAC, por via do jogo dramático. São modos de mútuo envolvimento, de participação; é um empreendimento partilhado, um processo que se reflete em experiências e no desenvolvimento de um repertório de conhecimento comum (rotinas, sensibilidades, vocabulário, etc.), de memória incorporada onde se negoceiam os significados.

A vida que jovens-adultos experienciam num grupo de teatro revela que o jogo dramático contribui para uma aprendizagem que com o tempo

A política do jogo dramático: marginalidade descentrada como resistência criativa (estudo de caso de um grupo de teatro universitário)

 

potencialmente se inscreve, se transpõe e salta para a vida real em forma de procedimentos e mecanismos de relação. Quando um grupo de pessoas embarca num curso de formação teatral estão vários meses, diariamente, em contínuas sessões de trabalho que envolvem diferentes abordagens ao teatro e, por isso, formas específicas de enquadrar o jogo com o drama. Envolve, por isso, conhecimento ou competência técnica mas, mais importante ainda, o processo de aprendizagem em grupo faz com que os membros desenvolvam um conjunto de relações em redor dessa prática comum. Essa partilha conjunta faz emergir um sentido de identidade de onde se configura um ethos particular. Pensa-se que o facto de haver, por princípio, a ideia de experimentar os procedimentos teatrais no seio do CITAC e com isso a possibilidade de se situar ao nível do aprender a aprender – talvez até, a possibilidade de se vir a situar ao nível do aprender a aprendizagem de se aprender que para Bateson (1987) corresponde ao plano da arte –, está relacionado com a produção de um ethos comum e com características muito peculiares que definem a identidade de ser citaquiano.

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