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Poder e formas de classificação social

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 153-157)

Em resposta à missiva desesperada de Jack Pestana a Direcção Geral obrigou-a realizar um combate para avaliar o seu comportamento. Tudo correu bem e Pestana pôde voltar aos ringues. A entidade estatal justificou moralmente a necessidade desta prova14: “visto ter compreendido os

deveres de um profissional. Ganhar ou perder não conta. Conta sim, acima de tudo, ter brio e dignidade desportiva. Foi o que se pretendeu obter com o castigo.”15 O brio e a dignidade desportiva definiam os critérios de entrada

numa comunidade política e moral, onde perder ou ganhar não era o mais importante. Foi em nome destes valores que a Direção Geral procurou mudar o governo do boxe nacional.

Nos documentos que circulavam pelos canais da instituição estatal, o modo como este governo administrava os corpos dos pugilistas foi descrito em tons sombrios. Da denúncia das condições mercantis que caracterizavam o universo do boxe surge uma representação das relações de poder no contexto da modalidade. Estas enquadravam formas de dominação material

 - AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4, Caixa 04/604, 1943, Pasta Boxe, Dossier Inquéritos e Protestos, Carta FPB à Direcção Geral, 28/5/43.

 - AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4, Caixa 04/604, 1943, Pasta Boxe, Dossier Inquéritos e Protestos, Carta da Direcção Geral á FPB, 31/5/43. É possível encontrar no arquivo as queixas de outros boxeurs. Francisco Costa Brito e Manuel Pinheiro.

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e simbólica que remetiam para estruturas de poder que extravasavam em muito o mundo restrito do boxe. O chefe da repartição da Direcção Geral escreveu em 1944 ao delegado Rafael Barradas denunciando o tratamento dado aos pugilistas: “A coberto de contratos assinados com evidente abuso da pouca cultura ou de dificuldade materiais dos pugilistas interessados, há indivíduos que intitulando-se managers estão atentando contra a dignidade da pessoa humana e contra os mais elementares princípios da moral e da justiça. Têm sido vendidos alguns pugilistas como quem vende um animal e têm-se condenado outros à inactividade forçada durante meses por reclamarem o que julgavam pertencer-lhes.”16 Mais tarde, a propósito de um contrato de

trabalho, o próprio delegado se insurgia contra situações em que “uma das partes dispõe dos méritos e serviços da outra não têm paralelo em qualquer país civilizado e só e comparável à propriedade de um escravo ou de um cavalo ou cão. De um lado, exactamente aquele que trabalha, nem sequer existe a regalia de poder rescindir um acordo ruinoso, do outro existem todas as faculdades e regalias.” Sobre outro contencioso arbitrado pela Direcção Geral, Rafael Barradas afirmou: “só por meio de uma ação enérgica, rápida e profunda, será possível exigir das pessoas que tiram o maior rendimento de meia dúzia de indivíduos boçais e ignorantes, o cumprimento das indispensáveis obrigações que lhes cabe.”17

O tom de indignação e de denúncia justificava a tutelagem do Estado sobre a modalidade mas também sobre os performers, concebidos como alguém desprotegido e incapaz, a quem o modelo desportivo do regime devia moldar o corpo, o seu habitus motor. Era como se Estado se tornasse no próprio performer e que, por intermédio da ordem da interação em ringue, fizesse então nascer outra comunidade de trocas práticas e simbólicas. A sobrevivência de homens como Jack Pestana estava dependente, no entanto, da sua relação com outra comunidade, gerida por valores distintos e com poder para dispor das suas vidas.

A acção de um conjunto de agentes visíveis definia a entrada nesta comunidade. Os managers iam procurar os performers aos clubes amadores, tornavam-se responsáveis pela sua preparação, e vendiam depois os seus préstimos às casas de espetáculos, arrecadando uma percentagem dos ganhos. Esta circulação de mão de obra assegurava a existência de corpos

 - AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4, Caixa 04/516 - 1944, Pasta Boxe, Informação da Direcção Geral ao delegado Rafael Barradas, 26/9/44.

 - AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4, Caixa 04/516 - 1944, Pasta Box, Carta de Rafael Barradas ao Director Geral , 20/9/44.

disponíveis para lutar. Para managers e empresários a performance do boxe não era um desporto, no sentido dos valores nobres de que falava a Direcção Geral, mas um espetáculo; e os performers não eram desportistas, mas trabalhadores contratados. Foi isso que o empresário Domingos Pinto, dirigente de uma das mais importantes casas de espectáculo de Lisboa e também empresário de pugilistas, argumentou junto da Direcção Geral. Pinto fizera contratos com pugilistas a quem exigia exclusividade, “dando-lhe um tratamento semelhante ao que se faz com artistas de circo, lutadores, artistas de music-hall, não os considerando desportistas que de facto não são, pois não concebo que sejam desportistas, e portanto com direitos nessa Direcção- Geral, homens que vendem a um empresário o seu esforço a um tanto por minuto18. Porque há-de um pugilista ser desportista e não o há-de um lutador

ou um voador? Se os actuais voadores do Lisboa Ginásio e do Ginásio Clube Português ingressarem amanhã numa companhia de circo e levarem também com eles, nessa companhia, uma «troupe» de lutadores, por essas províncias fora, continuarão eles a ser desportistas? Em meu entender, e tem sido esta minha tese sempre apregoada, são apenas homens que para exercerem a sua profissão, tiveram de fazer e têm de fazer muito desporto e muita preparação física. Tal e qual como eles, deixei de ser um desportista em «box» no dia em que tirei uma licença de «manager», que traduzida quer dizer negociante e no dia em que abri uma bilheteira e me classifiquei de empresário, tendo para isso abandonado todos os cargos que tinha da Federação, Associação de Pugilismo e clubes da especialidade.”19

As relações laborais entre managers, empresários e pugilistas eram instituídas em contratos de trabalho. Estipulando os direitos e deveres das partes, estes contratos expressavam igualmente a legalização de relações de poder amplas, que iam muito para lá da estrita relação de trabalho. Os

 - Sublinhado no original.

 - AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4 Caixa 04/523, Pasta Boxe, 1945, Dos- sier A, 8/10/45. Numa missiva ao Director-Geral Barradas responde: “no dia em que os pugilistas profissionais deixem de ser considerados desportistas para serem artistas de circo, não haverá mais combates sérios no País. Sucede-lhe o que aconteceu à luta greco-romana. Contra isso insurjo-me veementemente e luto pelo oposto: que os pugilistas, mesmo profissionais, sejam desportistas a cem por cento.” Esta simul- taneidade ideal, entre o profissional e o desportista, colocava questões ao projecto do Estado, já que os corpos requeridos pelo espectáculo comercial e um desporto de valores não eram certamente os mesmos. AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4 Caixa 04/523, Pasta Boxe, 1945, Dossier A, 8/10/45, Carta de Rafael Barradas ao Director Geral dos Desportos, 9/10/45.

Antropologia e performance

contratos invocavam princípios de proteção social e dever moral, num quadro de relação de patrocinato e dependência social. Na redação do contrato estabelecia-se que o lutador, dentro do prazo combinado, devia “obedecer, recebendo e aceitando todos os conselhos, ensinamentos e indicações do referido manager, bem como aceitar, respeitar e cumprir todos os contratos compromissos firmados pelo mesmo com terceiros.”20 A determinação de

direitos e deveres laborais era vinculada a deveres de obediência, pela tutela do conselho e do ensinamento, que de imediato instituíam uma hierarquia material e moral. Segundo esta os serviços do pugilista tinham como contrapartida uma condução e proteção.

Esta troca social, tradução de uma persistente violência simbólica, justificava-se pela pressuposição da incapacidade ontológica destes atletas gerirem a sua vida. Tal perspetiva exprimia a força das representações sobre as classes populares. Num conflito com o pugilista Larsen, dirimido pela Direcção Geral, o referido Domingos Pinto questionou retoricamente: “estou a tratar de negócios com um homem ou com uma criança?”. A frequente infantilização dos pugilistas representava-os enquanto pessoas incapazes, inábeis, volúveis a paixões. Ainda sobre o pugilista Larsen, Domingos Pinto justifica a situação a que chegou pela “vida particular menos regrada, para o qual tem sido arrastado por pessoas que o idolatram – e o absorvem”21.

Em Lisboa, o pugilista vivia “obcecado por pensamentos e desejos”. As aspirações sociais destes indivíduos, saídos da miséria para um mundo de oportunidades, consumos, novas relações, eram reduzidas a manifestações de irracionalidade, realizadas por alguém próximo de um “estado natural”, como o demonstrava, aliás, a sua forma instintiva e pouco trabalhada de estar no ringue. Sem tutela eles necessariamente se corromperiam. Para desacreditar as posições do pugilista moçambicano Xangai numa discussão sobre um contrato, o manager Canelas Júnior afirmou que aquele tinha por hábito “lançar habilidades e mentiras” e era “também um indisciplinado, um ambicioso, um manhoso e um mentiroso”22. Para a Direcção Geral dos Desportos a lógica

mercantil do espectáculo deformava ainda mais estes homens, explorando

0 - AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4, Caixa 04/604, 1943, Pasta Boxe, Dos- sier Diversos, Contrato de Carlos Wilson (Kid Wilson) com o manager Canelas Júnior, 15/6/43.

 -AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4, Caixa 04/604, 1943, Pasta Boxe, Dos- sier Inquéritos e Protestos, Carta de Domingos Pinto à Direcção Geral, em 21/7/43.  - AME, SS, Fundo: DDGEFSDE, Série O4, Caixa 04/604, 1943, Pasta Boxe, Dos- sier Inquéritos e Protestos, Auto de Declarações de Joaquim Canelas, 28/5/43

a sua elementaridade. Num campo que oferecia aos performers poucas possibilidade de desenvolvimento físico, técnico e estratégico, o que definia substancialmente o espetáculo organizado por empresários como Domingos Pinto era o que de mais elementar existia numa luta. Aqui se fundava, também, a relação de comunicação entre os performers e o público.

Apesar dos seus objetivos distintos, tanto a Direcção Geral dos Desportos criada pelo regime do Estado Novo como os negociantes do boxe partilhavam uma visão sobre os pugilistas e através deles, sobre as classes a que pertenciam: a de que os membros destes grupos sociais, porque carentes de competências e potencialidades, precisavam de ser conduzidos. Sob esta condução tutelar se fundava a projeção de uma comunidade política e moral definida pelo regime, mas também a possibilidade do seu usufruto e exploração por parte de empresários e managers. Apesar das políticas da Direção Geral, foram os negociantes que de forma mais efetiva continuaram a definir as condições arriscadas e perigosas da performance.

Conclusão

A autobiografia de Matos Júnior, intitulado O Saco, anuncia logo no segundo parágrafo o destino da personagem principal, preparando o leitor para a narrativa de uma vida que, apesar das aspirações e peripécias do seu autor, parecia marcada à partida: “Vim a este mundo como todos os meus semelhantes. Há pessoas que nascem ricas e outras que nascem pobres. Eu nasci pobre e esse facto teve como consequência que a vida tenha sido muito dura para mim” (Ideias 1966: 13). Matos fora o “saco” no mundo do boxe, aquele que servia para atletas mais promissores mostrarem o que valem, mas também um saco ao longo da sua atribulada existência. Estas vivências trágicas foram também preenchidas por experiência únicas, efémeras é certo, mas que concretizaram algumas das aspirações destes jovens atletas: um estatuto reconhecido pela valentia mostrada em combate, por algumas vitórias mais impressionantes, pelo nome eternizado em crónicas e fotografias nos jornais, por momentos de glória e de algum desafogo económico, pelas relações sociais e afetivas e pela vida hedonista e cheia de tentações que alguns não desdenharam, mas que muitas vezes acabou por ditar o fim das suas aspirações desportivas. Estes eram momentos de resistência e fuga a uma máquina que os triturava.

A performance apresentada pelos pugilistas nas salas de espectáculo de

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Lisboa definia-se por um conjunto de lógicas de incorporação interligadas. Desde logo, as decorrentes da fraca evolução de um campo de atividades. O desempenho físico era afetado por condições de partida, traduzidas em corpos mal alimentados que não beneficiavam, depois, de uma preparação suficiente. O estatuto adquirido com a prática da modalidade, mas sobretudo a necessidade económica, atirava os pugilistas para o ringue onde uma seleção cruel ia sendo executada. A carência técnica e física dos atletas, o incumprimento das regras e a tolerância com situações que colocavam os performers em perigo físico, tornavam muito arriscada esta ordem da interação performativa. Ela ajustava-se, no entanto, às condições de produção do espetáculo, fundadas menos no interesse do público em apreciar a técnica moral dos artistas, como desejava a Direção Geral dos Desportos, do que no desejo em assistir a uma luta violenta.

A predisposição para um indivíduo se sujeitar à luta, de se colocar em risco, de se sacrificar, de revelar coragem e combatividade era um princípio inerente à prática do boxe. Mas o processo que conduzia um indivíduo a submeter-se a estas condições era complexo. Os corpos disponíveis ajustavam-se às características da ordem da interação que criava a performance espetaculares. Estas condições criavam assim uma estética particular, negociada e discutida no contexto das tensões que habitavam este campo de atividade. Neste sentido, havia um encontro evidente entre o habitus urbano destes jovens dos bairros populares de Lisboa, as condições de formação do seu habitus motor e a estética que definia a performance. Corpos de indivíduos dispostos a sacrificarem-se para perseguir as suas aspirações, envolvidos em formas de dominação que os sujeitavam. As aspirações projetadas numa carreira do boxe guiavam os corpos e as vontades destes performers, num movimento que, em muitos, casos, resultavam numa auto-destruição conduzida. A ordem da interação deste espectáculo engolia corpos que não estavam preparados para o risco. Outros corpos seguir-se-iam.

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Antropologia e performance Turismo e performances culturais:

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