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O Monumento como espaço liminar

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 116-118)

Um monumento aos mortos é intrinsecamente um espaço de ambiguidade. Sendo um monumento secular, existe nele um elemento religioso que quebra o esquematismo da dicotomia secular/religioso que resultou do projeto iluminista (Duncan, 1995: 7). Neste sentido, é um espaço liminar situando-se, no entendimento atribuído por Victor Turner, “betwixt-and-between” categorias sociais habituais (Turner, 1967). O valor destes espaços dentro dos sistemas mais vastos onde se inserem parece ser a sua capacidade de operarem uma complexa conflação de elementos conflituantes, da qual resulta uma grande densidade de significados (Gatta, 2010: 10). No que toca ao memorial, tal como acontece perante a ruína como notado por Carlos Fortuna (Fortuna, 1995: 7), a liminaridade destes espaços vai para além da sua dimensão territorial, adquirindo também uma dimensão temporal na medida em que permitem uma deambulação entre o passado e o presente sem se fixarem em tempo algum. Simultaneamente símbolo de fechamento e de perpetuação, o memorial provoca uma suspensão do presente que é proporcionada, por um lado, pela apreciação estética do próprio monumento e, por outro, pela manipulação da história e da memória como parte da identidade (Fortuna, 1995: 8).

O espaço liminar é, portanto, ele próprio um agente ativo no drama social, atuando no sentido da resolução e da integração dos conflitos identitários em curso. A edificação de um monumento aos mortos é sempre, como foi anteriormente dito, uma ação no sentido da harmonização da história com a realidade vivida e da sanação da dissonância que subjaz a semelhantes atos comemorativos: a de que os atos violentos comemorados contradizem fundamentalmente as definições identitárias fixas e pré-definidas do grupo.

A localização escolhida para a implantação do Monumento aos Combatentes do Ultramar ilustra bem estes processos. De acordo com a Liga dos Combatentes, tomada a decisão de erigir o monumento e, tendo- se passado à fase de escolha do local de construção, decidiu-se que esse local, para além de reunir um conjunto de condições como as de amplitude de espaço e facilidade de acesso, deveria ser “um local da maior dignidade nacional” (Magalhães, 2007: 27). A área monumental de Belém, em Lisboa, apresentou-se logo como a escolha de eleição, já que, na leitura do Presidente da Comissão Executiva do Monumento, esta área “é a que melhor consagra, no País, a memória dos feitos ultramarinos dos nossos Maiores nos quais

Antropologia e performance

se inscreve a última Guerra do Ultramar” (Magalhães, 20007: 27). Após consideradas as várias possíveis localizações nesta área monumental, e descartadas outras que se situavam fora dela – como as sugestões de edificar o monumento na Serra de Carnaxide, no Parque Eduardo VII ou na Rotunda de Benfica – diligências do Ministério da Defesa, do Estado-Maior do Exército e da própria Comissão Executiva do Monumento facilitaram a decisão de edificar o Monumento junto ao Forte do Bom Sucesso, a Noroeste da Torre de Belém.

A construção do monumento na zona de Belém e a relação que se estabelece entre este e a sua envolvente é também uma forma de mise- en-scène. A área monumental de Belém é um espaço saturado de ícones de representação coletiva associados à história imperial portuguesa. Jorge Freitas Branco chamou-lhe “uma plateia pública de acesso permanente ao quadro das referências sacralizadas da nação” (1995: 163). Enquanto espaço de mitificação nacional, nele de concentram os ícones mais representativos da arquitetura monumental associada aos chamados “descobrimentos marítimos”, correspondendo ao período entre 1415 e 1543 em que os portugueses realizaram um conjunto de viagens e explorações marítimas. Correspondem também ao período que a historiografia convencionou chamar de 1.º Império para referir um sistema de exploração colonial assente no comércio esclavagista na costa atlântica africana e no controlo do comércio das especiarias no Oriente. O forte investimento simbólico de que esta zona foi alvo, desde os finais do século XIX e, mais intensamente, durante o Estado Novo, converteu este espaço numa síntese simbólica exemplar da identidade nacional portuguesa enquanto indissociável da imagem de um império sem colónias, ecuménico, humanista e universal. Esta imagem é central na autorrepresentação de Portugal enquanto país dos descobrimentos e autor criativo de um colonialismo excecional, assimilacionista e tolerante, e não como centro de poder colonial (Almeida, 2002).

A localização do monumento na zona monumental de Belém, enquadrado pelo que se consensualizou serem os símbolos maiores da identidade portuguesa enquanto associada à “epopeia marítima” da nação, estabelece a grelha interpretativa a partir da qual o fim do império é integrado na grande narrativa nacional. Outro trecho do discurso proferido por Adriano Moreira aquando da inauguração do Monumento fornece a estrutura dessa interpretação ao situá-lo

neste pequeno triângulo sagrado da terra portuguesa: lá em cima, na colina, a servir de vértice, a Capela de S. Jerónimo, onde rezaram capitães-de-mar-e-guerra; e, seguindo a linha do Tejo, a Torre de Belém da partida para as índias, o Mosteiro das Descobertas; e agora o Monumento àqueles que combateram a batalha que nos coube na guerra que pôs um ponto final no sistema político euromundista, e que levou todas as potências da frente marítima europeia a chamar as legiões a Roma (Adriano Moreira in Magalhães, 2007: 107).

O sentido evangelizador e civilizacional dado ao expansionismo português; a descoberta do mundo, não a sua colonização; e um desfecho que nos ultrapassou e não pudemos evitar. É esta a chave para o fechamento simbólico do império no seio do “solo sagrado” da nação, vinte anos depois do seu fim formal. De forma semelhante ao que acontece com o Vietnam Veterans Memorial, em Washington, D.C., enquadrado pelo Washington Monument e o Lincoln Memorial, o enquadramento do Monumento por outros símbolos monumentais não profana o solo sagrado; antes pelo contrário o sublima pela integração do sangue sacrificial desses “melhores” que morreram em defesa da pátria ultramarina. As mortes deixam de ser mortes individuais, para serem mortes por uma causa. Como em Washington, o “espaço e a forma [do monumento] torna-se adjuntiva, não disruptiva” (Friedman, 1995: 71) em relação ao conjunto onde está integrado. Neste sentido, embora o Monumento assinale publicamente o fim do império colonial português, estabelecendo definitivamente uma fronteira temporal entre o passado colonial e o presente pós-colonial, fá-lo através de uma linguagem de exaltação patriótica em torno da “perenidade de Portugal e a sua continuidade através dos séculos”5. Todo

o monumento reflete, sempre, um desejo de imortalidade.

As dissonâncias que o monumento convoca obrigam, porém, a que este se mantenha um espaço liminar, aberto à livre interpretação, sem que uma legenda explicativa a ele se fixe definitivamente. A proliferação de placas evocativas de conteúdo diverso no mesmo mural onde estão inscritos os nomes dos mortos do conflito evidencia essa condição (ver Imagem 4). Enquanto o monumento propriamente dito tinha sido claramente nomeado através do epitáfio “Aos Combatentes do Ultramar”, as placas evocativas junto

 - http://www.ligacombatentes.org.pt/upload/forte_bom_sucesso/exp_permanen- tes/003.pdf. Acedido em 30.05.2013.

O Monumento aos Combatentes: A Performance do Fim do Império no Espaço Sagrado da Nação

 

do memorial parecem evitar uma nomeação explícita da guerra em questão. A primeira delas indica tratar-se de uma “Homenagem de Portugal”; a segunda, que antecede a lista dos nomes, dedica o memorial “à memória de todos os soldados que morreram ao serviço de Portugal”; a última, colocada em 2006, decifra a lista de nomes dos militares que, mais recentemente, morreram em “Operações de Paz e Humanitárias”.

Imagem 4 – Placas evocativas

Uma carta aberta de um antigo combatente (João Carlos Abreu dos Santos), publicada no portal Dos Veteranos da Guerra do Ultramar6, e que

viria a gerar intenso debate entre ex-combatentes, expressa o repúdio pela proliferação de placas, nomeadamente pela colocação daquela referente às missões humanitárias, e reclama por um “inequívoco respeito ao «Memorial Nacional aos Combatentes do Ultramar», e sua correspondente e unívoca representação geracional, patriótica e nacional”7. O mesmo repúdio é

expressado em relação ao que se considera serem as múltiplas evocações que acontecem simultaneamente no local, celebrando eventos que “em nada se relacionam com os objetivos de veneração pública atribuídos àquele espaço”8.

A cerimónia pública realizada no dia 9 de Novembro em frente ao Forte do Bom Sucesso, tal como outras cerimónias anteriores realizadas no local, também deixa expressa essa ambiguidade. A cerimónia destinou-se a assinalar o 95.º

 - http://ultramar.terraweb.biz/index.htm. Acedido em 20.12.2013.

 - http://ultramar.terraweb.biz/Noticias/FBS-09Nov2013_opinioes.pdf. Acedido em 20.12.2013.

 - http://ultramar.terraweb.biz/Noticias/FBS-09Nov2013_opinioes.pdf. Acedido em 20.12.2013.

aniversário da I Grande Guerra, o 90.º aniversário da Liga dos Combatentes e o 39.º aniversário do fim da Guerra do Ultramar. Os discursos nela proferidos, pelo General Chito Rodrigues, Presidente da Liga dos Combatentes, pelo orador convidado Professor Dr. António Telo e pelo Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, General Esteves Araújo, são marcados pela linguagem da continuidade e pela constante evocação da unidade nacional. Ou porque a guerra apelidada do ultramar resiste a estabelecer-se como um campo de reconhecimento próprio, ou porque reclama esse reconhecimento em paralelo a um outro, mais antigo, das feridas deixadas pela participação de Portugal na I Grande Guerra, ainda largamente por fazer, a verdade é o que Monumento ao Combatente permanece um espaço simultaneamente de condensação e de dissolução identitária. Neste sentido, é um espaço liminar, habitado por liminae personae, que são aqueles que, muitas vezes ostentando a boina e o distintivo da unidade a que pertenceram, acorrem a estas cerimónias à espera que lhes seja atribuída transcendência política e absorção no domínio do sagrado (Kearl e Rinaldi: 1983).

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 116-118)

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