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O lugar da violência na historiografia da I República

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 75-77)

Antes de apresentar alguns exemplos de destruições anticlericais, devemos olhar brevemente para uma parte da historiografia sobre o período para perceber o enquadramento que lhes foi dado. Fazê-lo permitir-nos-á entender melhor o papel que o lado performativo desempenhava nessas acções, mas,

 - Com “performativo” refiro-me ao seu carácter exibicional e à expressão duma intenção ou ideia numa linguagem padronizada, por vezes resultante de “repertórios de acção colectiva” tradicionais.

também, quais os riscos duma ênfase excessiva nesse aspecto.

Em algumas das páginas da historiografia sobre o período, a Lei da Separação e a acção laicizadora republicana têm sido comummente interpretadas como a expressão radical do desfasamento social do regime. Na introdução a uma obra recente, os historiadores Fernando Rosas e Maria Fernanda Rollo identificam a persistência de uma interpretação do período histórico em questão baseada numa leitura a-histórica do regime, considerando-o inexplicável à luz das realidades sociais e políticas do país, “pois não tinha raízes nelas e muito menos as reflectia” (2009: 9). As relações entre o Estado e a Igreja que marcaram este período da história são, geralmente, apontadas como o exemplo mais evidente dessa dissonância entre o regime e a realidade social sobre a qual se estabeleceu. Em termos simples, o laicismo e o racionalismo em que assentavam as ambições republicanas de revivificação da nação pressupunham uma mudança das mentalidades, a despeito da superstição e da crença religiosa que seriam dominantes na população em resultado da presença histórica da Igreja Católica no país. Neste cenário, o regime republicano, dominado por uma elite política radical e vanguardista, entregou-se à concretização do seu projecto através da imposição violenta dos princípios e valores que o guiavam, sendo nesses termos que devem ser interpretadas tanto as leis laicizadoras que procuravam materializá-lo, como as consequentes acções populares que com ele se encontravam em sintonia.

É numa outra linha historiográfica de análise da I República que a chamada “questão religiosa” é assumida, porém, como uma chave de leitura ainda mais relevante; na verdade, seguindo um tal linha, em vez de uma simples “questão religiosa”, passa-se a falar de uma “guerra religiosa”5. Vasco Pulido Valente  - Deve ser assinalado que a expressão “guerra religiosa” se expandiu, entretanto, bem para além da historiografia política em questão, ainda que o seu uso, nesses traba- lhos, seja geralmente feito com outro significado (e.g. Fernando Catroga, 1991: 351; Ferreira, 1993; Neto, 2009; Salgado de Matos, 2010). Por outro lado, Luciano Amaral também recorre à expressão “guerra religiosa” para caracterizar a situação vivida no país, mas defende uma tese bastante próxima, senão semelhante, à dos autores abor- dados neste parágrafo (Ramos e Pulido Valente), afirmando mesmo que a violência, no republicanismo, foi a sua essência, “a sua natureza e não qualquer tentativa de te- orizar e pôr em prática um programa liberal e democrático típico das revoluções que, no século XIX, reproduziram o exemplo francês de 1789-92, ou social-democrata ou socialista como sucedeu com a generalidade das revoluções que pretenderam seguir ou contrariar o exemplo da revolução russa de Outubro de 1917”, cf. Amaral, 2011: 96. Em contracorrente, Reis & Pinto contestam a pertinência do uso da expressão de

Os ataques anticlericais na I República (0-): Historiografia, violência e performance

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defende que Afonso Costa, a figura mais destacada dos primeiros anos da República e o autor da Lei da Separação, encontrou na “questão religiosa” “a maneira de criar um estado de guerra permanente entre as forças conservadoras e o regime” (1999: 171), sendo este conflito, por essa razão, central na sua tese do “terror” e de “guerra permanente” com que caracteriza os primeiros anos da República. Nesse sentido, a Lei da Separação não era outra coisa senão “pura e simplesmente uma declaração de guerra” e “um não muito subtil exercício de sectarismo e brutalidade” (1999: 183). Para Rui Ramos, apologista da mesma tese, a “guerra religiosa” tornara-se a “razão de ser do regime” (2009: 587), muito embora afirme, noutro texto, que a existência da Lei da Separação se devia, em certa medida, a um “efeito de moda”, motivado pela lei equivalente decretada cinco anos antes em França (2001: 355). Já a historiadora Maria Lúcia de Brito Moura, numa obra dedicada a outro nível do conflito e mais atenta à sua dimensão popular, desenvolve a tese da “guerra religiosa” através da caracterização de uma violenta perseguição à Igreja, ao clero e aos católicos, que, assumindo uma “expectativa benevolente” perante a revolução (2004: 46), acabam por ser arrastados para o “campo de batalha” pelo “radicalismo anticlerical” (2004: 50). Apesar de não considerar a “guerra religiosa” uma novidade, remetendo as suas origens para a governação pombalina, afirma que na I República esta se constitui como uma “nova realidade”, caracterizada “por embates muito mais violentos do que no passado” (2004: 32). Em consonância com muitos dos estudos que o abordam, e apesar de neste trabalho ser concedida maior atenção às classes populares, o anticlericalismo é tratado por Moura como um fenómeno acima de tudo ideológico e vanguardista, o que a leva a secundarizar os seus diversos aspectos estruturais ou mesmo o significado da sua presença a nível popular (com uma expressão muitas vezes autónoma do chamado “anticlericalismo político”, mais associado às elites políticas e geralmente de cunho anti-religioso6). É esta assunção

que permite que se elabore um retrato de um republicanismo religioso e messiânico, desejoso de realizar na terra e no imediato um Mundo Perfeito

 - Num ensaio etnográfico clássico, referente a uma freguesia do centro de Portu- gal, Joyce Riegelhaupt sublinha que, “do ponto de vista analítico, é preciso reco- nhecer a diferença entre um anticlericalismo que é fundamentalmente «anti-igreja», baseado na posição institucional que esta ocupa num determinado estado, e um an- ticlericalismo mais lato que é equivalente à «anti-religião»” (cf. 1982: 1216). No mesmo ensaio, distingue, ainda, um anticlericalismo que tem como alvo o padre, e não necessariamente a Igreja enquanto instituição ou a religião, e que é aquele que analisa em maior profundidade.

ou um “futuro radioso”, o que, aliás, explicaria e justificaria o uso da violência como recurso legítimo (cf. Moura, 2004: 29-30, 233, 239 e 242; Rui Ramos faz o mesmo, cf. 2001: 350). Seria, além disso, esse fanatismo milenarista e sem qualquer base material a explicar a inevitável falência da República e a sua incapacidade em superar os problemas que a atravessaram7.

Mesmo reconhecendo que a laicização republicana e, em particular, a Lei da Separação representam os momentos mais marcantes na transformação das relações entre o Estado e a Igreja, uma interpretação que as reduza a um factor conjuntural, como acontece nestas análises, só é possível ignorando ou menosprezando a sua dimensão estrutural e integração num longo processo indissociável duma série de mudanças que vinham acontecendo a todos os níveis da sociedade desde há largas décadas. A laicização não só não era um fenómeno estranho ao seu tempo, como surgia agregada a um conjunto de amplas transformações registadas um pouco por todo o mundo e espoletadas, em grande parte, pela industrialização e pela emergência do Estado liberal. Além disso, o projecto laicizador não era exclusivo da ideologia republicana, nem o seu desencadeamento se deve atribuir ou cingir ao regime republicano. A laicização da sociedade é parte do processo mais vasto de desmantelamento da organização social e do Estado do Antigo Regime que vinha sendo operado com particular intensidade desde o início do século XIX em Portugal8. O que a instauração da República trouxe foi a  - A importância concedida à chamada “questão religiosa” é comum a outros auto- res, ainda que no seu trabalho esta surja lado a lado com outros factores e raramente seja tratada como uma “guerra religiosa”. Por exemplo, Rosas vê na “questão reli- giosa” uma das causas mais determinantes para o desfecho do regime, apontando-a como um dos “cinco erros capitais da I República”, devido à imprudência do jacobi- nismo republicano “permitir que uma questão política sobre as relações dum Estado com uma igreja se tornasse numa questão religiosa (2010: 88-89) – o que não deixa de ser questionável, quer por equiparar tal questão à I Grande Guerra ou ao agrava- mento das condições sociais da população e aos conflitos que tal situação motivou, quer por pressupor que o essencial da laicização republicana podia ser concretizado sem que nunca fosse tratado como uma questão religiosa pela Igreja.

 - É possível identificar, em Portugal, praticamente desde meados do século XVIII, a aplicação de um conjunto de medidas que visavam reduzir ou alterar o papel da Igreja na esfera civil e nas instituições políticas estatais. Desde então, e especial- mente durante o período do Liberalismo Monárquico, a situação tendeu a intensifi- car-se. Parte das leis laicistas promulgadas pelos republicanos praticamente desde o primeiro dia de existência do regime e muitos dos artigos presentes na Lei da Separação apresentada em 1911 podem encontrar os seus antecedentes em medidas avançadas nas décadas anteriores, sendo em muitos casos uma restituição de medi-

Antropologia e performance

inversão definitiva dos termos em que se estabelecia a relação do Estado com a Igreja Católica, afirmando inequivocamente, e assim consolidando, a supremacia do poder do Estado.

As interpretações em causa revelam-se ainda mais incompletas se ficarem limitadas aos termos das duas instituições mais visíveis do conflito (o Estado e a Igreja) e se excluírem qualquer referência ao contexto social em que estas se inserem e em que acontecem, associando outros grupos e agentes, com que interferem e cujo controlo disputam, a termos e lógicas que lhes são em certa medida distantes. Por outras palavras, ao reduzir aos termos do Estado e da Igreja um conjunto de acções populares que deles são em certa medida autónomas, compromete-se a sua interpretação e compreensão, pois são anulados ou secundarizados os interesses e especificidades singulares que podemos encontrar, por exemplo, a um nível local ou comunitário. Mesmo um conflito popular directamente motivado pela lei do registo civil ou pela Lei da Separação não é, por ser essa a sua “origem”, redutível à sua dimensão religiosa e, muito menos, a uma dinâmica institucional. Os diversos grupos sociais envolvidos não reagiam mecanicamente aos termos daqueles que no topo travavam o conflito através de decretos e leis, mas agiam, sim, de acordo com as suas condições materiais e crenças. Evidentemente, isto não equivale a dizer que não resultavam consequências da transformação político-legislativa que se operava e que esta não afectava outros para além daqueles directamente envolvidos no conflito, mas antes que essa transformação e suas consequências tinham diversos níveis que não são linearmente subsumíveis uns aos outros. Como enfatizou Edoardo Grendi, a admissão do papel efectivo de categorias macro-históricas (como são, neste caso, o Estado e a Igreja), não justifica o seu determinismo, “pois a acção social, assim como a acção individual, comportam uma escolha em um campo de alternativas limitadas que constituem «a fábrica da realidade social e psicológica do homem»”, sendo qualquer uma dessas categorias apenas uma das suas componentes (2009: 48).

Em suma, a historiografia da I República é marcada pela reprodução, muitas vezes acrítica, de discursos produzidos pelos “principais” actores em conflito no palco institucional e nacional – republicanos, clero e monárquicos. A falta de contextualização, que decorre da opção por uma história dita política, a que correspondem os exemplos atrás apresentados, leva facilmente a um anacronismo descontrolado. A principal consequência deste

das entretanto revogadas ou a revisão dos seus termos e alcance. (e.g. Salgado de Matos, 2010 e Neto, 1998).

quadro é a diluição do episódico, do local ou do individual nessas categorias e a sua descaracterização pela remoção dos seus contextos estruturais particulares. Em causa fica “a consciência de dimensões socioculturais outras com relação à cultura social em que vivemos” (Grendi, 2009: 49). Com efeito, para praticamente todos os casos aqui tratados, seria mais adequado recordar uma ideia como a de “economia moral”, desenvolvida por E. P. Thompson no seu célebre ensaio (2008), até por tais casos se manifestarem quase sempre ao nível local. Dessa forma seria possível remeter os acontecimentos geralmente subsumidos na referida questão para os seus próprios termos, destrinçando o seu significado sociocultural contextual. Até porque, como veremos em seguida, mesmo quando têm alguma relação directa com a “questão religiosa”, muitos dos ataques anticlericais podem ter múltiplas leituras consoante a escala de análise utilizada.

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