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Os ataques anticlericais (1910-1917)

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 77-79)

Entre as tácticas de perseguição e de “terror” anticlerical usadas nessa “guerra religiosa”, ilustrativas da ferocidade e impiedade dos revolucionários no geral e, em particular, dos republicanos, parecem estar os já referidos ataques a edifícios de culto e a objectos litúrgicos católicos. Exceptuando nos dois estudos mais recentes e especificamente dedicados às acções populares, da autoria de Brito Moura e de Luna de Carvalho (2004 e 2011, respectivamente), raramente temos contacto com exemplos concretos dessas acções e, mesmo nestes casos, não nos é possível perceber se não passaram de casos isolados ou se aconteceram com alguma frequência. Não podemos assim apurar se se tratava de conflitos insignificantes, causados por excessos individuais ou disputas locais, ou de autênticas “batalhas” dessa suposta guerra em curso.

Os casos que apresento em seguida correspondem àquilo que na historiografia portuguesa (em especial nos dois autores referidos atrás, Moura, 2004 e Luna de Carvalho, 2011) foi classificado como “iconoclastia” (em consonância com alguns estudos relativos a processos de laicização social e política ocorridos noutros países e que possuem semelhanças e são contemporâneos do caso português), i.e., a destruição ou danificação premeditada de objectos, imagens e edifícios religiosos, podendo-se incluir nesta categoria casos em que, sem ter havido destruição ou danificação, os objectos foram usados para gozar com a sacralidade da crença ou para

Os ataques anticlericais na I República (0-): Historiografia, violência e performance

 

ofender o sentimento religioso de alguém9.

Todavia, termos como “iconoclastia” podem, também, ser usados em referência a inúmeros tipos de acções sobre imagens e objectos, aparentemente sem relação e por vezes de carácter ambíguo, não questionando, por exemplo, se existia alguma intencionalidade por trás das destruições ou danificações. Como tal, o termo necessita igualmente de alguma especificação, que lhe dê outra objectividade. Nos jornais em que baseei a pesquisa, estes casos vinham mais comummente epitetados como “profanações” ou como acções “sacrílegas”. No entanto, também estes termos são pouco específicos, referindo-se a todo o tipo de acções em que os autores católicos considerassem que os objectos, imagens e edifícios religiosos eram alvo de um uso indevido, quer nesse uso houvesse um intuito provocatório (“gozar” com as imagens ou usar objectos litúrgicos para simular missas) ou premeditadamente lesivo (as destruições ou danificações), quer reflectisse uma atitude de indiferença em relação ao significado e função desses objectos (os assaltos) ou fosse suscitado por alguma acção administrativa ou aparentemente neutra (como os arrolamentos dos bens das igrejas ou como quando um soldado ou qualquer outro cidadão não descobria a cabeça ao entrar numa igreja ou perante uma procissão). Em função disto, optei por não considerar todos os casos que os católicos classificavam como profanações, mas apenas aqueles que envolveram alguma forma de violência intencional, fosse através da danificação ou destruição total e premeditada dos objectos, fosse pela sua apropriação por parte de alguém com o intuito de parodiar o seu uso tradicional e provocar aqueles que os usavam.

Para este efeito, considerar o lado performativo dos ataques é determinante, pois era este que permitia enfatizar a sua intenção política ou provocadora, distinguindo-os dessa forma de outros episódios envolvendo objectos, imagens, cerimónias ou edifícios religiosos, como os assaltos. A

 - Noutra pesquisa, para o período em questão, contabilizei 90 casos correspon- dentes aos termos definidos. Foi possível organizá-los em duas grandes categorias: acções de violência directa (79 casos), em que há destruição e danificação, e acções de apropriação e uso provocatório (11 casos) que não implicam destruição ou dani- ficação, ambas correspondendo a acções deliberadas. A primeira categoria foi sub- dividida em acções definidas (42 casos) e indefinidas (37 casos), no que se refere ao número de agentes envolvidos, correspondendo à primeira subdivisão duas outras distinções, acções individuais (9 casos) e acções de grupo e colectivas (caracteri- zadas pelo simples critério de serem realizadas por mais do que um indivíduo – 34 casos). Cf. Duarte, 2011: 28-31.

destruição ou o uso dos objectos obedecia geralmente a um padrão que pretendia transmitir uma intenção clara e inequívoca, isto é, destituída das ambiguidades que podiam comprometer o seu entendimento. Nos ataques anticlericais – isto é, com um significado cultural ou político – era muito raro o roubo de objectos; e como muitas deles ocorriam no silêncio da noite, sem testemunhas, era importante que as destruições ou “profanações” acontecessem sem que desaparecesse de forma incerta algo do conteúdo da igreja. Nos assaltos a igrejas, por outro lado (comuns ao longo dos sete anos analisados, mas especialmente em 1916 e 1917), o que estava em causa era, somente, o valor material dos objectos e, como tal, a sua apropriação raramente envolvia destruições claramente premeditadas, pois era essencial manter o objecto intacto para preservar o seu valor10. É,

por isso, muito difícil afirmar, nestes casos, se havia qualquer significado religioso, cultural ou político por trás das acções dos assaltantes11.

0 - Entre as centenas de assaltos e entre os 90 casos de ataques anticlericais que registei entre 1910 e 1917, somente 10 correspondem a episódios em que houve destruição de objectos ou foi deixado algum sinal com o propósito de parodiar ou ofender a crença religiosa.

 - Nem por isso os assaltos, independemente do seu carácter, deixavam de apare- cer com recorrência equiparados às destruições, assumindo-se que o principal móbil das acções era o “sacrilégio” e a ofensa a Deus e aos crentes, reforçando, dessa maneira, a responsabilidade atribuída à República. A Nação, semanas depois de ter sido publicada a Lei da Separação, ao referir-se aos assaltos a igrejas e a eclesiásti- cos, não evita lançar a questão: “dar-se-à o caso de que o santo e a senha maçónicas se não contentem com a obra ditatorial da separação e da secularização e, por suas mãos, ou melhor, pelas mãos sacrílegas de mercenários, tenham tomado à sua parte a efectivação da empresa?” (04-05-1911). O jornal católico A Ordem, depois de descrever uma série de assaltos a igrejas, escusa-se a fazer acusações directas, mas é claro quando afirma “pode supor-se à primeira vista de que se trata de roubos vul- gares, isolados sem outra significação. Não senhor. Trata-se de roubos executados segundo um plano e talvez com o fim de mascarar o fim primário – o sacrilégio” (09- 11-1917). Maria Lúcia de Brito Moura ecoa esta tese, quando afirma que “em muitos casos, talvez na maioria, os assaltantes não foram movidos pelo roubo. Dir-se-ia que eram arrastados pela ânsia de destruir tudo aquilo que os crentes consideravam sagrado” (2004: 231). Mas se considerarmos que ocorreram centenas de assaltos com roubo durantes os sete anos compreendidos por este estudo, e que somente con- tabilizei dez casos em que se verificou a destruição deliberada e indiscriminada de objectos de culto, duvidamos do fundamento de tal afirmação. Podemos juntar a essa constatação a de que somente uma minoria dos 90 casos de destruição registados foram acompanhados de roubo e, ainda, que o período em que ocorreram a maioria dos assaltos a igrejas (os anos de 1916 e 1917) foi, também, o período em que se registaram menos destruições.

Antropologia e performance

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