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nos ringues da capital

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 148-150)

Enquanto jornalista desportivo, o delegado Rafael Barradas acompanhou para o jornal A Bola, logo depois deste periódico ter sido criado em 1945,

os combates de boxe que animavam a cidade de Lisboa. A sua prosa, dirigida ao leitor de um jornal com preocupações de fazer a pedagogia do desporto, revela igualmente algumas das preocupações que o moviam enquanto interventor ao serviço do Estado. Outras inquietações, como se irá notar, estavam reservadas para os documentos internos da Direcção Geral. Ao mobilizar um vocabulário específico para ler e avaliar o desempenho dos atletas, Barradas acabava também por expor as circunstâncias que caracterizavam o boxe em Lisboa, o nível dos atletas e o grau de desenvolvimento de um campo específico.

O objetivo da vitória governava inevitavelmente a performance o boxe. Como dizia Barradas, numa das suas crónicas: “A vitória deve caber ao jogador que bateu ‘mais vezes’, em ‘melhor sítio’, de ‘melhor maneira’ (A Bola 2-1-45, p.2). Acrescentou ainda que “a iniciativa do atacante, expondo-o a maiores perigos, merece maior consideração” (ibid.) Aos árbitros competia avaliar como os pugilistas alcançavam estes desígnios. O privilégio concedido pela moral do jogo ao ataque constituía um dos princípios fundamentais da relação da performance com o público. A falta de iniciativa ofensiva poderia, aliás, segundo as regras do boxe, conduzir a uma desclassificação. A prova da galhardia e da combatividade do performer era muito apreciada, mesmo quando gerida por uma frágil estilística. Na apreciação das competências do pugilista, Barradas ajuizava a combatividade, a sua aparência e disponibilidade física e o método da sua esgrima, como manejava o seu repertório motor, como dominava, ou não, a técnica do boxe.

No Torneio de Iniciação organizado pela Associação de Pugilismo de Lisboa no recinto de um dos clubes de boxe lisboeta, a Lisgás, mostraram- se, no início de 1945, os talentos amadores. Realizando uma apreciação geral Barradas concluiu: “Os amadores concorrentes mostraram, dum modo geral, físico débil e fraco desenvolvimento muscular. Mais uma vez nos dispomos a frisar o seguinte pormenor: o “box’ é um desporto só próprio de gente sã e robusta. Pessoas, embora saudáveis, mas sem vigor ou ginástica não devem andar na faina de levar socos … no esqueleto. Tecnicamente os amadores, excepto três exemplares, no máximo, estão nus e crus de sabedoria Mesmo para ‘iniciados” a ausência de sabença é confrangedora. Todos precisam de ginásio, de ‘plastron’ e passadeira, principiando pela aprendizagem do movimento das pernas – antes de outra qualquer – e passando ao saco de areia, mais tarde, para aprenderem os gestos dos diferentes socos. Entretanto, ginástica sueca, salto à corda, maças indianas, bola de suspensão, e, em suma, preparação física” (ibid).

Antropologia e performance

Poucos dos pugilistas em ação nesse dia apresentavam um corpo preparado para a performance. A excepções eram Rogério Amador, “bem preparado e alimentado”, e Ângelo Santos, também “alheio ao racionamento; carnes cheias e ‘limpas’ de ossos” (ibid). Nestes combates, de esgrima houve pouco. Num deles “viu-se longa manifestação de falta de jeito boxístico”; um outro assemelhava-se “a pancadaria mais ou menos disfarçada”. Certo pugilista “não sabe nada de ‘box’, mas tem instinto de lutador”. Enfim, rematou Barradas, “tudo é, afinal, produto da falta de bons mestres, sem desprimor para os professores actuais.” (ibid). O autor não deixou de incluir na sua crónica duas outras observações. Uma para salientar a presença na assistência de algumas pessoas “de certa categoria social” como o “General Manuel Latino, doador da Taça, que leva o seu nome, e destinada ao clube melhor classificado no torneio.” Por fim, considerou inaceitável que um atleta da Lisgás, clube da Companhia de Gás e Electricidade, se tivesse apresentando “envergando calções indecorosamente curtos e indiscretos” (Ibid.).

Em Lisboa, na década de quarenta, os corpos disponíveis para entrar no espetáculo do boxe profissional eram quase sempre jovens de uma classe trabalhadora muito carenciada, formados no mundo boxe amador dos clubes dos bairros populares4. O boxe garantia-lhes certamente um determinado

estatuto local. A notoriedade prometida pelo sucesso público não é desprezível enquanto factor de interpretação do surgimento destes performers de bairro e do seu interesse em enveredar pelo boxe. Noutro sentido, o pugilismo constituía- se como uma forma de proteção pessoal que, eventualmente, poderia ser útil para a obtenção de um emprego. Na sua autobiografia, raro relato em primeira mão da vida de um pugilista5, Matos Júnior (de seu nome Manuel Matos

Ideias), que combateu em Lisboa nas décadas e trinta e quarenta, conta o modo como, chegado a Lisboa com 12 anos fugindo de um mundo de miséria no interior do pais, se fascinou pelo universo do pugilismo (Ideias 1966). No pobre Clube Recreativo os “Choras” aprendeu a “boxar e rapidamente se tornou um ídolo do bairro da Graça. A fama conquistada garantiu-lhe um estatuto local, abrindo-lhe a porta para um conjunto de relações, entre as quais as de carácter sentimental e sexual.

Para muitos jovens dos bairros populares de Lisboa que viviam num quadro

 - Casos do «Grupo Desportivo da Mouraria, do Lisboa Rio de Janeiro, od Sport Lisboa Oriental, do Lisboa Ginásio, do Ginásio Clube ou do Ateneu Comercial de Lisboa.

 - É de salientar também uma pequena autobiografia de Santa Camarão (Camarão, s/d). Sobre a vida de Santa Camarão ver Maçarico (2003).

de permanente necessidade económica este estatuto acalentava aspirações e projetos. Managers e empresários de espetáculos procuravam os futuros talentos nas competições amadoras dos clubes de bairro, explorando esta economia da necessidade traduzida em desejos e ambições. Pouco alimentados e quase sempre desportivamente mal preparados para enfrentar os perigos inerentes à performance, estes atletas pouco se assemelhavam aos bailarinos aristocratas do boxe, tal como eram os celebrados pela Direcção Geral.

Aliciados por um manager, os melhores atletas da esfera amadora conseguiam transitar para o mundo profissional e atuar nas principais salas de Lisboa, do Coliseu ao Parque Mayer. Um conjunto de combates realizados no Coliseu em 16 de Fevereiro de 1945 deu a Rafael Barradas o ensejo de realizar um “estudo” sobre este mundo profissional em performance corporal (A Bola 23-2-1945, p. 2). Algumas das características que observou nos pugilistas amadores notavam-se nos profissionais. Uma delas, que parecia aborrecê-lo particularmente, era o pouco rigor com a indumentária “indiscreta” com que se apresentavam alguns pugilistas: “os calções demasiado curtos e soltos são pouco decentes”. à parte desta insistência, Barradas detinha- se, com uma atenção que não havia dedicado aos combates dos amadores, na forma física dos atletas e no seu desempenho técnico. Sobre o pugilista António Mateus afirmou: “Como noventa por cento dos pugilistas actuais, não tem escola alguma ginasial: apenas o que a experiência lhe ensinou.” Poucos não apresentavam falta de “desenvolvimento muscular e robustez, indispensáveis para a prática de um desporto duríssimo e que só a poder de técnica pode suportar-se sem dano” (ibid).

Mas no que respeitava à técnica o panorama geral também não era o ideal: “Filipe Rebordão é um batalhador, não é um estilista (onde os há?) ou um esgrimista.” (ibid). A imagem da esgrima servia de bitola para medir o domínio técnico dos pugilistas. Sobre Figueiredo, acusado de não manter bem a guarda, afirmou: “O braço esquerdo de Figueiredo em lugar de subir até cobrir a linha alta, flete para o interior, para o tronco. É como se um esgrimista, em lugar de conservar o ferro em riste o puxasse para trás e para o solo. A ignorância do directo da esquerda e do seu quasi-inacreditável papel na esgrima dos punhos conduz ao ‘box-caricatura’ tão vulgar nos nossos dias” (ibid). Alguns pugilistas, como Guilherme Martins, destacavam- se pela sua esgrima, embora, neste caso particular, a ausência de um “poder de golpe e de encaixe” prejudicassem os objectivos da vitória.

A avaliação da performance procedia então pela combinação do

 

desempenho físico, proporcionado por uma condição atlética de partida (peso, altura, musculatura, extensão dos membros) e por qualidades performativas (agilidade, rapidez, flexibilidade, técnica). Estes elementos eram gerido pelas competências que em último caso obrigavam o corpo a mover-se (combatividade, coragem, resistência, sacrifício). Tais competências definiam a atitude do pugilista. O valor moral da atitude nesta troca simbólica encontrava-se na base do espectáculo e das expectativas do público. Pela mistura destes diversos factores revela-se o estilo do pugilista, a sua tática, ou o seu processo, como muitas vezes a crítica especializada se lhe referia. A análise deste processo recorria a um conjunto de componentes de apreciação: a movimentação dos braços e das pernas, o jogo de tronco, a guarda defensiva, o encaixe e a capacidade de ataque, entre outros. Existia um ritmo, um andamento próprio em cada combate que resultava desse choque de estilos entre competidores (“Jorge Larzen tem planta de pugilista, leve, musculoso, membros extensos, etc. Figueiredo tem planta de lutador: lento, pesado, músculos em novelo, e sem flexibilidade”)

A ordem da interação no ringue dependia então desta conjugação entre condições físicas e técnicas de partida, servidas pela combatividade e pela interpretação tática do encontro. Cabia ao árbitro e aos juízes contabilizar os pontos que cada competidor conseguia amealhar para, no caso de não existir um KO (abreviatura de knock-out) se atribuir a vitória àquele que melhor cumprira os objetivos do jogo. Os movimentos dos braços do pugilistas tinham todos designações próprias, normalmente em inglês (Larzen executava “razoavelmente um ‘jab’ de esquerda, seguido de ‘hook’”; Sousa Jr.º, com “uma fogosidade pouco ordenada”, ataca “a golpes laterais largos [hooks e swings] “Figueiredo desconhece o ‘directo’). Alguns pugilistas reconheciam-se pelo domínio de certos golpes, aqueles mais relevantes no seu repertório motor. Os jornais ajudaram a popularizar estas designações, também presentes em livros de divulgação que se iam sendo publicados em português.

No documento A gir ,A tu ar, E xib ir (páginas 148-150)

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