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AGUÇANDO O OLHAR A PARTIR DOS ESTUDOS SOCIAIS DA TECNOLOGIA

CONHECIMENTO E SOCIEDADE.

2. PERSPECTIVAS TEÓRICAS PARA ANALISAR OS MUSEUS DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS

2.2. AGUÇANDO O OLHAR A PARTIR DOS ESTUDOS SOCIAIS DA TECNOLOGIA

A principal contribuição para se pensar a tecnologia e, por conseguinte, os aparelhos, foi feita pelos Estudos Sociais da Tecnologia quando propuseram que a tecnologia é uma construção social, pois no processo de produção e circulação da mesma estão presentes, além dos conhecimentos científico-tecnológicos, aspectos políticos, econômicos,

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Essa ideia assinala que a democracia deixou de ser democrática (o modelo liberal representativo), no sentido de entender os reais desejos e necessidades da população. Por isso, parece existir uma distância crescente entre representantes e representados e uma inclusão política abstrata feita de exclusão social. Nesse sentido, a democratização da democracia proporia configurações de contratos sociais mais inclusivos e democracias de mais alta intensidade para a deliberação sobre aspetos relacionados às implicações das ciências e das tecnologias.

sociais, entre outros, que configuram “um tecido sem costura” (seamless web) (HUGHES, 1986). Isto é, a tecnologia é sociedade. Nessa ordem de ideias, a principal crítica que se faz à noção dominante de tecnologia que faz distinções a priori entre “o tecnológico” e “o social” problematiza a tensão determinista (determinismo tecnológico versus determinismo social) (THOMAS, 2008). O primeiro atribui à tecnologia uma autonomia ou exterioridade social que ela não possui. E o segundo assume que o tecnológico seria afetado unicamente por causa dos desejos e/ou necessidades da sociedade.

Assim sendo, o determinismo tecnológico supõe uma dicotomia entre uma tecnologia que produz impacto e uma sociedade que os recebe (sofre ou aproveita). Daí que o interesse teórico estaria em compreender como os processos sociais influem na produção e circulação da tecnologia, com o fim de demonstrar como os aparatos contêm à sociedade. Assim, seria possível identificá-la se abríssemos a “caixa preta” da tecnologia para dar conta do tecido sem costura já mencionado (PINCH, 1997). Nesse caminho de reflexão, também poderíamos compreender os museus como “um tecido sem costura”, pois nesses cenários estariam inseridos conhecimentos, componentes políticos, educativos, econômicos, socioculturais, entre outros, uma vez que essas partes são constitutivas do surgimento e posterior funcionamento desses cenários. Ou seja, existe um conjunto de atores articulados, tanto internos como externos, que co-constroem (permitem) seu funcionamento.

Seguindo essa ideia, é possível definir pelo menos quatro premissas centrais para o entendimento da tecnologia a partir desse ponto de vista: 1) criticar toda manifestação do determinismo tecnológico ou social; 2) evitar o protagonismo do inventor isolado (gênio); 3) problematizar a dicotômica tecnologia / sociedade, procurando articular aspectos sociais, econômicos e políticos nos processos tecnológicos; 4) compreender como a tecnologia é produzida, antes de tentar uma definição minuciosa do termo (BENAKOUCHE, 1999).

Nesse sentido, existem três abordagens que contribuíram para o desenvolvimento dos atuais EST:

1. A ideia de sistemas tecnológicos. Este olhar baseia-se nos grandes sistemas tecnológicos (por exemplo, os sistemas de interconexão elétrica), mostrando como se articulam os elementos sociais, políticos e econômicos envolvidos em diferentes etapas do desenvolvimento e a popularização de uma tecnologia em

função de um controle central que garante a otimização do desempenho do conjunto, seguindo a ideia clássica de sistema de Karl Ludwig von Bertalanffy (HUGHES, 1983).

2. A chamada Teoria-Ator-Rede propõe que o conhecimento científico e tecnológico configura-se por meio de redes de atores humanos e não humanos – actantes –, generalizando o princípio de simetria desenvolvido por David Bloor (CALLON, 1986). Esta perspectiva de rede permite que seja superada a dificuldade que se encontra nos sistemas tecnológicos de ambiente-sistema, mas, por outro lado, enfrenta o problema de definir seu alcance; contudo, teria a vantagem de ser “imune” à universalidade de uma compreensão sobre desenvolvimentos científico-tecnológicos, pois cada rede é diferente e sócio-historicamente situada (CALLON, 1998; LATOUR, 2008).

3. O construtivismo social da tecnologia (SCOT, Social Construction of Technology), baseia-se no programa empírico do relativismo desenvolvido principalmente por Harry Collins por meio do estudo de controvérsias científicas (PINCH; BIJKER, 1984). Tal relativismo trata-se de uma proposta metodológica que sugere a análise de casos de controvérsia científica que procuram evidenciar a flexibilidade interpretativa dos resultados da pesquisa científica presente nos envolvidos na disputa. Nessa direção, o SCOT propõe um modelo multidirecional baseado em dinâmicas problema-solução36 para analisar o desenvolvimento de processos de inovação tecnológica, opondo-se às análises lineares que supõem um desenvolvimento que parte da pesquisa básica contínua com a pesquisa aplicada desenvolvimento de produto (produção) e termina com o aproveitamento dos resultados pelos usuários (sociedade). Essa abordagem usa

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As dinâmicas problema-solução no sentido proposto por Pinch e Bijker (2001), propõem que o desenvolvimento de artefatos estaria animado pelo enfrentamento de problemas dependentes de cada grupo envolvido (relevante). Nesse sentido, haveriam tantos problemas quantos grupos presentes, que a sua vez poderiam ter várias soluções possíveis. O artefato ou desenvolvimento tecnológico se estabilizaria com a solução que consiga satisfazer o maior número de grupos envolvidos.

conceitos como grupos sociais relevantes, flexibilidade interpretativa, funcionamento, clausura e estabilização37.

Além disso, a proposta de uma teoria crítica da tecnologia, de Andrew Feenberg (2002), aproveitando as reflexões dos EST e a Escola de Frankfurt, propõe a democratização das instituições e os cenários tecnologicamente mediados da sociedade, porque reconhece que os interesses sociais intervêm na seleção e, portanto, na definição de um problema a ser resolvido. Por essa razão, a tecnologia seria socialmente relativa e o produto das decisões técnicas configuraria um mundo que respalda o modo de vida de um ou outro grupo influente.

Os campos de pesquisa até aqui apresentados foram significativamente importantes para se compreenderem as dinâmicas sociais e tecnológicas que operam de maneira conjunta na mudança tecnológica. Mas serviram também para lutar contra o determinismo social ou tecnológico que essencializa o poder da tecnologia, por meio do qual se mostrou que um sistema tecnológico nunca é meramente técnico, pois seu funcionamento inclui elementos técnicos, econômicos, políticos, empresariais e socioculturais. Do mesmo modo, estes foram de utilidade para evidenciar que a tecnologia nunca é um produto acabado, pois depois que o aparelho abandona os laboratórios e as oficinas, ele segue evoluindo nas práticas cotidianas de uso, e, inclusive, o tecnológico pode mudar tanto em si quanto em suas interações com os usuários, por conta da flexibilidade interpretativa. Finalmente, põem em evidência até que ponto a grande parte da teoria social deixa de lado a tecnologia, ou a materialidade.

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O conceito de grupo relevante refere-se a instituições, organizações ou grupos de indivíduos organizados ou não, cuja característica principal é que todos os membros do grupo compartilham o mesmo conjunto de significados e interesses com respeito a um aparato. Esse conceito poderia equiparar-se à noção de coletivo de pensamento proposta por Fleck (1986). A ideia de flexibilidade interpretativa está relacionada à abertura que existe frente à interpretação sobre o funcionamento de um aparato tecnológico ou sistema tecnológico. A noção de estabilização refere-se ao desaparecimento de flexibilidade interpretativa por causa do consenso entre os grupos relevantes, e à consequente escolha e consolidação de uma solução. E a noção de funcionamento seria um processo de construção sociotécnica que envolve diferentes elementos heterogêneos, por isso o funcionamento dos aparelhos não é algo intrínseco às características dos mesmos, mas uma contingência que se constrói social, tecnológica, política e culturalmente (PINCH; BIJKER, 2001).

No entanto, os trabalhos neste campo centraram-se principalmente em sistemas sociotécnicos de alta intensidade de conhecimento, focando seu interesse mais na produção do que no consumo dos mesmos, deixando de fora as relações de serviço, consumo e venda, nas quais há uma diversidade de outros protagonistas, mas que são tradicionalmente excluídos dessas análises. Esta é precisamente uma das discussões que fazem as feministas críticas da tecnologia, além de assinalar um domínio de estudos e reflexões baseados no “primeiro mundo”, os quais muitas vezes pouco servem para outros contextos. A seguir, apresento suas principais críticas e aportes.