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CONHECIMENTO E SOCIEDADE.

2. PERSPECTIVAS TEÓRICAS PARA ANALISAR OS MUSEUS DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS

2.3. CRÍTICAS A PARTIR DA PERSPECTIVA FEMINISTA

Embora as feministas críticas da tecnologia utilizassem muitos conceitos dos EST para desenvolver suas reflexões, também se propuseram a modificá-los visando a abordar alguns problemas que identificaram na base destas aproximações. Seguindo as reflexões de Judy Wajcman (2006), alguns autores dos estudos sociais da ciência e da tecnologia caíram nas práticas convencionais das ciências sociais marcadas pela falta de interesse e desencantamento. Inclusive, muitos pesquisadores desse campo reivindicam o princípio do agnosticismo generalizado, que promove que o pesquisador não deveria tomar partido nos aspectos técnicos ou sociais dos casos objeto de estudo (SINGLETON; MICHAEL, 1998). Em oposição, as propostas feministas reconhecem que a pesquisa é sempre uma prática política, pois procura ter um entendimento de um problema para depois promover uma transformação do mesmo, o que seria a principal diferença em relação aos EST convencionais (WAJCMAN, 2006).

Além disso, os enfoques construtivistas da tecnologia nem sempre reconhecem que a estabilização e padronização dos sistemas tecnológicos implicam necessariamente negar a experiência de quem está fora da norma através de práticas de exclusão ou rejeição. Essas situações são consubstanciais e não tangenciais para uma adequada descrição do processo de construção das redes que configuram uma tecnologia (WAJCMAN, 2006, 2010). Por essa razão, um aparato pode ser observado de múltiplas maneiras dependendo do lugar que ocupa uma pessoa no seio da rede sociotécnica38.

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Nesse sentido, Wajcman (2006) usa o exemplo dos telefones móveis e os computadores que permitiram às mulheres emergir de seu âmbito doméstico, articulando-se a redes globais sem abandonar o papel que desempenhavam em

Finalmente, a crítica feminista assinala que muitos dos pesquisadores dos estudos sociais da ciência e da tecnologia não são capazes de reconhecer que a ausência das mulheres nas redes sociotécnicas, ou de outros grupos socialmente menos privilegiados, não significa que ditas redes sejam uma zona livre de gênero ou de exclusão. Pelo contrário, estas são, como o menciona Wajcman (2006), redes que têm uma política de gênero e de discriminação. Assim, para que isso seja visível, seria preciso ampliar a rede sociotécnica.

2.3.1. Aportes a partir das reflexões feministas

Talvez a pesquisadora mais reconhecida da perspectiva crítica feminista da ciência e da tecnologia seja Donna Haraway: ela propõe a ideia de Cyborg para se referir à criança ilegítima da sociedade dominante (bastardo). Esta é uma hibridação, uma mistura dos binômios defendidos pela modernidade homem-máquina, branco-negro, macho/varão-mulher, evoluído-primitivo, etc. Neste sentido, é também uma abordagem da questão ética da ciência e da tecnologia, reconhecendo o papel que desempenha a tecnologia como parte da sociedade. Haraway (1991) inspira-se nas reflexões feministas das imigrantes e mulheres negras nos EUA e reconhece o poder que tem para a emancipação o pensamento na fronteira (limite), associado a uma consciência opositiva39, que se converte na base da resistência.

suas comunidades, além de ter se convertido em símbolo de liberdade para as mulheres brancas de classe média no “primeiro mundo”. Contudo, quando se analisa com detalhe a rede sociotécnica que permite o design e a produção desses aparelhos eletrônicos, verifica-se, por um lado, que o trabalho escassamente qualificado das linhas de produção tem se trasladado ao terceiro mundo e é realizado principalmente por mulheres de baixa renda. Por outro lado, estes aparelhos eletrônicos precisam de um mineral chamado Coltan, e um dos poucos lugares que dispõem dele é a África, onde primam relações trabalhistas coloniais e, em alguns casos, feudais, promovidas por multinacionais. Além disso, o aumento do preço nos mercados globais deste material produz efeitos locais, incrementando a exploração e os confrontos entre grupos locais que usam práticas de guerra, tais como a violação e a prostituição. 39

O conceito de consciência opositiva foi proposto por Chela Sandoval para se referir à apropriação consciente da negação. Este também foi referido por outras autoras como consciência mestiça ou consciência Cyborg (SANDOVAL, 2004). Nesse sentido, Haraway (1991) usa o termo consciência opositiva como a capacidade para ler as teias de aranha do poder daqueles a quem se rejeita a

Segundo Haraway (1991), ciência é cultura, portanto, é um conhecimento social, uma prática semiótico-material que utiliza formas de narração semelhantes a outros conhecimentos sociais. Desse ponto de vista, Haraway questiona a noção estabilizada de objetividade da ciência e a neutralidade da tecnologia e propõe uma redefinição destas, introduzindo o conceito de – conhecimentos situados –. A partir dessa perspectiva, o conhecimento é contingente, parcial e localizado e está atravessado por matrizes de gênero, classe, entre outros que provocam tipos particulares de relações de poder. Então, isso implica que o desenvolvimento de tecnologia tem como ponto de partida a própria subjetividade de desenvolvedores e usuários e, por isso, a tecnologia possui marcas culturais que constituem o ponto de vista que deveria ser reconhecido ao se analisar esse tipo de conhecimento (SUCHMAN, 2002). Em palavras de Haraway (1991)

“A questão da ciência no feminismo trata da objetividade como racionalidade posicionada. Suas imagens não são o produto da fuga e da transcendência dos limites da visão desde acima, senão a conjunção de visões parciais e vozes titubeantes em uma posição de sujeito coletivo, que promete uma visão das maneiras de conseguir uma contínua encarnação finita, de viver dentro de limites e contradições, de visões desde algum lugar” (p. 339, tradução livre do autor).

Além dos trabalhos de Haraway, nas últimas décadas as pesquisadoras feministas têm escrito dentro dos EST, teorizando a relação entre gênero e tecnologia como uma conformação mútua. Em consequência disso, a pesquisa tecno-feminista situou-se na vanguarda ao desconstruir a divisão designer/usuário. As reflexões feministas evidenciaram que enquanto a tecnologia converte-se em um objeto físico durante a produção, os significados simbólicos estão em contínua negociação e reinvenção. Portanto, tais reflexões procuram fazer uma ampliação das redes sociotécnicas até os usuários finais incluindo o marketing e a venda, pois no consumo fazem-se presentes marcas de exclusão, elementos centrais na conformação da tecnologia (WAJCMAN, 2006).

pertença estável às categorias sociais do sexo, da classe, entre outras categorias de exclusão.

Desse modo, reconhece-se que o desenvolvimento de um objeto necessariamente propõe um plano de utilização, o qual inclui programas de ações (roteiros) que os usuários deveriam seguir para usar o aparelho. Consequentemente, a tecnologia converte-se em um – actante– que impõe programas de ação a seus usuários (LATOUR, 1997). A eficácia desses programas não depende unicamente dos dispositivos, mas também das redes alinhadas de tecnologia, seres humanos e instituições sociais. No entanto, como o assinalou Wajcman (2010), a prática real pode se desviar da ideia inicial prevista, pois a construção de aparelhos não é um campo exclusivo de designers e engenheiros; na prática, existe uma oscilação entre o usuário previsto e o usuário real, sendo que por conta de tal diferença a flexibilidade interpretativa abriria pontos de acesso para sujeitos excluídos que podem renegociar as redes sociotécnicas preestabelecidas.

Finalmente, os trabalhos feministas procuraram problematizar as relações globais-locais a partir da Teoria do Ponto de Vista (Feminist Stand Point Theory) somada ao olhar pós-colonial. De um lado, esse olhar implica que os objetos construídos têm diferentes significados dependendo dos contextos, razão pela qual os aparatos devem ser compreendidos política e criticamente a partir do ponto de vista em que foram produzidos. E de outro, propõe uma ampliação das redes de análises para permitir a presença de outros atores tradicionalmente excluídos. Assim, esta perspectiva concebe o design como uma prática híbrida e questiona a ideia segundo a qual os designers e engenheiros localizados no “primeiro mundo” seriam mais produtivos e inovadores, enquanto aqueles no mundo em desenvolvimento aparecem, no primeiro olhar, como simplesmente adotando as difusões do mundo “desenvolvido” (HARDING, 2004; PHILIP; IRANI; DOURISH, 2012). No entanto, a ampliação da rede de atores envolvidos no processo de design evidencia o caráter incompleto do planejamento de tecnologias, no qual se naturalizam múltiplos atos situados na esfera do cotidiano, que vão ser necessários para o sucesso de ditas tecnologias (SUCHMAN, 2009). Esses tipos de propostas vão reconhecer a participação de outros atores periféricos (vendedores, promotores, consumidores, entre outros), como co-construtores da tecnologia, o que permite problematizar a distinção entre designer e usuário e reconstruir relações sociais relevantes que cruzam as fronteiras entre eles (SUCHMAN, 2002). A partir do olhar feminista, compartilha-se a ideia dos EST de que a tecnologia é uma ensamblagem de coisas e sentidos em um arranjo mais ou menos estável, que implica maneiras particulares de associar elementos heterogêneos, mas o faz reconhecendo as relações

de poder marcadas pela exclusão como o gênero, a classe e as diferenças étnicas.

Do mesmo modo, Suchman indica que uma das consequências da prevalência do posto de vista de lugar nenhum no design profissional; seguindo aqui a ideia do “truque divino” 40 proposta por Haraway (1991), é que os designers são motivados a ignorar suas próprias posições dentro das relações sociais das quais fazem parte e a ver as tecnologias como objetos neutros, bem como seus criadores (SUCHMAN, 2007). Esta situação permite a distinção entre designer e usuário assim como orienta o design de aparelhos tomando como ponto de partida a posição privilegiada e neutra do projetista (seus imaginários de usuários) e sua especialidade técnica, não só como a forma de conhecimento necessária, mas também suficiente para a produção de tecnologias (SUCHMAN, 2002).

2.4. ARTICULAÇÕES COM A PESQUISA: A TÍTULO DE