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CONHECIMENTO E SOCIEDADE.

2. PERSPECTIVAS TEÓRICAS PARA ANALISAR OS MUSEUS DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS

2.1. OLHARES SOBRE A POPULARIZAÇÃO E SUAS RELAÇÕES COM A ANÁLISE DE MUSEUS

2.1.1. Reflexões sobre a PCT

Depois de uma revisão das reflexões sobre a PCT, identifico pelo menos três perspectivas teóricas que se envolvem de forma particular com a análise de museus construídos para popularizar conhecimentos científico-tecnológicos.

A primeira sintetiza a visão dominante da popularização, que se caracteriza por uma forte demarcação entre a produção do conhecimento e sua disseminação. Neste caso, o museu (exposições/aparatos) procura encaixar os conhecimentos científicos e tecnológicos(FELT et al., 2003; HILGARTNER, 1990; LEMARCHAND, 1996) e mantê-los intactos. A segunda também identifica uma brecha entre o conhecimento “leigo” e o especialista, e se autolegitima como espaço dos popularizadores, assim como se reconhece e valoriza no museu a dimensão estética e edu- comunicativa, razão pela qual se visibiliza um saber-fazer do popularizador que faria uma transposição do conceito a

exposições/aparelhos (BENSAUDE-VINCENT, 2001; DURANT, 1999; LEWENSTEIN, 2003; MARANDINO, 2005a). Há finalmente uma perspectiva que reconhece a popularização como parte da produção de conhecimentos científicos e tecnológicos, na qual o aparelho não é o fim, mas um meio (canal) articulado com outras dinâmicas de interação entre “leigos” e especialistas, tais como: processos de negociação social, juízos públicos, grupos de discussão, fóruns, etc. (CALLON; LASCOUMES; BARTHE, 2009; FRANCO-AVELLANEDA;VON- LINSINGEN, 2011; JASANOFF, 2003; WYNNE, 2008). A seguir, aprofundo essas três perspectivas.

A primeira perspectiva representa a visão dominante da popularização (HILGARTNER, 1990), que é promovida especialmente pela comunidade científica. Nessa compreensão, a popularização não faz parte do processo de produção de conhecimentos científicos e tecnológicos, além de ser vista como uma simplificação necessária para aproximar os “leigos” dos conhecimentos científicos e tecnológicos, o que também garantiria o apoio da sociedade na medida em que são divulgados os trabalhos desenvolvidos pelos cientistas. Não obstante, essa circunstância faz com que a prática de popularizar no interior da comunidade científica tenha um menor status pelo fato de que seu papel estaria ancorado unicamente em facilitar a comunicação entre públicos e especialistas, além de existir a preocupação pela possível “distorção” dos conhecimentos científicos e tecnológicos por causa da interação de diferentes atores (especialistas, popularizadores e públicos); por isso, pode chegar inclusive a ser deslegitimada (FELT et al., 2003). Essas circunstâncias geram diferenças de poder, entre quem sabe e quem não, e um status especial para os conhecimentos científicos (HILGARTNER, 1990, LEMARCHAND, 1996).

Desse modo, uma recente pesquisa de Pérez-Bustos (2010) identifica que a PCT é uma prática feminilizada em países como Colômbia e Índia, tanto pelo número de mulheres que participam desses cenários de popularização quanto pelas relações sociais que se configuram nessas práticas, as quais estão articuladas aos papéis culturalmente definidos como femininos (cuidado, bem-estar do outro, reprodução da vida e da cultura, entre outras). Nesse sentido, a PCT, do mesmo modo que a educação, localiza-se em uma posição de subordinação com respeito à produção de conhecimento científico- tecnológico dominante e, como se assinala nos estudos feministas, as

práticas altamente feminilizadas ocupam as posições mais baixas na escala de prestígio de suas áreas de conhecimento32.

Pérez-Bustos (2010) propõe que a feminilização da PCT deve ser compreendida a partir de uma perspectiva cultural, e não só como um fenômeno demográfico que dá conta da participação das mulheres em um campo. Nessa ordem de ideais, assinala que na PCT é possível identificar a feminilização em duas situações complementares: na primeira, no papel atribuído a esta como um espaço para cuidar e “criar” o outro, que é concebido como menor de idade; na segunda, na função do marketing e da publicidade da ciência, pois ainda que esta não tenha associação direta com o feminino, feminiliza-se ao fazer com que esta função perca status frente à comunidade de cientistas, já que eles a qualificam, segundo seus interesses, como sendo fútil ou como oportuna, dependendo do tipo de mensagens que enviem. Nunca como mediadora crítica, nunca como possível representante ou interlocutora entre cientistas e grupos sociais que se encontram nas margens da produção de conhecimento dominante.

Assim sendo, o museu é entendido como um conjunto de propostas educativas que constituem uma espécie de “mini-currículo” (OPPENHEIMER, 1986, p. 6); por isso, existe um especial cuidado com a coerência conceitual que centra a atenção na correspondência entre a exposição e o fenômeno que representa. Por exemplo, no Exploratorium, essa preocupação tem estado presente nas propostas de design para a abordagem de temáticas abstratas, nas que foram usadas entre outras estratégias para conseguir tal coerência: uma maior rigorosidade para escolha das experiências educativas a serem incluídas em uma exposição; uma configuração sequencial das exposições (linear) em que estavam encadeados conceitos ou características dos fenômenos abordados; uma estética de design unificada entre grupos de aparelhos com temáticas relacionadas (família de objetos), e etiquetas que se orientavam mais para reforçar o tema abstrato em geral do que se focar em uma experiência individual (ALLEN, 2004).

A segunda perspectiva também identifica uma brecha entre os conhecimentos “leigos” e os especialistas, mas se centra em autolegitimar a atividade de popularizar (BENSAUDE-VINCENT, 2001). Essa talvez seja a perspectiva com maior aceitação nos países

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Um bom exemplo dessa situação acontece com a educação básica, a qual tem um status social e econômico inferior à educação universitária e, igualmente, encontra-se majoritariamente exercida por mulheres das classes menos privilegiadas.

centrais e na América Latina, influenciada pelo movimento inglês Public Understanding of Science (Entendimento Público da Ciência) (DURANT, 1999), que surge depois de uma época de otimismo técnico- científico nas décadas posteriores ao pós-guerra, no qual se supunha que a população seria simplesmente beneficiada pelas pesquisas científicas e tecnológicas que seriam feitas. No entanto, a racionalidade científica dessa época passa a ser questionada nas décadas de 1950 e 1960 e, com frequência, transforma-se em uma fonte de preocupação pública: destacam-se as manifestações e protestos liderados por organizações ambientalistas e cidadãos comuns contrários a assuntos como a energia nuclear, produtos químicos usados na agricultura e tecnologias militares. No caso da América Latina, essa oposição teve envolvimentos teóricos importantes em um grupo de intelectuais da região chamado por Dagnino, Thomas e Davyt (1996) de Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS). Abordo esse aspecto no capítulo IV.

Igualmente, o relatório realizado na Inglaterra pela Royal Society, em 1985, The Public Understanding of Science (THE ROYAL SOCIETY, 1985), considerava que a falta de entendimento científico do público seria uma ameaça para o desenvolvimento científico e tecnológico da sociedade. Por isso, seria importante a implementação de estratégias para superar a “ignorância” em relação aos princípios científicos, situação que seria responsável pela incompreensão acerca da importância desses conhecimentos enquanto bem público (FELT et al., 2003).

Consequentemente, foram introduzidas soluções que tiveram uma ênfase na comunicação da ciência por meio de múltiplos meios (mídia, museus, revistas, livros didáticos, etc.), e, além disso, pouco a pouco surgiu a necessidade de se profissionalizar o trabalho do popularizador sendo que, inclusive, criaram-se organizações como aconteceu no México com a Sociedade Mexicana para a Divulgação da Ciência e a Técnica (SOMEDICYT) em 1986. Isso articulado com reflexões sobre a comunicação, que identificavam diferentes tipos de relação entre não cientistas e especialistas. Uma das mais conhecidas foi proposta por Lewenstein (2003)33. Assim, reconhece-se que o ideal seria um modelo

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Lewenstein (2003) distingue quatro modelos: o modelo deficitário, o contextual, o de experiência leiga e o participativo. Esses quatro modelos poderiam dividir-se em dois: uma tendência centrada no conhecimento do ator especialista (deficitário e contextual), e a outra que procura reconhecer e dialogar com o conhecimento leigo (experiência leiga e o participativo).

participativo, ainda que na prática, com frequência na América Latina, identifica-se uma tendência deficitária caracterizada por estratégias top- down (hierarquizadas), de via única, que partem dos cientistas/popularizadores para o público(DAZA; ARBOLEDA, 2007; NAVAS, 2008; PÉREZ-BUSTOS, 2009). Nesse ponto de vista, a última década esteve caracterizada pelo renovado interesse das agendas governamentais do mundo todo em atrair a cidadania leiga para espaços participativos com especialistas; responsáveis pela política pública, com o objetivo de criar cenários de aparente deliberação sobre o risco frente às ciências e às tecnologias, além de renovar a aceitação pública frente a esses conhecimentos (WAJCMAN, 2006).

Em relação aos museus, essa perspectiva reconheceria um protagonismo especial dos aparelhos, os quais seriam valorizados não só na perspectiva proposta por Oppenheimer (1968), no sentido de que a manipulação de aparelhos relacionados a experimentos científicos e tecnológicos motivaria a aprendizagem desses conhecimentos, mas em sua dimensão comunicativa articulada com o design. Nesse sentido, desde a década de 1990, generalizou-se a construção de museus do tipo science centers caracterizados pela “grandiloquência” dos seus edifícios e exposições para seduzir os públicos. Assim, configuram-se propostas com um forte destaque no design (formas, cores, texturas, tecnologias, etc.), e relaciona-se a dimensão educativa com o entretenimento (eduteiment), situação que parece configurar práticas mais próximas ao consumo do que da educação científica e tecnológica como foi assinalado por alguns autores(BAZIN, 1997; FAYARD, 1999; MICHAEL, 1998).

A última perspectiva reconhece que a popularização faz parte do processo de produção de conhecimento científico e tecnológico, mesmo que a maioria dos autores que trabalha nesta perspectiva não se refira à popularização diretamente, mas à relação ciência-tecnologia-sociedade. Esta perspectiva propõe que o conhecimento científico seria uma construção coletiva que estaria em permanente transformação e, por essa razão, a popularização seria uma dessas etapas (HILGERTNER, 1990). Essa orientação tem sido desenvolvida a partir de pelo menos duas tendências.

Por um lado, a partir dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, existem trabalhos que identificam uma virada em direção à participação da cidadania nas decisões e problemas relacionados às ciências e às tecnologias(COLLINS; EVANS, 2002; JASANOFF, 2003; WYNNE, 2008), bem como o surgimento de propostas para a atuação em um mundo incerto frente às dinâmicas científicas e tecnológicas que

apontaria para uma democracia dialógica (CALLON; LASCOUMES; BARTHE, 2009). Essa etapa de incertezas também é chamada por alguns autores de ciência pós-normal, fazendo referência à ideia de Thomas Khun de ciência normal, que estaria caracterizada por uma produção científica com as pessoas (FUNTOWICZ; RAVETZ, 2000). Igualmente, identifica-se que a popularização, como processo que faz parte constitutiva da produção de conhecimento científico e que é tratado como uma atividade social, não poderia isolar-se das relações de poder derivadas de aspectos políticos, econômicos e socioculturais presentes em tal produção, relações que reproduzem esquemas de dependência globais–locais articulados ao desenvolvimento. Desse modo, as dinâmicas de produção de conhecimentos científicos e tecnológicos não se reduziriam a uma dialética controvérsias-consensos, mas, sobretudo, se sustentariam na circulação de objetos e dos diferentes saber-fazer que permitem operacionalizar tais conhecimentos(DE- GREIFF; NIETO, 2006; LOPES, 2009; PÉREZ-BUSTOS, 2010; PHILIP; IRANI; DOURISH, 2012).

Por outro lado, a partir de uma orientação educativa, desde a década de 1970, no Brasil, têm sido desenvolvidas propostas que buscam balizar a educação em ciências na perspectiva educativa freireana34(DELIZOICOV; ANGOTTI; PERNAMBUCO, 2007; DELIZOICOV; ANGOTTI, 1990; DELIZOICOV, 1982; MENEZES, 1980). Esses trabalhos foram pautados em uma orientação curricular cuja lógica de organização é estruturada com base em temas (Abordagem Temática Freireana), sendo que a sua finalidade consiste na discussão sobre a realidade, visando à sua compreensão e transformação, o que implicaria dinâmicas de codificação – problematização – descodificação medidas por conhecimentos científicos. Essa abordagem propõe levar em conta o contexto de

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A proposta educativa freirena fundamenta-se principalmente nas categorias dialogicidade, problematização e conscientização, que, por sua vez, articulam-se em torno de temas geradores. Isso visando a contribuir com a formação de consciência crítica dos sujeitos (coletivo) para estimular a sua participação no mundo em que vivem. Em um processo educativo, o aumento de consciência estaria mediado pela realidade concreta, sintetizada em situações-limite que se tornam problemas/contradições a serem enfrentadas. Para isso, Freire propôs uma dinâmica de codificação-problematização-descodificação dessas complicações (FREIRE, 1977, 2005). Como resultado desse processo, ocorreria um trânsito da consciência real (efetiva) para a consciência máxima possível e, por conseguinte, seria possível perceber mais além das situações-limites que Freire (2005) chama de “inédito viável” (p.126).

geração do conhecimento, produzido sócio-historicamente, datado e provisório (não neutralidade do sujeito e do objeto do conhecimento), assim como o contexto de apropriação desse conhecimento no processo de ensino e aprendizagem.

Desde a década de 2000, têm sido feitas aproximações entre referenciais ligados a perspectivas educativas de ciência, tecnologia e sociedade, e os pressupostos freireanos(AULER; DELIZOICOV, 2006; AULER, 2003; DELIZOICOV, 2004, 2008; FRANCO- AVELLANEDA; VON-LINSINGEN, 2011). Nesse sentido, argumenta- se que, para uma leitura crítica da realidade, seria fundamental uma compreensão crítica das interações entre ciência, tecnologia e sociedade. Por isso, considera-se fundamental a problematização de construções pouco consistentes presentes nas atividades científico-tecnológicas derivadas da suposta neutralidade das ciências-tecnologias (superioridade/neutralidade do modelo de decisões tecnocráticas, perspectiva salvacionista/redentora atribuída à ciência-tecnologia e o determinismo tecnológico). Em desdobramentos posteriores, Delizoicov e Auler (2011) argumentam que existem dois aspectos que evidenciam a não neutralidade das ciências e das tecnologias: as demandas e necessidades específicas que têm origem espaço-temporal e a correspondente busca por suas soluções. Assim, propõe-se a obtenção de demandas localizadas articuladas com a educação científica e tecnológica através de uma investigação temática, conforme proposição de Paulo Freire.

Identifico que esses trabalhos de viés educativo, ainda que não se refiram à PCT, seriam capazes de valorizá-la como parte do processo de produção-disseminação do conhecimento científico e tecnológico, o que proporia sua inclusão como parte do processo educativo formal. Dessa maneira, existiria uma compreensão de circulação que leva em conta o deslocamento das práticas, conhecimentos e objetos e, portanto, se reconheceria a reelaboração/reconstrução dos conhecimentos por conta dos usos, apropriações, resistências que estariam na base dos processos educativos tanto dentro como fora da escola.

Enfim, nesta última perspectiva que reconhece a popularização como parte do processo de produção de conhecimento científico e tecnológico, os museus seriam compreendidos de forma articulada às ações, isto é: a exposição do museu não é algo simplesmente externo e indiferente, mas uma atividade (pensamento) coisificada, carregada de intencionalidades, conhecimentos, ideologias, etc., e, portanto, parte constitutiva da cultura(COLE, 1999; LATOUR, 1997, 1998). Desse modo, as propostas desses cenários não seriam suficientes para atingir a

participação da cidadania, na medida em que padronizam relações de poder-saber. Por exemplo, identifica-se que os museus de ciências e tecnologias configuram mecanismos de comercialização de kits, exposições, experimentos, que cumpriam papeis significativos em termos de homogeneização de modelos institucionais; de fato, muitos desses museus são difíceis de distinguir uns dos outros (LOPES, 2009). Em consequência disso, além das exposições, deveriam ser geradas estratégias de diálogo e encontro entre públicos e especialistas orientadas a “democratizar a democracia”35(SANTOS, 2002).

As propostas teóricas apresentadas anteriormente abrem um panorama amplo para se analisarem os envolvimentos da PCT e as relações que tece com diferentes tipos de interesses, tais como políticos, econômicos, educativos, etc. Nesse sentido, este capítulo aprofunda-se nos estudos sociais da tecnologia (EST) os quais representaram um avanço significativo para se compreenderem as implicações da materialidade e a tecnologia e o papel que esta desempenha para “produzir vida social”. Ou seja, o que chamamos social está tão misturado com o tecnológico que a própria sociedade se constrói junto com os aparelhos (produto/processo). Na seguinte seção, faço uma apresentação geral das perspectivas teóricas mais significativas dos EST (que reconheço como fundamentais para compreender os museus) e encerro com as críticas e propostas feministas que se fazem sobre essas orientações.

2.2. AGUÇANDO O OLHAR A PARTIR DOS ESTUDOS SOCIAIS