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Além de textos: propondo a literatura como veículo didático-cultural

O lingüista M. A. K. Halliday (1978, p. 139) propõe que todo texto “é um evento sociológico, um encontro semiótico através do qual os signi- ficados que constituem o sistema social são compartilhados”. Usar textos para ensinar uma língua estrangeira é, portanto, uma forma eficaz de contextualizá-la. Roland Barthes (1980, p. 9) afirma que o texto literário é “incontestavelmente linguagem”. A literatura liga o real e o imaginário, o concreto e o abstrato, a verdade e a mentira, a experiência e a possibili- dade, o sucesso e o fracasso, o individual e o coletivo. Por isso, explora a linguagem de uma maneira única e especial, tanto na parte lingüística, estética, conceitual ou sociopolítica. H. G. Widdowson (1990) explica por que a literatura usa uma linguagem especial para não somente fazer re- ferências à realidade convencional, mas também representar mundos possíveis, é necessário uma “intensa exploração da linguagem” (p. 178) e uma “atenção direcionada a esta própria linguagem” ao lidarmos com textos literários (p. 179). Expor alunos à literatura é, conseqüentemente, possibilitar-lhes um contato intenso com um tipo de linguagem singular. Além disso, é apresentar-lhes a uma rica forma de expressão cultural onde estão reveladas, registradas e preservadas as idéias, os costumes, a

história e as utopias de um povo. Citando Edgar Morin, Coelho (2000, p. 13) propõe que, juntamente com o teatro e o cinema, a literatura é uma “escola de vida”, uma “escola de complexidade humana”, ou seja, uma forma de arte onde “a cultura de cada época se corporifica”. Ela ainda sugere que, “ao estudarmos a história das culturas e o modo pelo qual elas foram transmitidas de geração para geração, verificamos que a literatura foi o principal veículo para a transmissão de seus valores de base”. O valor educacional da literatura também vem sendo reconheci- do por autores como Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar (1988, p. 9-10) que afirmam que “ao decifrar-lhe o texto o leitor estabe- lece elos com as manifestações socioculturais que lhe são distantes no tempo e no espaço. A ampliação do conhecimento que daí decorre per- mite-lhe compreender melhor o presente e seu papel como sujeito histó- rico”. Para essas autoras, todos os livros favorecem a descoberta dos sen- tidos, mas são os literários que o fazem de modo mais abrangente. En- quanto os textos informativos atêm-se aos fatos particulares, a literatu- ra dá conta da totalidade do real, pois, representando o particular, logra atingir uma significação mais ampla (ibidem, p. 13). Coelho (2000, p. 14) concorda que aprender literatura é fundamental no momento atual. Segundo ela, “a literatura, a palavra escrita, a leitura [...] vêm sendo res- gatadas como a forma (ou o meio) ‘mais eficaz’ para a nova ‘leitura de mundo’ que se faz urgente para a formação de crianças e jovens ou para a ‘reciclagem’ de adultos”.6

Alguns autores discordam da utilidade da literatura como ferra- menta para ensino de uma língua estrangeira. Segundo Sandra McKay, (1987, p. 191) geralmente há três razões usadas para justificar-se a falta de uso de literatura na aula de inglês como segunda língua. Acredita-se que a complexidade estrutural da literatura e seu uso sem igual da lin- guagem não contribuem para o ensino da gramática da língua, que o estudo de literatura não ajuda os alunos a atingirem seus objetivos acadêmicos e profissionais, e que, como a literatura normalmente reflete

uma perspectiva cultural particular, pode ser bastante difícil para os alu- nos. Outros argumentos usados em oposição à literatura são a extensão dos textos e a idéia de que o uso de um texto na aula de língua estrangeira pode estragar a sua apreciação literária (UR, 1996, p.201; LAZAR, 1993, p. 25). Até a proposição cultural, geralmente usada em favor da literatu- ra, surpreendentemente aparece como um problema. Hector Hammerly (1985, p. 146), por exemplo, acredita que as leituras culturais “devem dar ênfase às ciências behavioristas e não à literatura”. Para ele,

apesar de alguns textos literários ajudarem a compreensão da cultura, a maioria não o faz. Pode-se aprender muito mais so- bre outra cultura, em muito menos tempo, lendo as ciências behavioristas do que lendo literatura. O argumento a favor do uso da literatura em programas de segunda língua por causa da compreensão cultural parece, portanto, bastante inválido. Li- teratura é algo que alguém pode ler por diversão ou instrução depois de ter alcançado o nível avançado no aprendizado da segunda língua; só neste ponto pode-se colher certos insights culturais dela.

Michael N. Long (1987, p. 42) comenta que falta uma metodologia consistente para o ensino de literatura para alunos estrangeiros. Ele expli- ca que as abordagens estruturais de ensino de línguas estrangeiras, que “focalizam o ensino de itens isolados, correção da forma gramatical, repe- tição de uma série de estruturas em progressão e léxico restrito” não se encaixam com o uso de literatura. Na opinião de Long, “o ensino de litera- tura para falantes não-nativos deve procurar desenvolver respostas aos textos” e não limitar-se a práticas estruturais e lexicais. Sem dúvida esta inabilidade metodológica de que Long fala também explica a recusa à literatura por parte de alguns professores. É muito mais fácil eliminar a literatura do que ter que buscar textos literários apropriados e ativida-

des relevantes para aplicá-los na aula de língua estrangeira. Entretanto, faz tempo que já há livros como Literature in the language classroom, de Joanne Collie e Stephen Slater (1987) no mercado, que se propõem a ajudar o professor de idiomas a empregar a literatura nas suas aulas.

Apesar do cepticismo de Hammerly, “é simplesmente tido como fato que a literatura, no nível apropriado, é um componente viável dos programas de línguas estrangeiras e que uma das maiores funções da literatura é servir como um meio para se transmitir a cultura do povo que fala a língua na qual é escrita” (VALDES, 1986, p. 137). Autores como Penny Ur, Gillian Lazar, Joanne Collie e Stephen Slater reconhe- cem que a literatura oferece exemplos de diferentes estilos de escrita e usos autênticos da língua, é um bom estímulo para aquisição lingüísti- ca, encoraja a habilidade de leitura e o pensamento empático, crítico e criativo, expande a consciência lingüística dos alunos, é uma boa base para expansão de vocabulário, pode iniciar discussões ou redações e, como envolve emoções e o intelecto, pode contribuir para o desenvolvi- mento pessoal e educacional (UR, 1996, p. 201; LAZAR, 1993, p. 14-19; COLLIE & SLATER, 1990, p. 3-6). Mas a preocupação com o estágio apropriado para os textos literários ainda é uma constante. Autores como Valdes (1986, p. 138) sugerem que o uso da literatura é apropria- do apenas a partir do nível intermediário para avançado. Esta preocu- pação é natural e pertinente, visto que muitos professores não acham válido utilizarem versões resumidas de romances, por exemplo, para não mutilarem a obra. Mas há uma solução para aqueles que querem introduzir a literatura até nos níveis mais iniciais: fazer uso da poesia, que traz textos menores, porém contextualizados e, muitas vezes, de compreensão fácil.

Como já comentei em outros ensaios, infelizmente há também uma certa resistência dos professores de língua estrangeira ao uso da poesia nas suas aulas.7 A aula de literatura como um todo é muitas vezes considerada uma atividade monótona, difícil e ultrapassada. A poesia,

particularmente, é vista como uma arte que atrai somente um grupo de intelectuais e, portanto, está fora do alcance das pessoas comuns. No Brasil, esta pode ser uma conseqüência da maneira como é ensinada em várias escolas de primeiro e segundo graus, onde alguns professores ainda bus- cam uma única interpretação para os textos literários e levam os alunos a sentirem-se derrotados quando não sugerem as mesmas idéias. Atribuir uma única interpretação a um poema é, de certo modo, destruir a natu- reza do texto poético, que é inerentemente aberto e caracterizado pela possibilidade de imaginação, criação e transformação. Fechar este texto, transformá-lo em um espaço hermético, é dar-lhe um caráter quase cien- tífico, limitado e, portanto, anti-literário. Um professor de língua estran- geira que compreende a poesia desta maneira pode, conseqüentemente, recusá-la como material didático por acreditar que ao usá-la nas suas aulas, estará mudando seu papel de facilitador, que encoraja os alunos a se arriscarem, para um mais tradicional, que apenas passa informações. Além disso, especialmente em países onde a leitura e o pensamento críti- co não sejam encorajados em todos os níveis e idades nas escolas e pelas famílias, dificilmente um poema, a princípio, atrairá os alunos com a mesma intensidade que músicas, fitas de vídeo, jogos, programas de com- putadores e a própria Internet. É necessário que o professor faça uso apro- priado da poesia para que não reforçe esta idéia errônea e, ao contrário, motive os alunos a trabalhar mais constantemente com a literatura.

Há muitas razões para se usar a poesia na aula de língua estrangei- ra. Como já mencionei, poemas são, muitas vezes, textos curtos e, por- tanto, fáceis de serem memorizados e encaixados entre as outras ativida- des no plano de aula do professor. Mesmo não sendo longos, os poemas sempre apresentam-se em contextos lingüísticos completos, enriquecidos com elementos culturais. Não são escritos para a aula de língua estran- geira; portanto, são exemplos de materiais autênticos, pois sua audiên- cia inicial é o falante da língua materna e seus temas, de certo modo, são aqueles que interessam àquela sociedade. Mesmo assim, sabe-se que a

poesia normalmente lida com temas comuns no nosso dia-a-dia, como amor e ódio, que são conhecidos de todas as culturas, o que ajuda-nos a desfazer da idéia de elitismo que ainda acompanha a literatura. Até o mito de complexidade pode vir a ser abordado positivamente e servir como um fator motivador, visto que os alunos se sentirão realizados ao obterem sucesso ao trabalhar com um poema na aula. Contudo, para evitar frustração, é necessário se certificar que o poema realmente é apro- priado ao nível lingüístico do seu grupo de alunos, ao seu círculo de inte- resses e às atividades e objetivos para o qual está sendo escolhido. É im- portante selecionar e preparar atividades que encorajem o trabalho em grupo e promovam a curiosidade e exploração do aspecto literário, e es- colher um poema que seja significativo e interessante, nem fácil nem difícil e, de preferência, não muito longo. Se você variar os tipos de ativi- dades aplicadas aos poemas e incluir a exploração literária e cultural entre elas, a próxima vez que fizer uso de poesia será muito melhor rece- bida por seus alunos. Os poemas podem ser usados individualmente, como atividades para aquecimento no início da aula, para desenvolvi- mento das habilidades de produção e compreensão escrita, em ativida- des de compreensão oral, para apresentação ou prática de pontos gra- maticais, assim como para a prática de pronúncia, para expansão de vocabulário, para exposição e compreensão cultural e como forma de diversão. Outro objetivo maior e mais importante é que, “como educa- dores, os professores devem ser uma ferramenta para o desenvolvimen- to geral de seus alunos, promovendo seu crescimento pessoal e intelectu- al ao expô-los a situações que lhes ajudarão a expandir sua compreensão do mundo e, conseqüentemente, torná-los seres humanos melhores” (TOS- TA, 1998, p. 97).

Analisando a aplicação da poesia