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Introdução: o uso didático de filmes em aulas de línguas estrangeiras

Peço licença aos leitores mais exigentes para o tom confessional- memorialista que este texto assumirá nesta introdução, mas este caminho se faz necessário para o que vou relatar. Iniciarei com as minhas lembran- ças de aprendiz de uma segunda língua estrangeira através de filmes.

Minhas primeiras aulas de francês no terceiro nível na antiga Casa da França consistiam de filmes da RTF (Rádio-Televisão Francesa), onde todas as aventuras começavam com o personagem principal, sempre apressado, gritando, “– Hep, taxi”, entrando em um taxi e se dirigindo a algum lugar que seria importante para o desenrolar da história. Se algu- mas vezes não fossem mostradas passagens do campo, acabaríamos achando que todos na França andavam sempre atrasados e apressados, como o personagem.

Nossa professora chamava-se Madame Lóreal, uma francesa que morava há anos em Salvador, mas que ainda falava português com um sotaque fortíssimo. Era final da década de 70 e o método audiovisual estava na moda, sendo a grande vedete do ensino de línguas estrangeiras na época. Ainda não existia a tecnologia do videocassete, que foi moderníssima na década de 80 e agora se tornou jurássica e já se encon- tra em fase de sucateamento e substituição pelo DVD, o que demonstra a fugacidade de toda “tecnologia de ponta”. Assim, após projetar o filme na tela, Madame Lóreal colocava as enormes fitas de rolo no gravador, um imenso aparelho que ocupava metade da sua carteira, e reproduzia os diálogos do filme um a um para que repetíssemos, com a máxima fidelidade, a pronúncia e a entonação das falas dos personagens, mesmo se não soubéssemos direito o que estávamos repetindo. Somente depois de repetirmos oralmente, éramos então apresentados ao texto escrito, a transcrição da trilha sonora do filme. Então, ouvíamos mais uma vez a fita e repetíamos os diálogos e somente nesse momento eram feitos os esclarecimentos sobre a gramática e as peculiaridades da língua francesa,

tudo isso en français, seguido da tradução para o português. Se a profes- sora estava seguindo o método corretamente ou não, eu não poderia di- zer ainda, mas o fato de não estar me comunicando devidamente nos níveis iniciais da língua francesa demonstrava que algo estava errado: ou era a metodologia ou o meu nivelamento que não havia sido adequado. Só muito tempo depois, em um curso de treinamento para profes- sores de língua inglesa, viria a descobrir que o método audiovisual era muito mais complexo do que as minhas aulas de francês deixavam transparecer. Aprendi também que esse método estava fundamentado nas pesquisas behavioristas de estímulo e resposta (aquelas do reflexo condicionado da campainha e do ratinho de Pavlov) e nas teorias de Skinner, e que havia sido desenvolvido para acelerar o aprendizado de línguas estrangeiras por soldados norte-americanos que iam lutar em campos de batalha europeus durante a Segunda Guerra Mundial, o que comprova que determinados avanços tecnológicos e científicos (como o computador e o método audiovisual) só aparecem devido a intenções bélicas e de conquista.

Muito tempo se passou desde então. Entrei para a universidade e resolvi reiniciar minhas aulas de francês a partir do primeiro livro para poder compensar as falhas do meu aprendizado que não me possibilita- vam a comunicação oral efetiva, embora soubesse muitas regras grama- ticais. A professora Aldaísia Schwebel usava o método audiovisual De Vive Voix, mais moderno e muito bem aplicado, como podia perceber no resultado do meu próprio aprendizado que melhorava subitamente. De- vido ao meu interesse e produção, ela me incentivou a continuar meus estudos na Aliança Francesa através de uma bolsa de estudos. Lá, em um nível intermediário mais adiantado, continuei exposto ao mesmo méto- do através dos chamados filmstrips, os filmes em tira. Assistíamos a filmes franceses de longa metragem todas as semanas como parte do programa cultural que integrava aulas com aspectos culturais, como cinema e tea- tro. Era a década de 80 e havia um “animador cultural” na Aliança, o

qual, para minha sorte, foi meu professor. Ele me convidou a fazer tea- tro em francês, o que viria a contribuir grandemente para a minha pro- ficiência nessa língua.

Nesse ínterim, Madame Lóreal foi obrigada a mudar de profissão, tornando-se guia de turistas com a queda da popularidade do estudo do francês como língua estrangeira e o conseqüente fechamento da Casa da França (o que demonstra um certo descaso da política educacional em relação a línguas estrangeiras e a relação língua e hegemonia política e cultural). Depois soube que ela havia abandonado o Beco dos Artistas, no Garcia, onde vivera, retornara a Toulouse, sua cidade natal, e hoje não sei mais do seu paradeiro. Também me mudei muito e mudei bas- tante. Conheci a Paris de minhas aulas de francês e de história, e ao pas- sar pelos vendedores de livros na margem do Sena, não tinha como não lembrar dos bouquinistes que via nos filmes das minhas aulas com Madame Lóreal, aquela figura adorável de quem até hoje sinto sauda- des. Mesmo sem utilizar o método corretamente, era uma excelente pro- fessora que a todos encantava com seu carisma e sua figura humana, e só isso bastava para querermos aprender francês e descobrir mais sobre seu país e sua cultura. E que isso sirva de lição para os coordenadores de curso que sempre estão preocupados com as tecnicalidades mecanicistas de métodos que flutuam e afundam com o passar do tempo, se esque- cendo do mais importante, a parte humana representada pelo professor, pois é ela que marca, e não a “marca” do método da moda.

Aprendi alemão, também na faculdade, e por uma incrível coinci- dência, a minha primeira professora, Denise Scheyerl, é a mesma pessoa que hoje organiza este livro. Estudava com o método mais badalado no momento, o mesmo método com o qual havia aprendido inglês, o méto- do estrutural, que se baseava nos estudos da Lingüística e Antropologia Estrutural, embora possuísse muitos elementos em comum com o méto- do audiovisual. Como já havia estudado inglês desde a adolescência, já ensinava essa língua quando entrei para a universidade.

Trabalhei em diversos cursos de inglês com diversas abordagens metodológicas, tais como o método situacional e o Notional Functional Syllabus, um precursor do método comunicativo. Em um dos cursos, usei o método audiovisual, e embora gostasse do método como aluno-apren- diz de francês, como professor, detestava ter que fazer diversas repeti- ções da mesma fala dos filmes e achava ridículas aquelas repetições descontextualizadas. Para os níveis iniciais, assim como nas lições do material De Vive Voix, usávamos filmes em tiras, e para os níveis mais adiantados, cópias de filmes produzidos para a televisão norte-america- na, muitos dos quais já haviam sido dublados e mostrados nas emissoras de televisão brasileira e que haviam de certa forma ficado ultrapassados. Como eram filmes que visavam apenas ao entretenimento, somente al- gumas raras exceções apresentavam um conteúdo mais profundo, que levava a discussões mais acaloradas sobre a temática e conseguiam trans- formar em prazer o debate subseqüente ao martírio das repetições.

Vocês devem estar se perguntando qual o objetivo dessa preleção inicial sobre o meu processo de aprendizado e ensino de línguas estran- geiras. Antes de mais nada, nós professores somos parte desse processo de inserção histórico-metodológica no qual atuamos como sujeito e ob- jeto de abordagens que seguem a maré de modismos e descobertas cien- tíficas nos campos da psicologia e lingüística aplicadas ao ensino de lín- guas e nas subáreas de aquisição da linguagem e metodologias do ensi- no/aprendizagem de línguas estrangeiras. Todo professor foi e é um apren- diz, cuja história pessoal está intrinsecamente ligada à história dos de- senvolvimentos metodológicos, quer ele saiba disso ou não. Segundo, porque a aprendizagem envolve crenças que depois transferimos de nos- sa própria experiência como aprendizes para o nosso campo de trabalho e para o nosso trabalho de campo. Terceiro, porque toda objetividade pressupõe uma subjetividade, que vai da simples escolha do tema à abor- dagem que acreditamos seja a mais eficaz. Agora, resta-me diferenciar as fronteiras entre o uso de filmes como uma ferramenta complementar

de ensino e o uso de filmes como metodologia por onde perpassam ideo- logias e aspectos culturais e políticos. E é sobre estes aspectos que discor- rerei daqui por diante.

Afinal de contas, cinema é arte ou entretenimento? Arte ou meio de comunicação de massas? Alguns teóricos defendem uma única abor- dagem, outros preferem aceitar a ambigüidade do conectivo aditivo “e” do que optar pela alternância da escolha do “ou”. Coloco-me nesse se- gundo grupo. Considero cinema um meio de comunicação de massas que é tanto arte quanto entretenimento.

Como vivemos na era da imagem, em vez de criticarmos o meio visual, devemos dele nos utilizar como aliado, e não como inimigo. Não podemos fugir dos atrativos que a tecnologia nos oferece para facilitar e estimular o aprendizado. Sempre gostei dos dois meios, livros e filmes, e todo filme é a adaptação para o meio audiovisual de uma história escri- ta, seja ela escrita diretamente para a tela, através do roteiro cinemato- gráfico, ou através de adaptações de livros já existentes.

Há muito tempo venho utilizando filmes como parte do ensino de língua, literatura e tradução. Em um curso de línguas onde lecionei em Salvador, como resultado dessa paixão pelos dois meios, resolvi criar um curso avançado de introdução à literatura de língua inglesa para adoles- centes e jovens adultos. Como atrair clientela para tal? Comecei pelo nome. Embora a minha intenção fosse o estudo literário, a palavra “literatura” não poderia aparecer nem na descrição nem no nome do curso. Primeiro, porque já existia um curso assim denominado na escola que não conse- guia ter mais do que três ou quatro alunos, geralmente pessoas mais ve- lhas, professores de inglês, e meu curso se dirigia a pessoas mais jovens, alunos que já haviam concluído um curso básico de língua inglesa e pre- tendiam continuar seus estudos da língua inglesa em um nível mais avan- çado. Segundo, porque a palavra “literatura”, devido à obrigatoriedade e à maneira como é ensinada na maioria das escolas, possui uma carga ne- gativa e um certo preconceito por parte de jovens alunos que na escola

foram obrigados a associar a memorização de nomes de escritores, datas, e fatos históricos ao estudo literário, em uma verdadeira distorção do que é literatura, principalmente para jovens que precisavam ser incentivados a descobrir o prazer da leitura e dos textos. Assim, comecei com um nome que soava como um convite à aventura da leitura e da conversação (Adventures in Reading and Discussion) e com uma descrição do curso bas- tante atrativa, enfatizando o aspecto imagístico dos filmes, o que fazia com que as aulas ficassem lotadas e muitas vezes foram oferecidas duas turmas por semestre. Os alunos aprendiam a ler contos, peças teatrais, filmes, poemas e canções e descobriam a literatura de língua inglesa de forma prazerosa sem perceber que aquilo que estavam estudando era algo com o nome de “literatura” que um dia acharam maçante e detesta- ram. O curso se tornou tão interessante que alguns alunos chegavam a cursá-lo duas vezes, mesmo tendo sido aprovados, e em seus feedback sem- pre sugeriam a continuação em mais um semestre.

Como isso era feito: primeiro tive que criar o meu próprio materi- al, buscar diversas fontes e adaptar todo o material literário à realidade desses jovens e do instituto de línguas que tinha o método comunicativo como pressuposto filosófico/metodológico. Uma outra condição que me impus era que todos os contos ou peças selecionados deveriam possuir uma adaptação fílmica, e todo poema deveria ter sido musicado ou pos- suir alguma adaptação em vídeo. Assim, fui selecionando meu material e criando atividades bem variadas de warm-up e follow-up para cada con- to, peça ou poema, sempre levando em conta a faixa etária e o interesse dos alunos, que deveriam primeiro se envolver com os temas antes mes- mo de começar a leitura, para serem convidados a participar da desco- berta do prazer de ler. Quando já estavam bem envolvidos com o tema, eram feitas as leituras, que também adquiriam formas variadas. Em se- guida, passávamos a questões relativas à compreensão e à discussão dos assuntos enfocados no texto, relacionando-os à experiência de cada um. Somente no fim dessas discussões os alunos eram informados sobre a

inserção histórica do autor e de suas obras e sobre algumas questões teóri- cas pertinentes, de uma forma bem leve, apenas a título de informação para aqueles que desejassem aprofundar mais suas leituras daquele autor. Feito isso, passávamos à discussão da adaptação para um meio fílmico e das diferenças de linguagens. Cada aluno era convidado a agir como um diretor e contribuir com sugestões de como a adaptação para o cinema deveria ser, que cenas ele enfatizaria e porque, como se processa- riam determinadas passagens, como cada um visualizava determinados personagens etc. Então passávamos ou à leitura do roteiro das adapta- ções cinematográficas dos contos, onde cada aluno assumia a leitura de um personagem, ou já partíamos para a exibição do filme. Depois pro- cedíamos à discussão das semelhanças e diferenças de linguagens, se as cenas e os personagens correspondiam à imagem mental que cada um havia feito, falávamos sobre a correspondência de recursos do cinema a determinadas passagens escritas etc.

No caso das peças teatrais, antes de proceder à visualização do filme, cada aluno lia as falas de um determinado personagem como se estivesse atuando e logo em seguida ouvíamos fitas cassetes com grava- ções de peças da Broadway. Assim, tínhamos três diferentes meios para comparação. Mais tarde, ao ensinar literatura de língua inglesa na uni- versidade, passei a utilizar um método parecido, onde os alunos primei- ro lêem os textos e depois assistem as adaptações cinematográficas com o intuito de comparar os diferentes meios. No ensino de tradução, tam- bém utilizava filmes, muitas vezes comparando a tradução escrita de algum romance ou peça teatral à tradução nas legendas e algumas vezes à tradução da dublagem.

Passemos agora à relação literatura e filme sob a perspectiva histó- rica, uma vez que um pouco da história do cinema também serve como fonte de material para debates em aula, como veremos a seguir.

Literatura e filme: censura como máscara cultural