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Analisando a aplicação da poesia em alguns livros didáticos

A preocupação com a cultura nas aulas de Português para estran- geiros, por exemplo, já existe há mais de três décadas. Em Modern Portuguese (1971)8, o diálogo principal se baseava em situações culturais, explorando temas da rotina dos brasileiros, como a aula na universida- de, a ida à praia e a uma partida de futebol, e eventos como o Carnaval. Há também textos sobre a literatura brasileira, a Amazônia e cidades como São Paulo. Entretanto, não há nenhum poema no livro. Como tam- bém acontece com a maior parte dos manuais para ensino de inglês, a poesia ainda está ausente na maioria dos livros- texto para ensino de Português para estrangeiros.9 Quando aparece, é de uma maneira super- ficial.10 Um bom exemplo é Bem-vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação (2000)11, que tem se tornado um livro popular no ensino de Português como língua estrangeira no exterior e como segunda língua no Brasil. Na “Apresentação”, os autores afirmam que “um pouco da histó- ria, cultura e sociedade brasileiras fazem parte deste livro”. Em termos culturais, tanto o livro-texto como o caderno de exercícios apresentam aspectos da história, culinária, música, esportes, folclore e composição racial, e até oferecem informações sobre outros países lusófonos, como Portugal, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Às vezes há uma discussão ou exercício posterior à apresentação de um aspecto cultural, mas quase sempre isso limita-se a um texto meramen- te informativo.12 Há um texto sobre a literatura brasileira no livro-texto (p. 182), mas nenhum poema é utilizado como ferramenta para ensino da língua ou compreensão da cultura.

De uma forma geral, os outros livros que discutirei agora também apresentam a cultura através de textos informativos sobre o Brasil (e Portugal), sua história, geografia, folclore, culinária, música popular, cli- ma e costumes. Eles quase sempre trazem textos sobre a língua portu- guesa. Normalmente há materiais autênticos como letras de músicas,

menus de restaurantes, artigos de jornais e revistas e, no caso de Traves- sia, até excertos da televisão brasileira.13 Às vezes, as regiões do Brasil são estudadas e é muito comum textos sobre cidades como o Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Ouro Preto e Brasília. A maioria destes livros têm contos e crônicas brasileiras, mas, infelizmente, entre um e três poemas apenas. Vamos observar como a poesia é (ou não) trabalhada nestes li- vros e propor algumas possíveis atividades de expansão para desenvolvi- mento de consciência cultural através destes mesmos poemas. Ou seja, vamos além do que o livro faz e esta é a nossa sugestão para todos os professores.

Há três poemas em Português básico para estrangeiros (1999).14 Mas nos três casos onde a poesia aparece, praticamente nada é feito com ela.15 Não há também quase nenhuma orientação para o professor. No primeiro exemplo, um poema é usado em um cartão de aniversário (p. 239).16 O autor chama a atenção do aluno exclusivamente para o uso do imperativo. O poema figura como uma ferramenta para mostrar o uso contextualizado da estrutura que está sendo estudada e visa uma conscientização gramatical, o que é importante e relevante. Entretan- to, seu lado cultural não é explorado. O tema de aniversário, por exem- plo, poderia causar uma discussão entre diferenças de celebrações entre a cultura brasileira e a do aluno. O professor poderia discutir também a adequação de práticas do tipo mandar cartões postais e outras questões referentes à idade, como, por exemplo, se é culturalmente apropriado ou não perguntar quantos anos alguém mais velho tem, o que levaria, em seguida, a comparações referentes à noção de envelhecimento nas duas culturas. Além disso, o lado literário deste poema, como a sua bela mensagem, não é explorado. Vale a pena ressaltar que muitas vezes o caminho para a conscientização cultural é exatamente pela interpreta- ção do poema.

O imperativo é também o enfoque do único poema usado em Para a frente: an intermediate course in Portuguese, ou seja, “Poeminha prum

homenzinho a serviço da tecnologia” (p. 295).17 Os autores apenas per- guntam o tema do poema e pedem para os alunos inventarem mais im- perativos para cinco objetos. Eles nem chamam a atenção dos estudantes para o uso da estrutura, como na atividade que aparece em Português básico para estrangeiros. Uma opção para usar este poema para desenvol- ver uma consciência cultural crítica seria partir da interpretação para dis- cutir como é a vida na sociedade descrita no poema. O professor poderia sugerir, ou elicitar dos alunos, uma relação com o sistema capitalista ou com o modo de vida em uma metrópole. Por este caminho pode-se tentar estabelecer semelhanças ou diferenças entre o Brasil e outros países capi- talistas (ou não), ou entre a vida em uma metrópole no Brasil e no país dos alunos. Poderia também ser feito um debate sobre as diferenças entre a vida em uma cidade grande e em uma cidade pequena nos dois países, debatendo-se noções como tempo, lazer e trabalho, presentes no poema, assim como as diferenças entre morar numa casa ou em um apartamen- to. Para tal, o professor uitilizaria também imagens de filmes ou fotos para ajudar a estabelecer o contraste entre os diversos contextos.

O segundo poema que aparece em Português básico para estrangeiros está numa unidade onde está sendo apresentada a voz passiva. O autor escolheu o tema “imóveis” para apresentar e praticar esta estrutura gra- matical. As duas estrofes do poema escolhido, de Roseana Murray, co- meçam com a voz passiva, com o verbo na terceira pessoa e o pronome “se” (p. 250).18 O poema chama-se “Classificados Poéticos” e aparece na mesma página que a parte de imóveis dos classificados de um jornal, o que faz sentido, visto que a voz poética procura “algum lugar no plane- ta” (p. 250). A conexão temática e estrutural entre o poema e a unidade é óbvia, mas o livro-texto, mais uma vez, não explora o poema. Podería- mos perguntar, por exemplo, em que tipo de lugar esta pessoa mora, que tipo de pessoa ela é, qual a sua idade, estado civil etc. Então, os alunos diriam se conhecem alguém que poderia ter escrito este poema e explica- riam o porquê. Seria válido questionar se o lugar procurado poderia ser o

Brasil. Alguns alunos poderiam responder que sim, já que “procura-se algum lugar [...] / onde a vida seja sempre uma dança” (p. 7-8) e associa- se muito o Brasil à alegria, música e eventos como o Carnaval. Por outro lado, o poema poderia ser até uma crítica ao Brasil, já que reclama da devastação das florestas e da violência, também associadas ao Brasil. Temos, neste caso, uma oportunidade boa para lidar com certos estereó- tipos de uma forma positiva e, quem sabe, ir ainda além do poema, dis- cutindo a reforma agrária e o Movimento dos Sem Terra, visto que a moradia é um dos temas implícitos. Dando seguimento, pediríamos aos alunos para escreverem um anúncio que oferecesse um lugar perfeito para esta pessoa.

O terceiro e último poema que é utilizado em Português básico para estrangeiro é “O Menino Azul”, de Cecília Meireles (p. 323).19 Neste caso, o poema está situado na unidade onde o presente do subjuntivo é estu- dado. O local e a escolha são perfeitos, pois o poema faz vários usos desta estrutura. Todavia, a autora mais uma vez limita-se a apresentar o poema. Além da interpretação do poema, talvez a maneira de explorá-lo culturalmente seja associar o “burrinho” com as cidades pequenas do Brasil. Como o primeiro texto desta unidade é sobre festas juninas, o tema já deve ter surgido e pode ser usado para contrastar uma cidade pequena no Brasil com uma cidade pequena nos Estados Unidos, por exemplo. Outra boa opção é explorar os sentidos da palavra “burro” em português, o que é até necessário para se entender o poema. Pode-se tam- bém discutir os significados metafóricos da cor azul no poema, no Brasil e no país dos alunos. Em inglês, por exemplo, a cor blue é associada a tristeza, melancolia e depressão. Já em português, azul é relacionado com alegria, como em expressões do tipo “tudo azul?”.

O livro Falar... ler... escrever... português: um curso para estrangeiros (1999) apresenta três poemas.20 O primeiro é “Irene no Céu” de Manuel Bandeira (p. 143).21 Este poema vem numa seção chamada “intervalo”, o que sugere que não está conectado com o resto da unidade. Os autores fazem algumas

perguntas de compreensão de texto e só. O poema explora o tema de rela- ções raciais, um dos assuntos que mais interessam os estrangeiros que estu- dam o Brasil. Por isso também não deve se perder esta oportunidade para discuti-lo. Em se tratando de um curso nos Estados Unidos, além das per- guntas no livro, o professor poderia contextualizar e comparar a escravi- dão no Brasil e nos Estados Unidos. Poderia também discutir a diferença entre termos para designar cor de pele ou identidade racial no Brasil, como “preto”, “negro”, “mulato”, “moreno” e “branco”; e nos Estados Unidos, como black, negro, African-American, mestizo e white. Para dar seguimento à ativi- dade, os alunos poderiam escrever um poema onde um “branco” entrasse no céu. Algumas especulações seriam úteis para guiar a escrita do poema. Por exemplo, como o branco seria caracterizado? Como seria a sua conver- sa com São Pedro? E se o autor fosse negro? E se São Pedro fosse negro? E assim por diante...

Os dois poemas que restam estão juntos e também na seção cha- mada “intervalo”, prova de que, apesar dos autores reconhecerem a im- portância da poesia, não tentaram integrá-la às outras atividades de uma maneira coesiva. “Procissão” e “A Escada”, de Millôr Fernandes, são poe- mas com forte influência do Concretismo, movimento de vanguarda da década de 50 no Brasil, no qual os poemas eram criados como se fossem objetos, com muita atenção ao aspecto visual e à forma (ibidem, p. 228).22 Mesmo chamando atenção para a forma dos poemas no exercício de interpretação que os segue, os autores não fazem nenhum comentário sobre a Poesia Concreta, o que seria um acréscimo cultural significativo. O professor, neste caso, poderia levar para a aula mais alguns exemplos de poemas concretos, falar sobre o movimento e pedir que os alunos também tentassem escrever poemas neste estilo. O movimento influen- ciou vários poetas na Europa e seria importante uma comparação do trabalho dos brasileiros com o dos europeus. Para a audiência america- na, pode-se também ver a influência do Concretismo em poetas como Robert Creeley e Emmett Williams, por exemplo.

Travessia (TOLMAN e outros, 1988) se propõe a ensinar tanto a língua portuguesa como a cultura luso-brasileira (x). Mas há apenas um poema nos dois volumes dos livros-texto e cadernos de exercícios. O po- ema “Trem de Alagoas”, de Ascenso Ferreira, está na unidade cuja temática é a região Nordeste do Brasil (p. 424-425).23 Há um exercício de interpre- tação com enfoque também em vocabulário, mas os autores vão além. O poema é seguido por uma observação sobre um outro aparecimento do trem na cultura brasileira: em “O Trenzinho Caipira”, uma música de Heitor Villa-Lobos. Há também um pequeno texto sobre Villa-Lobos e uma explicação sobre a origem do termo “Maria-Fumaça”, que oferece também um pouco da história das locomotivas no Brasil. A conexão en- tre as atividades é muito boa, porém os autores poderiam ter explorado mais aspectos do poema, como, por exemplo, as referências aos persona- gens do folclore nordestino, e pedir aos alunos exemplos do folclore de seu país. Poderia se discutir também o papel dos trens e sua relação com a modernidade nos dois países, assim como itens lexicais culturalmente específicos, como a noção de um commuter, que é comum nos EUA.