• Nenhum resultado encontrado

A dimensão teatral da aula de língua se situa em vários níveis: a) nos papéis desempenhados; b) no drama que se desenrola durante o pró- prio processo de aprendizagem; c) nos tipos de interação e atividades presentes; d) nos resultados alcançados.

Papéis

Em um primeiro momento, existem papéis diversos que devem ser desempenhados por professores e alunos. Os alunos desempenham os pa- péis de co-aprendizes, aprendizes e co-professores. O aluno faz parte de uma trupe de sujeitos, reunidos circunstancialmente e que têm mais ou menos as mesmas necessidades, os mesmos desejos no que concerne ao es- tudo da língua. Definimos o papel de co-aprendiz, como toda atividade que

diz respeito ao grupo (aprender com alguém ou ao mesmo tempo/espaço que alguém), como, por exemplo, as situações de jogo de papéis, simula- ções, diálogos curtos etc. Mas, no seu processo de aprendizagem, existem outros tipos de atividades que demandam uma posição diferente. O papel de aprendiz se caracteriza por toda atividade do sujeito face à sua aprendi- zagem, assim como as relações que ela tece com a língua, o professor e a situação de aprendizagem. Investido no seu papel de aprendiz, esta pessoa tem um discurso misto que faz simultaneamente aprender e ensinar. É o desdobramento no papel de co-professor. De toda evidência, os aprendizes apenas ocasionalmente exercem um dos papéis do professor (informar, ani- mar e avaliar). Cicurel (1985, p. 14) explica da seguinte maneira:

a disparidade habitual dos papéis do professor e dos alunos é acentuada em um curso de língua devido ao fato de que o pro- fessor se expressa numa língua que ele conhece, enquanto os aprendizes devem formular seus conteúdos de pensamento em uma língua parcialmente estrangeira.

É claro que os textos escritos para estes papéis não foram escritos an- tecipadamente. E os aprendizes os escreverão à medida que evoluírem no processo de aprendizagem e interação. Para tal, eles se basearão numa idealização do papel do “bom aprendiz”. Esta lhes é inculcada pelos pais, pela comunidade, pela instituição. Um senso comum compartilhado, mas tam- bém mantido e patrocinado pelo professor, que também tem suas próprias fantasias sobre o assunto, fundadas na sua própria idealização. Imediata- mente vislumbramos a sala de aula como um universo construído pelo ima- ginário (e não pelo real). O sistema não se interrompe, visto que a avaliação está presente para assegurar que o sistema se retroalimente: uma de suas funções é exatamente aproximar a imagem do aprendiz real àquela do apren- diz ideal. Compreendemos então que o aluno aprende, além de conteúdos e estratégias de aprendizagem, seu papel de aprendiz, de bom aprendiz.

Os papéis do professor são listados diversamente segundo os au- tores. Para Postic (1990), o professor tem três funções principais: enqua- drar, informar e despertar, enquanto que Cicurel (1985) considera o pro- fessor como informante, animador e juiz. Segundo Galisson (1990), o professor desempenha os papéis de ensinador, animador e educador. No cenário da sala de aula, podemos denominar os papéis do professor como de ator, diretor e crítico. Adicionam-se facetas, criam-se termos, as fun- ções evoluem com as práticas ou permanecem as mesmas e então é a observação que evolui.

A atitude do professor em relação ao aluno e ao grupo é uma vari- ável muito influente para sua ação. No início do ano letivo, o professor é inevitavelmente um líder imposto. Em seguida, pode se tornar autoritá- rio (tomando todas as decisões sem consultar previamente os alunos); democrata (ação discutida e definida com os alunos), ou adepto do laissez faire (cuja única função é de estar presente no seio do grupo sem ne- nhum desejo de ação sobre este grupo); pesquisador (cuja prática é fon- te e fruto de reflexão) (MIALARET, 1977).

Mas o professor também é o depositário das esperanças da socieda- de em relação à educação. Ele carrega um fardo: representar o ideal coleti- vo do saber, do desejo do outro. É ele que é considerado o responsável pelo processo e resultados da sua própria ação (ensino), mas também das ações dos outros (aprendizagem). E o professor incorpora este papel de respon- sável, como alguns atores que se internam em clínicas semanas a fio para interpretar um doente mental ou terminal; emagrecem ou engordam as- sustadoramente para ter o physique du rôle. Podemos entender esta “atua- ção” (no sentido psicanalítico) se lembrarmos dos resultados da pesquisa de Marcel Postic (1990) sobre as motivações para a escolha da profissão de professor. Ele afirma que o tipo de relação que o sujeito estabelece com a situação de ensino faz nascer nele a motivação para ensinar.

Um dos fatores motivacionais citados por ele são as relações anteri- ormente vivenciadas com o meio escolar. Como a realidade escolar é um

microcosmo do meio social, a atitude do professor para com o meio escolar depende de suas posições filosóficas, explícitas ou implícitas. Ele aceitará ou recusará a realidade escolar de acordo com tais posições. Porém, esco- lher uma profissão significa tomar lugar numa estrutura social e em um sistema de relações interpessoais, com o objetivo de construir uma ima- gem de si. E a imagem de si, na situação de ensino, é construída ao redor de valores, privilegiando a vida afetiva pessoal e o contato com os jovens (ao formar os outros, nos formamos). Assim, a escolha da profissão está rela- cionada às representações e ao ideal dos professores. Aquele que escolhe ser professor construiu uma representação do bom professor, um modelo de ensino ideal para o qual gostaria de tender. Professores são pessoas que nunca se resignaram a abandonar a escola. Resumindo, o professor é aquele que se adaptou bem à escola, que corre sempre o risco, na sua busca de identidade pessoal (e eterna reconstrução identitária) pela situação educativa, visto que ela representa um meio fantasmático de prolongar sua própria infância, de esquecer que o professor aprende ao ensinar. A frustração, comum aos professores, é inerente ao fato de que poucos pro- fessores conseguem suportar seus limites, isto é, que a maioria dos profes- sores tem dificuldades para se dar conta e compreender que nem todo mundo se identifica com o meio escolar, e conseqüentemente, não se adapta tão bem quanto eles a este contexto de ficção que é a sala de aula.

Drama

Em grego, a palavra drama significa ação, uma ação que imita com- portamentos humanos. Ao analisar a anatomia do drama, Essling (1978, p.16) enfatizou que é o elemento que reside fora e além das palavras, a ação, que faz o drama e torna pleno o conceito do autor. Conseqüente- mente, a vida (e a narrativa) é propulsada pelo conflito, pelo enfrentamento direto dos agentes da ação. E vários conflitos, cognitivos, afetivos, sociais, culturais, psicológicos, institucionais, estão se desenrolando na sala de aula. Talvez um dos mais importantes seja a incapacidade da escola (e de seus

agentes) de reconhecer, compreender e considerar a afetividade. O siste- ma escolar não consegue praticar o ideal humanista que advoga e ao qual às vezes ele adere. Na realidade, a escola raramente considera os valores, sentimentos, percepções, atitudes e toda outra categoria relacio- nada à subjetividade humana.

Este apagamento da subjetividade funda um drama na medida em que para aprender (e este é o objetivo dos atores em questão) é ne- cessário que se estabeleça uma transferência, de origem inconsciente, em direção a um objeto (língua, cultura estrangeira, por exemplo). A transferência testemunha que a organização subjetiva do sujeito é co- mandada por um objeto. E é também a transferência que permite a identificação, definida por Laplanche e Pontalis (1967, p. 295) como “o processo psicológico através do qual o sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmen- te, sobre o modelo deste”. Por sua vez, a identificação é a operação atra- vés da qual o sujeito humano se constitui. Para Lacan, a identificação é a transformação produzida em um sujeito quando ele assume uma ima- gem. O processo de identificação torna-se, assim, um meio de conheci- mento do outro. Ao entrar em contato com a língua estrangeira, e, si- multaneamente, adquirir conhecimentos socioculturais sobre a comuni- dade que a utiliza, o aprendiz é, de certo modo, obrigado a se renovar tanto lingüística quanto culturalmente. Da mesma forma que todo in- divíduo tem a escolha de se submeter à sua cultura de origem, a valores compartilhados pelos membros da comunidade da qual é membro ou então de participar em função de modelos pessoais de comportamento, todo aprendiz também tem uma escolha semelhante em relação à lín- gua e à cultura estrangeiras. A possibilidade de fazer tais escolhas de- monstra a inexistência de determinismo lingüístico e cultural. Concebe- mos que para gerenciar as dificuldades que aquela necessária renovação exige, os homens (e igualmente os aprendizes) tendem a transformar aquilo que é estrangeiro em algo de conhecido, de comum; a transformar

“aquilo que não pertence” em algo que possuem e dominam. Estamos diante de uma tentativa de relativizar a ansiedade condicionada pelo medo do desconhecido. Prender (tomar), aprender, apreender.

Mesmo se estas reflexões são válidas para a aprendizagem em geral, assim como para toda situação onde o ser humano está frente a um ele- mento novo e/ou diferente, nos parece que existe aí um elemento específico da aprendizagem de línguas. Se o processo de identificação tem o efeito colateral de eventualmente remediar o esfacelamento da experiência (que o sujeito tem de seu corpo e do que o circunda), não podemos esquecer que ao mesmo tempo, através deste mesmo processo, o indivíduo se aliena a um personagem com o qual não coincide completamente. Ora, na apren- dizagem de línguas, esta identificação com o nativo, a língua ou o locutor bilíngüe, é considerada como uma condição de sucesso (ou ao menos uma atitude favorável). Paradoxalmente, ela é, por definição, irrealizável: se o sujeito consegue uma identificação, ele se encontrará irremediavelmente dividido entre seu desejo e seu ideal, uma vez que a separação entre as duas línguas e as duas culturas exigiria da parte de um aprendiz uma atenção constante de que poucas pessoas são capazes a longo tempo.

Toda pessoa, então, que se aventura na aprendizagem de uma lín- gua enfrenta esta demanda de mudança de atitudes, de valores na sua maneira de existir e de expressar. A aprendizagem de uma língua es- trangeira implica a transformação da pessoa pelo contato entre suas lín- guas e culturas. Isto significa considerar não apenas o aspecto comuni- cativo da atividade lingüística, mas também sua função de representa- ção do mundo (simbolização). Esta modificação na maneira de se repre- sentar e de representar o mundo se aparenta à construção de um novo eu. E vemos aí o drama reinstalado: o conflito para construir um novo eu em um espaço, a escola, que insistentemente impulsiona na direção de uma evacuação da subjetividade! Então, o que se faz na realidade em aula é um coup de théâtre.