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Literatura e filme: censura como máscara cultural A estreita relação entre literatura e filme existe desde a origem do

cinema. Romances e peças forneceram as fontes inaugurais de material para os primeiros filmes, embora as histórias tivessem que ser comprimi- das em um rolo, uma vez que havia uma proibição para filmes de maior tamanho. Esta regra gerou diversos tipos de aberrações, tais como ver- sões em apenas um rolo de três óperas de Wagner, cinco romances de Charles Dickens, quinze peças de Shakespeare etc., tudo condensado em apenas um rolo. Obviamente, assuntos mais populares eram desta- cados na maioria das produções. No início do século XX, as companhias de cinema se consideravam produtoras de entretenimento barato para um público de massa geralmente composto de pessoas não cultas. A com- panhia de patentes do cinema, The Motion Pictures Patents Company, no domínio da indústria há cinco anos, havia sistematizado esta noção de produção de filmes. De 1911 em diante, o aparecimento de filmes de longa metragem (na época, isso significava qualquer filme de quatro rolos ou mais) foi a ligação entre o cinema e a classe média.

Os filmes de longa metragem não só tornaram o cinema respeitá- vel para a classe média, mas também permitiram o advento de um for- mato análogo àquele de um verdadeiro teatro que era apropriado às adaptações de romances e peças da classe média. O aparecimento de longa-metragens criou a plausibilidade de narrações mais complexas e os cineastas possuíam uma forma comparável à arte verdadeira, em seus esforços por efeitos artísticos sérios. A qualidade e a quantidade das pro- duções também foram afetadas com as exigências de melhores padrões de verissimilitude (COOK, 1990, p. 40-41).

A mudança de um nível para outro mostra-nos alguns aspectos contraditórios. Em seu início, “altas” formas de cultura eram massificadas em filmes de um rolo para um público de trabalhadores. Esta já era uma tentativa de transformar a literatura em um produto de massa. Através da rejeição, pela classe média, deste tipo de massificação, os cineastas

foram forçados a introduzir longa-metragens no mercado para mostrar uma forma de adaptação literária considerada “superior” porque desta vez eram mostradas em um “teatro para filmes” ou cine-teatro. Mesmo assim, ainda eram formas massificadas de arte, independentemente da arquitetura dos cine-teatros e da qualidade das adaptações. Mas esse público achava que estava tendo a experiência da coisa “real”. Este é o momento da emergência da cultura de massa e do kitsch em sua forma atual com a qual estamos familiarizados, a promessa do falso como o real, a promessa do conforto e da felicidade do consumo daquilo que já foi consumido, como acentuou Moles (1986, p. 10-30).

A iconografia de Hollywood reiteirou seus estereótipos ao instau- rar uma realidade que acabou sendo aceita como a mais conhecida e a mais real, mais real do que a realidade opaca das pessoas comuns, con- forme observou José Amícola. Hollywood condicionou a percepção oci- dental do mundo através do uso de montagem e da criação de certos mecanismos alienantes nos quais o estilo de vida americano foi transfor- mado em uma mercadoria de consumo, em uma mistura de violência sexual e autocomplacência (AMÍCOLA, 1992, p. 76-77).

Desde o início do estrelato, dispositivos publicitários foram usados para criar uma mitologia que atingiu proporções mundiais. Esta mitologia foi divulgada junto com estereótipos de gênero dos papéis homem-mulher (a beleza estonteante das atrizes versus o tipo cowboy robusto dos atores). Como observou Amícola, esses estereótipos eram apoiados pela reiteração do kitsch a fim de afirmar os valores de uma ideologia que se adaptava a cenários internacionais ao punir os caras maus e premiar os bons mocinhos. A mulher, transformada em um objeto sexual, tornou-se a primeira vítima desta ideologia maniqueísta ao se esconder e se exibir ao mesmo tempo (AMÍCOLA, 1992, p. 76), desempenhando um papel duplo de tentadora e de santa, especialmente após a introdução do “Código de Decência” (Decency Code) sob a supervisão de setores religiosos da sociedade. Este código ditava o conteúdo dos filmes americanos de 1934 até meados dos anos 50.

Portanto, um ambiente kitsch limpo e purificado era criado, no qual sexo era reprimido a todo custo. “Cenas de paixão” eram proibidas a fim de preservar a santidade da instituição do casamento, da família e da casa, embora casais casados não podiam ser mostrados compartilhando a mesma cama. Sexo ilícito, adultério, estupro ou sedução só podiam ser sugeridos se fossem extremamente importantes para o enredo e se o pe- cador fosse severamente punido ao final (geralmente através de morte ou doença). Termos vulgares ou profanos também eram proibidos, assim como a prostituição, miscigenação, aberrações sexuais, vícios de drogas, nudez, danças ou costumes que sugerissem sexo, bebida em excesso, bei- jos audaciosos e luxuriantes, ridicularização ou crítica de qualquer aspec- to religioso, crueldade com animais ou com crianças, os detalhes de um crime, a mostra de armas ilegais etc. (COOK, 1990, p. 299).

A maneira hollywoodiana de mostrar sexo era totalmente disfarçada e escondida, camuflada, insinuada. Cenas de sexo eram geral- mente sugeridas com um beijo terno, apenas um leve toque de lábios, seguido por uma mudança gradual de cena (dissolve) para o dia posterior, quando a diva aparecia tomando o café da manhã, geralmente sozinha, em um quarto suntuoso e imaculado, onde qualquer traço de sexo fosse eliminado... Os espectadores deveriam, então, inferir o que havia aconte- cido entre uma cena e outra, de acordo com a imaginação de cada um.

Amícola discute o modo como Hollywood lidava com espaços coti- dianos para transmitir um conceito kitsch de conforto refletido na arqui- tetura ao introduzir no mundo aquilo que denominou de “ideologemas de um gênero diferente”. O quarto torna-se um território ambíguo onde o café da manhã era às vezes servido e o sexo era sublimado devido à ele- gância conferida à cama, sempre bem arrumada (AMÍCOLA, 1992, p. 77). Às vezes, o quarto consistia de duas camas separadas, como se os casais não devessem dormir juntos para não cairem na tentação de fazer sexo por prazer e não para a simples procriação, como preconizava a San- ta Igreja Católica. Isso, muitas vezes, levava os espectadores de outras

partes do mundo a imaginar que esse fosse um hábito norte-americano que, como muitos outros, também deveria ser seguido.

Se o cenário do quarto objetivava esterelizar o contato carnal, o outro território ocupado pelas mulheres, a cozinha, servia, em sua modernidade técnica, para promover aparelhos eletrodomésticos, pro- duzidos por indústrias norte-americanas, como refrigeradores e fogões elétricos. Estes “hollywoodemas”, como Amícola os denomina, também inspiraram condutas de hábito, como aquela que enfatizava a casa como um lugar aconchegante e sagrado, onde o marido sempre lia o jornal burguês e a esposa passava manteiga nas torradas para o seu amo e se- nhor (AMÍCOLA, 1992, p. 77).

Além disso, obras literárias recebiam vários cortes em seus enre- dos, e às vezes o conteúdo era bastante modificado, como veremos a seguir com o tema da homossexualidade tratada na obra de Tennessee Williams que se tornou totalmente ausente na versão fílmica, constitu- indo-se em uma história diferente.