• Nenhum resultado encontrado

A ação teatral tem dois aspectos fundamentais: a improvisação e a repetição. Vasconcelos (1987, p.105) define a improvisação como um recurso de interpretação que consiste na obtenção da ação dramática a partir da espontaneidade do ator. A improvisação é, igualmente, a base do psicodrama6 e um importante subsídio para a arte-educação, estan- do assim presente tanto na clínica quanto na escola.

Este recurso metodológico utilizado no teatro para a construção de cenas, nas quais os recursos técnicos dos atores aliam-se à sua espontanei- dade e criatividade, consiste em uma espécie de treinamento para o ator no que se refere ao que Stanislavski (1982) chama de “estado criativo permanente”. Segundo ele, em todas as cenas (mesmo aquelas onde exis- tem marcas firmes e precisas) o ator não pode nunca perder o vínculo com o “estado criativo”. Cada momento deve ser “criado” na frente do espectador pela primeira vez, mesmo que tenha sido exaustivamente ensaiado. As improvisações são utilizadas também para a criação de ce- nas e textos, que poderão ser fixadas posteriormente na montagem, per- dendo então seu caráter inicial. Alguns espetáculos e exercícios são base- ados exclusivamente em improvisações. Os atores recebem uma situação (contexto) e devem desenvolvê-la sob olhar do espectador ou do orientador (no caso dos exercícios). Enquanto exercício, são avaliados: a apresenta- ção do conflito (de que maneira os atores instalam para o espectador o conflito da cena), a exacerbação do conflito (quais os recursos utilizados para que o conflito fique ainda mais evidente e complicado) e a resolução do conflito (como o problema proposto se resolveu). “Boas” improvisa- ções são aquelas em que todas as etapas são preenchidas, ao mesmo tem- po, com lógica e criatividade, provocando surpresas no espectador sem desviar-se do foco original (o tema ou situação propostos).

Na aula de língua também existe improvisação. A dinâmica pró- pria da aula exige que o professor improvise e não permaneça rigida- mente atrelado a seu plano de aula (embora esta seja a tendência de

professores inexperientes que se apóiam no “texto” previsto e prescrito para aquele horário. É compreensível que atores e professores novatos raramente criem “cacos”). O aluno improvisa suas respostas, uma vez que ele sabe menos ainda do que o professor sobre o que vai acontecer, nem sobre as questões que lhe serão apresentadas.

O texto do teatro é ensaiado e, para os atores-interlocutores, pre- visível. Espera-se que ele não seja previsível para o público. Na aula de línguas, alguns tipos de repetição, ritualizadas, teatralizadas, estão pre- sentes (tanto no sentido de repetir – fazer novamente – quanto no sen- tido de praticar – ensaiar). Professor e aluno repetem um saber que lhes foi transmitido e repetem seu texto por uma razão simples e técnica: o desejo de ser compreendido. O professor também repete (ensaia) previ- amente seu plano, aquilo que vai dizer e fazer. O aluno repete aquilo que lhe é ordenado pelo professor: vocábulos, fonemas, sentenças, ações, exercícios.

As próprias atividades de simulação (jogo de papéis) propostas em aula são também ensaiadas, apresentadas e constituem um verdadeiro ensaio para situações reais que imaginamos que podem vir a acontecer. Mas todo aquele que estudou línguas em aula sabe que repetiu (praticou e ensaiou) situações que possivelmente nunca ou quase nunca acontece- rão. Ao ser entrevistado por J. Sette em recente edição da Braztesol Newsletter, Lewis (2000, p. 5) criticou a ordem prevista para o trabalho com novas estruturas ou funções lingüísticas, conhecida como PPP (presentation, practice, production / apresentação / prática / produção):

[...] uma pessoa não consegue melhorar seu nível lingüístico ao praticar a língua. Ela pode aumentar sua autoconfiança, e isto, claro, é desejável. Isso pode fazer com que ela se sinta melhor, e isso é bom. Ela pode se tornar mais adaptável socialmente, e isso também é bom. Mas isso não vai melhorar seu nível lingüístico porque o que é produzido já deve existir dentro.[...]

Recentemente um professor de inglês confidenciou abismado, após passar dois anos em Londres, que acreditava nunca ter dito algo como “have you got change for a pound?” (expressão aprendida no nível iniciante de inglês). Quantas pessoas se preparam, “aprendem-ensaiam”, textos como “how much? ou “where is the bus station?” a fim de viajar! Muitos entram no palco com o texto na ponta da língua, mas serão incapazes de interagir, porque não compreenderão as respostas, porque brincaram de teatro na aula, mas não consideraram que a comunicação é a própria prática cotidiana das relações sociais. Por estas razões, um aluno pode ensaiar o texto mil vezes... mas na vida real, mesmo que as situações ima- ginadas ocorram, ele sempre vai encontrar interlocutores que “não en- saiaram”, que não sabem o texto que ele conhece! Para comunicar bem, é preciso uma certa sensibilidade metacomunicativa: estar atento ao que comunicamos, ao que pensamos comunicar e ao que o outro recebe, sen- do necessário considerar a posição do outro na interação, porque toda significação é essencialmente contextualizada, ligada à intenção do lo- cutor e às condições da comunicação.

Como explica Slama-Cazacu (1981), todo fato de linguagem im- plica a tomada de contato recíproca, assim como relações (bilaterais e reversíveis) estabelecidas entre pelo menos duas pessoas, na qual uma expressa um conteúdo físico na intenção de comunicá-lo enquanto a outra adota uma atitude receptiva. Esta invenção primária fundamental (co- municar) pode ter motivações diversas segundo as necessidades indivi- duais e as dominantes sociais, servindo assim tanto à sobrevivência indi- vidual e coletiva quanto às extensas redes de troca social pelas quais se forma e se transforma a própria realidade.

Apesar da relativa situação “teatral”, a aula passa a ser o único lugar real onde a língua é falada, ou seja, uma nova mistura entre “reali- dade” e “ficção”. Mas, além da dimensão teatral da própria dinâmica da aula de língua, uma atividade dramática propriamente dita também está presente através do jogo de papéis (simulação, role play, jeu de rôles).

O jogo dramático é uma atividade interativa na qual o sujeito se engaja numa ficção e com outros desenvolve uma improvisação a partir de uma intenção original que precisa de um lugar e de personagens que devem interagir em dada situação.

A atividade dramática na sala de aula, criadora de uma rede de relações desabituais, foi analisada por Oberlé (1989, p.13) em relação à convenção sobre a qual ela se estabelece, o tipo de comunicação que ela implica, e enfim o tipo de desenvolvimento cognitivo desencadeado.

Como uma atividade regulada, o jogo se desenvolve dentro de uma convenção, ou seja, a regra é um elemento constitutivo do jogo (e toda lei, como já nos mostrou a psicanálise, faz um corte no real e no imaginário para a instauração do simbólico). Contudo, o risco da realidade invadir o jogo é constante, porque o “como si”, o aspecto fictício do jogo nunca está seguramente estabelecido. Este risco é favorecido pelos contatos corporais, pela utilização de objetos nos seus usos habituais, e pela retomada de uma vivência relacional real através de uma situação fictícia e de personagens (o que pode ser resultado de um projeto consciente ou traço inconsciente da impregnação do jogo pela vivência do grupo). É freqüente que o jogo seja uma retomada simbólica do que se passa na realidade.

O contexto da ação é definido e as interações que decorrem de- vem ser interpretadas em função de um contexto específico. Os partici- pantes do jogo devem ser capazes de trocar sinais veiculando a mensa- gem “isto é um jogo” (capacidade metacomunicativa que permite funci- onar na ordem da metáfora distinguindo o literal do metafórico). O jogo dramático então se desenvolve em um contexto paradoxal que permite a existência simultânea de níveis diferentes de mensagens. Como a ca- pacidade de suportar o paradoxo é o fundamento da criatividade huma- na, esta se inspira não no real, mas no possível, no que pode ser (CHEKHOV, 1986).

Embora o jogo dramático escolar não necessite de cenário, figuri- no, nem acessório no sentido tradicional, atuar implica a combinação de

uma ação e de um imaginário, da emoção, e da representação, de um engajamento pessoal, e de uma abertura aos outros. Atuar implica po- der diferenciar jogo, realidade, imaginário, e encontrar um espaço psí- quico para o jogo. A simbolização do jogo permite destacar elementos psíquicos mobilizados, boa parte dos quais são inconscientes. A relação unicamente metafórica que o ator estabelece com a realidade o preser- va: ele está implicado naquilo que experimenta, mas não sofre nenhuma conseqüência dos seus atos. Assim, o jogo se desenvolve a partir de uma aliança entre princípio de prazer e princípio de realidade.

Ao aprender a fabricar mensagens, os alunos têm a oportunidade de se apropriar de um instrumento (língua estrangeira) e de experimentar manipulá-la em situações possíveis. Logo, a atividade dramática permite a exploração das potencialidades criativas dos aprendizes, assim como a estimulação de suas capacidades de expressão e de produção lingüística.

Embora tenhamos associado o papel do professor avaliador com o do diretor e o do crítico, é interessante notar que este diretor dirige ape- nas um lado da história, apenas um dos atores, em um roteiro incomple- to, e “nunca” está presente na estréia... nem na temporada! Além disso, um crítico nunca analisa um ensaio... e sim uma performance... (enquan- to o ensaio da sala de aula toma o lugar da situação real).

A literatura como possibilidade didática: