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As verdades mais profundas relativas à natureza e ao homem nas escrituras sagradas de todos os povos e de todos os tempos, são geralmente apresentadas por meio de alegorias, mitos e símbolos. Esse

método de ensinamento é uma prática imemorial dos grandes instrutores da humanidade para que as verdades profundas que conferem poder possam permanecer circunscritas aos iniciados cujo caráter já tenha sido amplamente testado.[1] Esses grandes seres, cuja missão é legar aos buscadores da verdade os ensinamentos que os capacitem a alcançar a libertação do sofrimento, ou a ‘salvação’, ou ainda o ‘Reino dos Céus’, são forçados a velar seus ensinamentos para impedir que venham a cair em mãos indignas. Por outro lado, esses instrutores também são obrigados a exercer extrema cautela na escolha de seus discípulos devido a uma lei espiritual segundo a qual o instrutor que revela verdades ocultas a seus estudantes passa a assumir a responsabilidade cármica por todos os erros que esses possam

cometer, sejam eles de abuso ou de omissão, até que esses estudantes alcancem a meta da Perfeição e assumam a total responsabilidade por seus atos, tornando-se, por sua vez, Instrutores da humanidade. [2]

Não há dúvida de que a humanidade vem desenvolvendo o intelecto mais rapidamente do que a

consciência ética, e que existem muitos indivíduos que buscam ensinamentos esotéricos como forma de aumentar seu poder e usá-los para seus interesses pessoais. Por essa razão os grandes instrutores sempre velaram seus ensinamentos com linguagem simbólica e alegorias, devendo os sinceros aspirantes aprender a chave dessa simbologia para penetrar nos mistérios.

A grande maioria dos leitores da Bíblia e de outras escrituras sagradas insiste em interpretar esses textos literalmente, como se fossem relatos históricos insofismáveis. Os absurdos e as contradições encontrados nesses materiais, tomados ao pé da letra, não parecem arrefecer os ânimos dos crentes, que encaram essas contradições e impossibilidades como oportunidades para reiterar sua fé cega nos mistérios de Deus, como supostamente nos foram revelados nessas sagradas escrituras. No entanto, um grande número de estudiosos, mesmo nas hostes da ortodoxia,[3] estão acordando para a realidade óbvia da alegoria, para a beleza do mito e para a riqueza dos símbolos como métodos tradicionais de expressão de verdades eternas. Nas palavras de um desses estudiosos:

“Como pode aquilo que está inteiramente além de nossa consciência comum de tempo e espaço e do realismo grosseiro dos conceitos comuns deste mundo de matéria física, como podem estas

só pode ser simbólica, nunca literal? Mas o prejuízo está justamente nisto, que a alegoria seja

tomada pelos não-instruídos como história literal e o símbolo como realidade.”[4]

Desde o início de nossa era os autores gnósticos eram capazes de entender o verdadeiro significado velado do Antigo Testamento, a começar pelos relatos do Gênesis, com suas afirmações aparentemente absurdas. Uma séria estudiosa das questões bíblicas contrasta a atitude dos gnósticos com a dos

ortodoxos em relação ao entendimento das escrituras:

“Alguns cristãos gnósticos sugeriram que esses absurdos demonstram que a estória (do Gênesis) nunca teve a intenção de ser tomada literalmente, mas que deveria ser compreendida como uma alegoria espiritual -- não como história com uma moral mas como um mito com um significado. Esses gnósticos encaravam cada linha das escrituras como um enigma, um quebra cabeça indicando um significado mais profundo. Lido dessa forma, o texto tornava-se uma superfície brilhante de símbolos, convidando o aventureiro espiritual a explorar suas profundidades escondidas, para valer- se de sua própria experiência interior -- que os artistas chamam de imaginação criativa -- para

interpretar a estória.”[5]

Assim sendo, devemos nos preparar para abordar os relatos cosmológicos, tanto da Bíblia canônica como dos textos gnósticos como alegorias, mitos e símbolos de verdades mais profundas, que os autores nos convidam a explorar com a mente aberta e, se possível, iluminada pelo Cristo interior. Deve ser lembrado que os autores das escrituras escreveram a partir dos relatos que lhes foram confiados diretamente pelo Mestre ou por um dos discípulo ou, então, a partir de uma experiência interior. Essas experiências, por serem geralmente de cunho abstrato e simbólico, são relatadas na

forma de mitos, facilitando o entendimento, por meio da analogia, de algo que não poderia ser expresso de outra forma. Apesar do caráter poético da maioria dos mitos, isso não deve nos levar a crer que o mito é um produto da imaginação fértil de seu autor. O verdadeiro mito expressa necessariamente uma experiência interior, não sendo, portanto, uma ficção mas sim algo mais real do que os fatos do mundo exterior.

Muitos, no entanto, não percebem que a insistência desses autores na apresentação dos mitos cosmogônicos, longe de ser um mero entretenimento para seus leitores ou mesmo uma instrução, constitui, na verdade, convite para que cada um de nós experimente, por sua vez, a viagem da alma que levou o autor original àquela experiência transcendental, com suas conseqüências usuais de transformação interior. Jung utilizou-se amplamente de mitos e símbolos pessoais, principalmente os revelados em sonhos, para o conhecimento da realidade interior do homem. Um de seus discípulos, Stephan A. Hoeller, deixou claro o papel do ritual como instrumento para transformar a riqueza do mito, expressando uma experiência interior, num processo de interiorização que eventualmente poderia levar o praticante a uma experiência mística semelhante à original, fechando, portanto, o ciclo.

“A experiência transformada em mito, e o mito voltado para dentro como autoconhecimento

psicológico: eis o grande movimento da Gnosis no plano da realidade psíquica. Contudo há, ainda, um terceiro componente que permite que o mito desça do nível puramente psicológico para o nível

da manifestação material, onde ele pode imprimir sua marca, não apenas nas funções de intuição, pensamento e sentimento, mas também na função de sensação. Esse terceiro elemento é o ritual válido, que possui verdadeiro significado e que se transforma em dramatização ou ‘atuação’ do mito para os sentidos. O interesse considerável dos gnósticos pelo ritual sacramental atesta o importante

papel da ritualização do mito no supracitado movimento da Gnosis.”[6]

Examinaremos no capítulo seguinte a principal apresentação cosmogônica existente no Novo

Testamento, a parábola do Filho Pródigo. Incluímos, também, em anexo, duas apresentações gnósticas, que podem contribuir para o nosso entendimento do processo de descida do espírito à matéria e seu eventual retorno ao mundo de luz. Estes mitos são o Hino da Pérola, provavelmente de autoria de Bardesanes, eminente autor gnóstico do século II, e Pistis Sophia, de autor desconhecido, do início de nossa era, que relata ensinamentos de caráter esotérico de Jesus aos discípulos, após sua ressurreição.

[1] A questão da preservação das verdades sagradas é abordada de forma contundente por Jesus: “Não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas aos porcos, para que não as pisem e,

voltando-se contra vós, vos estraçalhem” (Mt 7:6). Ainda que chocante aos ouvidos de nossa cultura, as palavras de Jesus devem servir como um alerta atemporal para que usemos sempre o discernimento ao divulgarmos o que é santo. A maior parte das pessoas não está interessada nas verdades sagradas e, não estando moralmente preparadas, tenderão a usar esse conhecimento de forma egoísta. Assim, os ensinamentos ocultos que conferem poder, não devem ser ministrados a pessoas despreparadas para que elas não causem sofrimento adicional a si e aos outros.

[2] Existe um paralelo dessa lei espiritual com a tradição cristã de que os padrinhos de uma criança se responsabilizam pelos pecados de seu afilhado até que ele se transforme num ser responsável, com discernimento para distinguir entre o bem e o mal. Vide, H.P. Blavatsky, Ocultismo Prático (S.P.: Pensamento), pg. 11.

[3] Um exemplo disso pode ser encontrado na Introdução ao “Apocalipse” na Bíblia de Jerusalém. Temos ali a seguinte referência sobre as visões narradas no Apocalipse: “Tais visões não têm valor por si

mesmas, mas pelo simbolismo que encerram, pois num apocalipse tudo ou quase tudo tem valor simbólico; os números, as coisas, as partes do corpo e até as personagens que entram em cena. Para entendê-lo, devemos, por isso, apreender a sua técnica e retraduzir em idéias os símbolos que ele propõe, sob pena de falsificar o sentido de sua mensagem." Esperemos que, em breve, o Vaticano permita a extensão dessas idéias para a interpretação do resto da Bíblia.

[4] The Gnosis or Ancient Wisdom in the Christian Scriptures, op.cit., pg. 26.

[5] Elaine Pagels, Adam, Eve and the Serpent (New York, Vintage Books, 1989), pg. 63-64.

[6] Stephan A. Hoeller, Jung e os Evangelhos Perdidos (São Paulo, Cultrix/Pensamento, 1989), pg. 110 Voltar

OS ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ AS CHAVES QUE ABREM O REINO DOS CÉUS NA TERRA

IV. O PROCESSO DE RETORNO À CASA DO PAI Capítulo 7