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A renúncia é parte integral do processo de kenosis dos antigos místicos, o esvaziamento da personalidade que abre espaço para que a mente possa ser preenchida com o Espírito, dando

nascimento, então, ao Cristo interior. A essência da renúncia é um estado de espírito que coloca as coisas do mundo em segundo plano e dá prioridade aos interesses da alma. Por isso Jesus disse:

“Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde nem a traça nem o caruncho corroem e onde os ladrões não arrombam e roubam; pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração” (Mt 6:19-21).

O objetivo do renunciante é morrer para o mundo, abdicando as práticas mundanas da busca do prazer e do poder. Isso está muito bem sintetizado na brilhante imagem de Paulo: “Vós vos desvestistes do homem velho com as suas práticas e vos revestistes do novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador” (Cl 3:9-10).

O símbolo cristão da morte é a cruz. No símbolo do madeiro estão representados dois pólos, o da dor e o da alegria, pois, a dor da morte, como renúncia ao mundo, é o pré-requisito para a ressurreição, ou alegria do renascimento. Por isso foi dito que “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer,

permanecerá só; mas se morrer produzirá muito fruto” (Jo 12:24). O mesmo ensinamento é

apresentado noutra imagem diretamente relacionada com a vida e a morte: “Quem ama sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guarda-la-á para a vida eterna” (Jo 12:25). O apego egoísta é morte, e o altruísmo é vida para o discípulo.

Jesus deixa claro que a renúncia a este mundo é fundamental para se atingir o outro mundo, o Reino de Deus. Nas parábolas do tesouro escondido e da pérola preciosa, o homem deve vender tudo o que tem, ou seja, renunciar a tudo, para adquirir a bem-aventurança celestial, representada pelo tesouro e pela pérola:

“O Reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido no campo; um homem o acha e torna a esconder e, na sua alegria, vai, vende tudo o que possui e compra aquele campo.

achar uma pérola de grande valor, vai, vende tudo o que possui e a compra” (Mt 13:44-46). Padres da Igreja Primitiva, como Cassian e Evagrius de Pontus, falam de três tipos de renúncia e

insinuam uma quarta, que deve ocorrer quando a pessoa está próxima de atingir a Theosis, ou União com Deus. [1]

A primeira renúncia é aos bens materiais e às coisas exteriores. Esse é um grande passo no Caminho, sendo recomendado em quase todas as tradições espirituais. Os padres e monges lidam com essa

renúncia por meio do voto de pobreza. As pessoas com obrigações de família não precisam literalmente vender ou doar seus bens para seguir o Mestre, o importante é que haja um real desapego das coisas materiais. Por isso Jesus disse: “Qualquer de vós, que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo” (Lc 14:33). Essa renúncia está relacionada com o tempo presente.

A segunda renúncia é o abandono das paixões, vícios e fraquezas. É a renúncia ao desejo das sensações e emoções prazerosas que, com o passar dos anos, condicionam nossa mente à busca da gratificação dos sentidos. Para os monges, o voto de castidade é tido como fundamental nesse particular. Devemos renunciar, também, as nossas rejeições ou aversões, pois elas são sentimentos negativos que

perturbam a alma. Essa modalidade de renúncia está relacionada ao passado, pois a busca do prazer é movida pelo apego às lembranças passadas.

A terceira renúncia é ainda mais difícil, pois é o último passo na renúncia ao mundo de que fala Paulo. Implica em abandonar toda expectativa de prazer, proteção e conforto das coisas do mundo visível, para que o renunciante possa ser gratificado e preenchido com as coisas do mundo invisível. Requer total fé na providência divina, como indicado na parábola dos lírios do campo (Mt 6:30-34). Essa renúncia está relacionada ao futuro.

Poderíamos perguntar: tendo renunciado ao presente, ao passado e ao futuro, ao que mais o homem poderia renunciar? Falta ainda aquilo que ele mais preza e que considera como parte inalienável de seu ser, o sentimento de ser um eu separado. Quando ocorre essa renúncia final, normalmente associada à experiência mística conhecida como a ‘noite escura da alma’, segundo os escritos de João da Cruz,[2] o homem está pronto para a união com Deus. Quando ocorre, então, a tão ansiada união, o místico

verifica que sacrificou seu pequenino eu para alcançar a consciência de seu verdadeiro Eu Divino. A extensão e as implicações dessa renúncia final são tão profundas que somente alguém que passou por ela pode transmitir alguma idéia dessa experiência. Nas palavras de Meister Eckhart, um dos maiores místicos da tradição cristã:

“A renúncia em grau mais elevado ocorre quando, por amor a Deus, o homem se despede de deus. São Paulo separou-se de deus, por amor a Deus e deixou tudo o que poderia ter recebido de deus, assim como tudo o que poderia dar -- juntamente com qualquer idéia sobre deus, e Deus

permaneceu nele como Deus em sua própria natureza -- não como é concebido por alguém ou ‘representado’ -- nem tampouco como algo a ser ainda atingido, mas antes como ‘Seidade’ como Deus é realmente. Então, o homem e Deus se tornam um todo que é pura unidade. Assim, o homem se transforma na pessoa real para quem não pode haver nenhum sofrimento, como de

modo algum o pode haver na essência divina.”[3]

Para o devoto que ainda não alcançou esse estado supremo de união com Deus, a renúncia é um estado de consciência caracterizado pelo desapego, que só ocorre quando termina o desejo pelas coisas do mundo. O desapego consiste em redirecionar o desejo para as coisas do Alto e evitar a prisão da busca do prazer e do poder.[4] É esse estado de desapego que liberta a alma, mesmo que permaneça a posse do objeto. Quando Jesus recomendou ao jovem rico vender todos seus bens para segui-lo, certamente sabia que o apego era a fraqueza que ainda amarrava aquela alma ao mundo, como fica confirmado pela reação do jovem: “Uma coisa ainda te falta. Vende tudo o que tens, distribui aos pobres e terás um

tesouro nos céus; depois vem e segue-me. Ele, porém, ouvindo isso, ficou cheio de tristeza, pois era muito rico” (Lc 18:22-23).

O comentário de Jesus a respeito da atitude do homem rico tem levado muitas pessoas à conclusão apressada de que a pobreza é indispensável ao discipulado: “Vendo-o assim, Jesus disse: Como é difícil aos que têm riquezas entrar no Reino de Deus! Com efeito, é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Lc 18:24-25).

É importante lembrar que Jesus pregava por meio de parábolas para “os muitos.” Esses

identificam-se com a sua personalidade no mundo e com as suas particularidades, como por exemplo, ser rico. O discípulo avançado sabe que a personalidade é um mero veículo da alma, considerando todas as características e atributos da personalidade como instrumentos passageiros para sua missão no

mundo. Por isso não é necessário ser pobre no sentido material para entrar no Reino dos Céus, até por que os pobres não são necessariamente menos desapegados do que os ricos. Ao que parece, o

importante é termos consciência de que todas as coisas que consideramos como nossas, na verdade, pertencem a Deus, tendo sido colocadas à nossa disposição pela generosidade do Pai.[5]

O dinheiro e os bens materiais são energia em forma concreta. A energia financeira, assim como a energia do poder podem ser usadas tanto de forma egoísta como altruísta. Como a maior parte dos homens do mundo são fracos e apegados às coisas materiais, Jesus, reiterando a sabedoria milenar, disse que é difícil o rico entrar no Reino dos Céus. É por isso, também, que o desenvolvimento do poder, seja ele secular ou oculto, é tido como extremamente perigoso para quem procura trilhar o caminho espiritual. Nas etapas iniciais do caminho, enquanto o devoto ainda não desenvolveu suficientemente seu caráter, o melhor será evitar esses tipos de tentação. Porém, chegará o dia em que o devoto, agora um discípulo avançado, terá a missão de atuar no mundo como um canal da Providência Divina,

devendo administrar de forma altruísta e sábia tanto a riqueza como o poder.

Nesse particular, vale lembrar que alguns dos discípulos de Jesus eram homens de posses, como seu irmão José de Arimatéia, Mateus, Nicodemos (também conhecido como Bartolomeu) e os irmãos: Lázaro (outro nome para João, o discípulo que Jesus amava), Tiago, Marta e Maria Madalena.

Assim, não são as coisas do mundo material, per se, que prejudicam a alma, mas sim o desejo e o apego que condicionam o indivíduo a buscá-las para seu benefício próprio. Vencido o desejo e alcançado o estado de desapego, o indivíduo passa a considerar tudo como passageiro, inclusive seu próprio corpo,

colocado a sua disposição para servir aos objetivos maiores da vida. Esse é o estado último da renúncia, o estado de desapego expresso na passagem: “Quem ama a sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna” (Jo 12:25). Com isso, Jesus queria dizer que, o homem que está centrado na personalidade, apegando-se a ela, está fadado a perdê-la com a morte do corpo. Porém, o homem que está centrado em sua alma, desdenhando a vida mundana, continuará consciente de estar vivo mesmo após a morte do corpo físico.

A renúncia aos prazeres normais da vida diária de interação com as coisas e as pessoas do mundo não expressa, contudo, a verdadeira espiritualidade. Na maioria dos casos é simplesmente uma fuga, um pequeno sacrifício que essas pessoas fazem para evitar o que mais temem, que é encarar e lidar com seus aspectos sombrios. A culpa por esses últimos é incessantemente expiada por autoprivações que supostamente se constituem portas para o céu. Nenhuma renúncia, por mais penosa que seja,

extinguirá a culpa sentida por quem evita a verdadeira purificação da alma.[6]

Algumas práticas religiosas tradicionais podem ser úteis na batalha contra o apego. Num sentido prático, retiros e peregrinações ajudam a quebrar, ainda que temporariamente, nossas rotinas. Quando isso ocorre, temos a possibilidade de conscientizar-nos de que as rotinas interrompidas são apenas

condicionamentos, apegos que não fazem parte da essência do nosso ser. E com isso podemos entender que nossos apegos rotineiros não são necessários para a nossa felicidade, ao contrário, são um óbice à nossa elevação espiritual. Por isso, os retiros e as peregrinações são especialmente importantes na promoção do desapego porque oferecem a oportunidade de afastar-nos de toda a parafernália que nos envolve na vida diária, como a mídia e as diversões. O principal propósito dessas coisas parece ser de distrair-nos, mantendo-nos ocupados com as ilusões do mundo exterior e alheios à realidade interior. Nos retiros, a realidade interior tem uma chance de ser resgatada, facilitando nossa reorientação para o real, ao deixarmos para trás as rotinas ilusórias que nos aprisionam à vida mundana.

Para o buscador da Verdade, a meta da peregrinação não é Roma, Jerusalém nem Meca, mas o santuário interior escondido no coração, objeto também dos retiros. Nas peregrinações e retiros, vivendo uma vida simples e frugal, livre das distrações do mundo e com o coração sintonizado com o alto (“pois onde está o teu tesouro aí estará também o teu coração” - Mt 6:21), teremos oportunidade de despojar-nos dos apegos e condicionamentos e voltarmos a atenção inteiramente para Deus. Para o homem moderno, assediado por mil demandas familiares, profissionais e de entretenimentos, o maior sacrifício ou renúncia nessas ocasiões é o tempo dedicado ao retiro ou peregrinação.[7]

Jesus legou esse ensinamento aos buscadores de todos os tempos, de forma velada, na passagem sobre o óbolo da viuva (Lc 21:1-4). Ao ver uma viuva pobre oferecer duas moedinhas para o Tesouro do

Templo, Jesus observou a seus discípulos que ela havia contribuído muito mais do que os outros,

inclusive os ricos que ofertavam grandes quantias, porque estes davam do que lhes sobrava, enquanto ela havia oferecido tudo o que possuía para viver. A viuva representa o verdadeiro devoto e as duas moedinhas a totalidade da natureza humana, ou seja, o corpo e a alma. Aquele que realmente ama a Deus sente que deve ofertar ao Pai celestial todo o seu tesouro – não as coisas terrenas que são

supérfluas, mas sim o que temos de mais precioso nessa vida, o nosso corpo e nossa alma.[8] Essa é a renúncia que abre as portas do Reino de Deus.

Enquanto o homem está orientado para as coisas do mundo, toda renúncia é tida como penosa, representando um sacrifício. Etimologicamente, a palavra ‘sacrifício’ vem do latim e significa tornar sagrado, oferecer algo à divindade. Assim, podemos tornar nossa vida sagrada, sacrificando todas as nossas ações. Como as nossas intenções são mais importantes ainda que nossos atos, podemos tornar sagrada a nossa vida diária, sem efetuar grandes mudanças em nossas rotinas, simplesmente

oferecendo ou dedicando cada ação à Deus.[9] Devemos estar sempre atentos às nossas intenções porque Deus está no âmago de nosso ser e “julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas” (Hb 4:12-13).

O sacrifício que contribui para o crescimento da alma é aquele que envolve a escolha deliberada entre um bem menor e um bem maior, sendo o menor sacrificado pelo maior. Assim, sacrificamos o prazer de vários alimentos e iguarias que engordam pelo bem maior da silhueta e da saúde; o atleta sacrifica o descanso preguiçoso pelo cansaço estimulante dos exercícios que o manterão em forma; o estudante sacrifica inúmeras horas de lazer para estudar com afinco para poder vencer na vida. Todos esses

exemplos indicam que o sacrifício é, em última análise, uma transmutação da força. O prazer do paladar é transmutado em prazer da estética e da saúde, o prazer do descanso em prazer do condicionamento físico, o prazer do lazer em satisfação pelo crescimento profissional. Essa transmutação era o segredo dos alquimistas, que buscavam transmutar o chumbo da personalidade em ouro da natureza espiritual. Nesse sentido vale lembrar que a questão dos méritos relativos da ação e da não-ação foi examinada extensivamente na obra Bhagavad Gita: “A renúncia às ações e o desempenho desinteressado das ações de acordo com a Yoga, ambos conduzem à suprema bem-aventurança; mas, dos dois, melhor é o

desempenho desinteressado que a renúncia à ação.”[10]

O verdadeiro devoto deveria meditar no silêncio de seu coração sobre as implicações das palavras de Jesus sobre a renúncia:

“Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida? Ou que poderá o homem dar em troca de sua vida?” (Mt 16:24-26).

[1] The Philokakia, op.cit., Vol. I, pg. 29-93. [2] João da Cruz, Obras Completas, op. cit.

[3] R.B. Blakney, Meister Eckhart, a Modern Translation. Sermão ‘Bem-aventurados os pobres’ (N.Y.: 1941), pg. 231, citado por Thomas Merton em Zen e as Aves de Rapina (S.P.: Cultrix), pg. 39.

[4] “O motivo dos teus descontentamentos e freqüentes atribulações é que não morreste ainda,

perfeitamente, para ti mesmo, nem te desapegaste das coisas terrenas.” Imitação de Cristo, op.cit., pg. 112

[5] Renúncia, equilíbrio e discernimento são interdependentes: “O corpo deve ser alimentado, vestido e abrigado. A menos que dotado de poderes sobrenaturais, o discípulo deve antes de tudo garantir essas necessidades para a continuação da vida, mesmo se reduzidas ao mais simples mínimo. A lei oculta tem sido sempre que a renúncia, nascida da compreensão da realidade espiritual, deve achar expressão em todos os hábitos e nos aspectos visíveis da vida diária do discípulo. Então, as posses pessoais, as roupas e as finanças serão mantidas num mínimo sensato, sendo o discernimento empregado sempre em

obediência a essa regra.” Geoffrey Hodson, A vida do Cristo do Nascimento a Ascensão, op.cit., pg. 184. [6] O Caminho da Auto-Transformação, op.cit., pg. 31.

[7] “A peregrinação pode ser considerada como um misticismo extrovertido, assim como o misticismo é uma peregrinação introvertida. O peregrino atravessa fisicamente um caminho místico; o místico parte numa peregrinação interior.” Victor e Edith Turner, Image and Pilgrimage in Christian Culture (N.Y.: Columbia University Press, 1978), pg. 33-34.

[8] Vide, Thomas Keating, Crisis of Faith, Crisis of Love (N.Y.: Continuum, 1998), pg. 77-78. [9] Vide, Annie Besant, O Cristianismo Esotérico (S.P.: Pensamento), pg. 129-30.

[10] O Cântico do Senhor (Bhagavad Gita), tradução e comentários de Murillo Nunes de Azevedo, (S.P.: Cultrix, 1981), pg. 65.

OS ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ AS CHAVES QUE ABREM O REINO DOS CÉUS NA TERRA

VI. AS CHAVES DO REINO DOS CÉUS Capítulo 19

DISCERNIMENTO

O desenvolvimento do discernimento é considerado como fundamental por todas as tradições. Na tradição cristã, como mantida nos mosteiros orientais, considera-se de suma importância o

desenvolvimento do discernimento, para que o praticante possa distinguir entre as coisas certas e erradas ou, em termos mais esotéricos, as coisas do mundo real, que são eternas e muitas vezes invisíveis, das coisas deste mundo, que são passageiras e ilusórias. Como dizia Paulo: “Não olhamos para as coisas que se vêem, mas para as que não se vêem, pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” (2 Co 4:18). Jesus, usando linguagem parabólica, fustigou seus ouvintes pela falta de discernimento nas coisas importantes da vida interior, em contraste com a percepção acertada que tinham dos fatos externos: “Hipócritas, sabeis discernir o aspecto da terra e do céu; e por que não discernis o tempo presente?” (Lc 12:56).

É dito em Aos Pés do Mestre[1] que o discernimento é a primeira qualidade que deve ser desenvolvida no Caminho, pois será necessária a cada passo até a última etapa da iluminação. Ainda que na teoria pareça fácil efetuar a escolha entre o certo e o errado, na prática ela não é tão fácil, porque a mente do homem do mundo está condicionada por toda uma vida, ou melhor, muitas vidas, voltadas para a

gratificação dos sentidos e a busca do prazer, poder e posição social. Como a escolha é efetuada pela mente, os conteúdos mentais, principalmente as imagens e condicionamentos do inconsciente, passam a colorir a mente como se fossem lentes através das quais o mundo é percebido pela pessoa. Portanto, o discernimento tem que se tornar um processo consciente comandado pela razão, para que as escolhas não sejam automáticas, comandadas pela memória do passado, que refletem os velhos

condicionamentos, geralmente de natureza material.[2]

A vontade própria do corpo físico, que prefere o descanso ao trabalho, a vontade do corpo astral, que prefere as emoções fortes das paixões em vez das vibrações mais sutis do coração, a vontade do corpo mental concreto, que medra no orgulho e no egoísmo, são as vozes da natureza inferior que devem ser dominadas pela vontade da natureza superior que discerne entre o certo e o errado e escolhe sempre o que ajuda na evolução da alma. Por isso foi dito: “Discerni tudo e ficai com o que é bom” (1 Ts 5:21). A escolha entre o real e o ilusório, ainda que inicialmente difícil, é somente a primeira etapa do exercício do discernimento. Tão logo haja o despertar espiritual, esses dois pólos tornam-se cada vez mais claros para o aspirante. A nova meta do discernimento passa a ser, então, o estabelecimento de prioridades: escolher dentre duas coisas boas a que for mais importante. Vale mencionar a passagem bíblica em que

Marta, ocupada com os afazeres da casa, reclama com Jesus que sua irmã Maria Madalena, em vez de ajudá-la, ficava aos pés do Mestre ouvindo atentamente suas palavras. Jesus, então, disse: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc 10:41-42). Essa questão é abordada em Aos Pés do Mestre com a linguagem singela e direta que lhe é peculiar: “Precisas distinguir não somente o útil do inútil, mas ainda o mais útil do menos útil. Alimentar os