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Como indicamos anteriormente, os diferentes mitos da Criação, ou apresentações cosmogônicas,

oferecem profundos ensinamentos sobre a origem do universo, a natureza do homem, sua origem e seu destino. A parábola do filho pródigo deixa clara a natureza divina do ser humano e lembra que, após nossa longa peregrinação pela terra distante, [1] deveremos voltar à Casa do Pai. A viagem de regresso começa tão logo tenhamos adquirido a consciência de que estávamos nos nutrindo com a comida

lançada aos porcos (as paixões e desejos), enquanto na Casa do Pai há pão para todos (sustento espiritual) em abundância. Quando estivermos a caminho do Lar, o Pai nos verá à distância e virá correndo para receber-nos com grande afeto (proverá meios para acelerarmos o nosso progresso), perdoando todas nossas falhas e comemorando o evento com uma grande festa. É dito que, quando um Mestre finalmente recebe a Iniciação suprema, toda a natureza comemora.[2]

O Hino da Pérola, ou do Manto de Glória, apresentado no Anexo 2, retoma o tema, esclarecendo

diferentes aspectos da grande Jornada da alma. Nossa origem divina é confirmada. É mencionado que os tesouros que obtemos ao término de nossa valorosa aventura já eram nossos desde o princípio. Isso significa que somos herdeiros de direito à nossa condição divina. Esse tema está também elaborado no Evangelho de Tomé em linguagem velada:

“Os discípulos disseram a Jesus: ‘Diz-nos como será o nosso fim’. Jesus disse: ‘Então, se estais buscando o fim, isso significa que haveis descoberto o princípio? Pois onde está o princípio é que estará o fim. Abençoado aquele que ocupar o seu lugar no princípio, pois conhecerá o fim e não

provará a morte’.”[3]

Um dos ensinamentos mais intrigantes e profundos sobre a peregrinação da alma é o próprio relato bíblico da vida de Jesus. Vimos anteriormente que a Bíblia é um repositório de ensinamentos profundos velados pela linguagem alegórica. Uma dessas alegorias é a vida de Jesus. Como foi dito anteriormente, Jesus, nesses relatos, simboliza o Cristo que habita no interior do homem. Sua vida, como apresentada nos quatro evangelhos, é uma descrição da viagem de retorno de todas as almas à casa do Pai. Ela inclui os cinco grandes marcos iniciáticos da progressiva expansão de consciência que caracteriza aquelas almas que se engajam no esforço ingente conhecido como o caminho acelerado.

Jesus faz alusão ao processo iniciático ao referir-se a Jonas: “Como Jonas esteve no ventre do monstro marinho três dias e três noites, assim ficará o Filho do Homem três dias e três noites no seio da

terra” (Mt 12:40). Na iniciação o candidato sai o corpo físico, simbolizado pelo barco, entra no mundo interior, o mar, quando é, então, elevado em consciência ao estado crístico, o peixe. Após um período determinado, geralmente três dias e três noites, o iniciado retorna ao seu corpo, na alegoria é expelido do monstro marinho e volta à terra firme.

Outra alusão importante aos Mistérios é encontrada na Epístola aos Hebreus, em que Paulo, indica que Jesus também era membro da grande confraria, como havia sido profetizado no Antigo Testamento (Sl 2:7 e Sl 110:4): “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 5:6). E quem seria esse misterioso Melquisedec? De acordo com o autor de Hebreus: “Este Melquisedec é, de fato, rei de Salém, sacerdote de Deus Altíssimo. E o seu nome significa, em primeiro lugar, '‘Rei de Justiça’, e, depois, ‘Rei de Salém’, o que quer dizer, ‘Rei da Paz’.” (Hb 7:1-2) Esse ser, a quem Abraão fez suas oferendas (Gn 14:20), certamente não podia ser humano, pois é descrito como: “Sem pai, sem mãe, sem genealogia, nem princípio de dias nem fim de vida! É assim que se assemelha ao Filho de Deus, e permanece sacerdote eternamente” (Hb 7:3). O sacerdócio eterno refere-se à Grande Fraternidade de Adeptos, dedicada a facilitar a evolução da grande família humana por meio de periódicas revelações a seus filhos, conferidas por seus Mestres de compaixão e sabedoria.

A tradição cristã enfatiza que a consciência focalizada exclusivamente nas coisas terrenas representa, na verdade, uma vida de trevas, na qual prosseguimos como mortos-vivos, cegos, nada sabendo a respeito de nossa verdadeira natureza e destino, mergulhados na escuridão da ignorância, adormecidos e

embriagados, apartados do Reino dos Céus. Vivemos nessa condição por muito tempo, na realidade, por muitas existências terrenas, vagando ao sabor dos ventos da ilusão da separatividade, buscando a

felicidade na gratificação dos sentidos e, mais tarde, alimentando nosso orgulho, buscando o poder sobre as coisas do mundo e sobre nosso próximo. Só depois de termos exaurido nossas tentativas de alcançar a felicidade com as coisas deste mundo, quando chegamos ao ‘fundo do poço’, geralmente passando por crises existenciais, é que nos damos conta de que estamos no caminho errado e

começamos, então, a busca das coisas do alto, tateando a princípio e, mais tarde, trilhando firme a Senda sob a orientação do Mestre.

O mecanismo que possibilita o retorno da alma ao Mundo de Luz é a metanoia, palavra grega

geralmente traduzida como arrependimento, mas que tem o significado mais amplo de transformação do estado mental do homem, entendido como mudança de seus condicionamentos e orientação de seus pensamentos. Esse processo de transformação mental é lento, demandando muitas vidas até que o

homem alcance o estado final de perfeição, referido como “a medida da estatura da plenitude do Cristo”. Para que a transformação dos estados mentais se processe de forma mais acelerada, o Mestre legou a seus discípulos as chaves do Reino, o instrumental transformador que será examinado na próxima seção.

Deve ficar claro, no entanto, que nossa admissão ao Reino dos Céus não ocorre depois da morte, mas enquanto estamos encarnados no corpo físico. Essa verdade é apresentada de forma alegórica na passagem bíblica em que Jesus entra em Jerusalém montado num jumento (Mc 11:1-11). Nessa passagem, Jesus simboliza o Cristo interior, que deve entrar no Reino de Deus (a cidade santa de Jerusalém) servindo-se de um quadrúpede como veículo (os quatro corpos da natureza inferior). Esse

quadrúpede deve ser devidamente domesticado (com suas emoções e pensamentos inteiramente

disciplinados) para servir como veículo apropriado à natureza superior. Portanto, devemos alcançar esse estado de consciência com nosso esforço e merecimento aqui na Terra. Só então conseguiremos

estender esse estado beatífico para o resto de nossa existência, inclusive do outro lado do véu, ou seja, quando deixarmos para trás a vestimenta do corpo material.

No Evangelho de Felipe esse conceito é expresso em relação aos sacramentos. É dito que se as pessoas “não receberem a ressurreição enquanto estiverem vivas, quando morrerem não receberão nada”.[4] E, com relação ao sacramento da câmara nupcial que promove a mais alta expansão de consciência, é dito: “Se alguém torna-se um filho da câmara nupcial, ele recebe a luz. Se alguém não a recebe enquanto

estiver aqui, não será capaz de recebê-la no outro lugar.”[5]

No sentido mais profundo, a peregrinação da alma deve ser entendida como uma jornada da

consciência. Essa jornada inicia-se quando a consciência divina em estado imanifesto, no Interior dos Interiores, decide manifestar-se. A partir desse momento passa a emanar de sua essência veículos para manifestação em planos progressivamente mais densos, até completar o processo no corpo físico do homem. Com isso a consciência desses veículos vai sendo limitada ao que ocorre naquele plano e nos inferiores a ele.

A segunda etapa da jornada da consciência é conhecida em nossa tradição como o Retorno à Casa do Pai. Nessa etapa ocorre um gradual deslocamento da unidade de consciência para níveis cada vez mais elevados ou sutis. Para o homem no mundo, isso pode ser entendido como a progressiva expansão de consciência do nível material para o emocional, depois para o nível mental concreto, a seguir para o mental abstrato e assim sucessivamente. Essa expansão de consciência reflete, em grande parte, o interesse do ser humano, que deixa de procurar a gratificação dos sentidos, buscando sua felicidade em níveis de realização cada vez mais sutis. O ponto crucial desse processo é a expansão de consciência para o nível mental abstrato, a partir do qual a consciência pode, então, ascender ao nível intuicional da percepção direta da verdade. Os ensinamentos cosmológicos contidos em Pistis Sophia (anexo 3) nos ajudam a entender essa questão. Esses conceitos são exemplificados na figura 1.

Para o homem comum, é difícil entender que a consciência inclui tanto o aspecto inferior quanto o superior. Ocorre que, durante a maior parte de sua vida na Terra, o homem só percebe, ou alcança, sua consciência inferior. O fator limitativo é o corpo material ou, mais especificamente, o cérebro. Como vimos anteriormente, a missão do homem é manifestar plenamente o Espírito através da matéria, com a intermediação da mente. Isso significa que o homem deve alcançar a plenitude de sua consciência

superior enquanto estiver no corpo físico, sendo essa consciência percebida, ou registrada, pelo cérebro.

Essa manifestação do Espírito através da matéria, ou Deus através do homem, não deve ser confundida com aniquilamento da consciência do corpo, das emoções ou da mente concreta. No Todo não há

dualidade, portanto o eu inferior deve ser integrado à consciência do Eu Superior. Esse processo de integração sempre esteve implícito na tradição do cristianismo primitivo que exortava o homem a alcançar o Pleroma, a plenitude do ser, que não pode ser entendida como exclusão dos níveis inferiores, mas como expansão da consciência para abarcar níveis cada vez mais amplos. De forma semelhante, a prática budista da plena atenção, implica na percepção integrada de tudo o que ocorre nos diferentes níveis de consciência do indivíduo.

Esse processo de expansão da consciência a planos mais elevados é exemplificado no mito de Sophia pela estória contada por Maria, a mãe de Jesus:

“Quando eras pequeno, antes do Espírito ter descido sobre ti, enquanto estavas na vinha com José, o Espírito desceu do alto e veio a mim em minha casa, parecendo contigo. Eu não o reconheci, mas pensei que ele era tu. E o Espírito me disse: ‘Onde está Jesus, meu irmão, para que possa encontrá-

lo?’ E quando ele me disse isso, fiquei em dúvida e pensei que era uma aparição, tentando-me. Agarrei-o, amarrando-o ao pé da cama em minha casa, indo encontrar-me contigo e com José no campo. Encontrei a ti e a José na vinha. José estava fincando estacas para as videiras. Quando me ouviste dizer aquilo a José, tu compreendeste e te alegraste, dizendo: ‘Onde está ele, para que possa vê-lo? Pois na verdade estou esperando-o neste lugar.’ Quando José te ouviu dizer essas palavras, ele se assustou. Fomos juntos, entramos na casa e encontramos o Espírito preso à cama. E olhamos para ti e para ele e achamos que eras semelhante a ele. E aquele que estava preso à cama foi desatado. Ele te abraçou e beijou, e tu também o beijaste. E vos tornasteis um e o mesmo

ser.”[6]

O simbolismo é claro. Jesus quando menino ainda não havia desenvolvido inteiramente a consciência espiritual, mas estava ciente de que isso deveria ocorrer quando seus veículos estivessem

suficientemente preparados (o que geralmente ocorre por volta dos sete anos de idade). O Espírito com a aparência de Jesus, que Maria confunde com uma aparição, simboliza a contraparte espiritual de sua consciência. Um espírito, logicamente, não pode ser amarrado numa cama, portanto essa cena deve ser entendida num sentido alegórico, ou seja, que ficou aprisionado às emoções e ao corpo. Nesse sentido, o espírito de todos nós está amarrado ao nosso corpo e só pode ser solto quando o reconhecemos e o libertamos dessa prisão milenar, dando asas à nossa consciência. Quando isso ocorre, a consciência inferior, Jesus menino, abraça e beija sua contraparte espiritual, tornando-se os dois um só ser, ou melhor, uma só consciência. O abraço e beijo oferecem um paralelo com os mistérios do despertar da kundalini, quando a energia telúrica sobe serpentinamente pela coluna dorsal, encontrando-se no centro da cabeça com a energia espiritual que entra pelo chacra coronário, beijando-se aí, ou simbolicamente unindo-se, provocando assim um estado de iluminação no indivíduo.

Mas se a consciência inferior e a superior são partes de um todo, o que ocorre com a consciência superior ao longo de todas as existências em que o homem está voltado para o mundo, mantendo-a, portanto, amarrada ao pé da cama? Durante essas longas eras, a consciência superior aguarda, com paciência divina, o momento oportuno para revelar-se, em obediência ao livre arbítrio do homem,

aproveitando, porém, todas as ocasiões possíveis para inspirar sua contraparte inferior. As intuições que temos ocasionalmente fazem parte dessa comunicação esporádica entre o superior e o inferior dentro de nós, que ocorrem sem que nos apercebamos em nossa consciência de vigília. A consciência superior aguarda que chegue o momento em que o homem no mundo busque o caminho da perfeição, o que implica na purificação da mente e sua conseqüente sintonia com o mundo superior. A passagem do

Apocalipse: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim; e a quem tem sede eu darei gratuitamente da fonte de água viva” (Ap 21:6), retrata essa lei espiritual de que o Senhor do universo deve aguardar a solicitação do homem, nesse caso referida como a sede de espiritualidade, para só então saciá-lo. A unidade da vida, da qual resulta a unidade da consciência, pode ser imaginada como um cordão

espiritual que une todos os veículos emanados pelo Deus interior nos diferentes planos da manifestação. Assim, todos os veículos do homem, desde o mais elevado, ou espiritual, até o mais grosseiro, o corpo físico, fazem parte de um todo. Ao longo da peregrinação da alma, com sua lenta evolução e sutilização, a consciência vai como que subindo ao longo desse cordão, devendo para isso superar certas barreiras. A mais importante para o homem do mundo é a barreira entre o mental concreto e o mental abstrato.

As tradições orientais chamam este cordão de antakharana, que é também, às vezes, referido como o cordão prateado, ou ponte, entre o superior e o inferior.

[1] A idéia de que vivemos em desterro longe da casa do Pai está expressa em Imitação de Cristo: “Considera-te, neste mundo, como peregrino e hóspede, que nada tem que ver com os negócios da terra. Conserva o teu coração livre e voltado para Deus, porque não tens aqui morada permanente.” Imitação de Cristo, op.cit., pg. 90-91.

[2] “Sabe, ó Vencedor dos pecados, que tão logo o praticante tenha cruzado a sétima Senda, toda a Natureza vibra de reverente alegria e se faz submissa. A argêntea estrela cintila a boa nova às flores noturnas, o riacho sussurra a lenda aos calhaus; as escuras ondas do oceano a bramam aos rochedos envoltos de espuma, brisas impregnadas de aromas a cantam aos vales, e altivos pinheiros murmuram misteriosamente: ‘Surgiu um Mestre, um Mestre do Dia’.” A Voz do Silêncio, op.cit., pg. 85.

[3] Evangelho de Tomé, versículo 18, em The Nag Hammadi Library, op.cit., pg. 128. [4] Evangelho de Felipe, em The Nag Hammadi Library, op.cit., pg. 153.

[5] Evangelho de Felipe, op.cit., pg. 160. [6] Pistis Sophia, op.cit., pg. 206-7.

OS ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ AS CHAVES QUE ABREM O REINO DOS CÉUS NA TERRA

V. O MÉTODO DE TRANSFORMAÇÃO Capítulo 9