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O LADO INTERNO DE UMA TRADIÇÃO Os documentos apócrifos

AS FONTES PRIMÁRIAS DA TRADIÇÃO INTERNA

II. O LADO INTERNO DE UMA TRADIÇÃO Os documentos apócrifos

A segunda grande fonte da tradição interna são os documentos chamados apócrifos pela ortodoxia, os escritos que não foram aceitos no cânon bíblico, mas que tratavam dos mesmos assuntos do Antigo e do Novo Testamento. Existe uma grande variedade de documentos classificados nessa categoria genérica. Alguns, como os relatos da infância de Jesus, eram muito populares entre as classes mais humildes; outros apresentavam relatos ou doutrinas disparatadas; mas um grande número era de escritos

oriundos dos grupos denominados gnósticos, que desde o primeiro século representaram um espinho na carne das doutrinas ortodoxas.

O termo apócrifo em grego (apokrufo) significava aquilo que estava escondido ou velado. Portanto, o fato de um texto estar escrito em linguagem velada ou oculta era, naquela época, indicação de

idoneidade e profundidade. Tais eram os escritos esotéricos gnósticos que, com freqüência, usavam criptogramas e símbolos para velar suas doutrinas. No entanto, os padres da Igreja, após selecionar aqueles livros que fariam parte do cânon, com suas repetidas referências depreciativas aos documentos rejeitados, conseguiram mudar a conotação desse termo, fazendo com que os documentos velados, ou apócrifos, fossem tidos como inidôneos ou de autenticidade não comprovada.[1] Atualmente, os

dicionários informam que, entre católicos e protestantes, chamam-se apócrifos os escritos de assuntos sagrados não incluídos pela Igreja no cânon das escrituras autênticas e divinamente inspiradas. Esse estigma continua afetando até mesmo alguns eruditos modernos que ainda “caracterizam os evangelhos apócrifos como secundários, derivados, especulativos e meramente voltados para a edificação e

entretenimento de seus leitores, enquanto os evangelhos canônicos são rotineiramente vistos como

originais, históricos e repletos de percepções teológicas.”[2]

Durante os séculos II e III de nossa era esses documentos eram simplesmente rejeitados pela Igreja como espúrios e disseminadores de uma falsa fé. Porém, a partir do século IV, com a aliança da Igreja com o Imperador Constantino, os bispos passaram a exercer poder temporal em assuntos

religiosos e, com isso, procuraram abolir os documentos apócrifos, principalmente aqueles de origem gnóstica. Milhares de manuscritos preciosos foram queimados ou seqüestrados. Em muitos casos, só temos conhecimento de alguns desses manuscritos devido a citações em obras literárias de seus detratores, como Irineu e Tertuliano, por exemplo, que escreveram contra os ‘hereges,’ como eram chamados os autores dos documentos apócrifos.

A atitude intolerante da incipiente Igreja nos primeiros séculos de nossa era pode ser compreendida em face da decisão tomada de popularizar a vida de Jesus como narrada nos evangelhos, como sendo a verdadeira mensagem divina, a ‘Boa Nova’, estabelecendo uma série de conceitos que resumiriam o que

os ‘fieis’ deveriam crer para alcançar o céu. Como os escritos e ensinamentos mais esotéricos da corrente mais pura do cristianismo primitivo eram uma constante fonte de contradição com esse

enfoque distorcido da verdade, a solução encontrada foi anatemizá-los e destruí-los, o que passou a ser feito com grande zelo pelo clero da corrente dominante.

O pomo de discórdia era o papel de Jesus e de seu ministério. A ortodoxia apresentava, como apresenta hoje, Jesus como um dos aspectos da Divindade, a segunda pessoa da Trindade, o Verbo feito carne que habitou entre nós, tendo vindo à Terra para expiar os pecados do mundo. Esse dogma da expiação

vicária, em evidente contradição com as palavras de Jesus, como registradas nos evangelhos canônicos, levou a Igreja, por absurdo que pareça, a relegar os ensinamentos de Jesus a um segundo plano. A mensagem de Jesus foi praticamente esquecida; para a Igreja o que importava era o mensageiro. Alguns teólogos, até hoje, assumem abertamente esta posição:

“Para os cristãos, a boa nova é o próprio Jesus, e não qualquer coisa que ele tenha dito ou não. Num sentido mais restrito, o termo ‘evangelho’ refere-se aos registros escritos da sua vida, obras e palavras. Para a Igreja cristã, nada disso pode ser separado ou isolado, pois o primordial é quem ele é. O que fez foi uma conseqüência de quem ele é, da mesma forma como o que ele disse foi uma conseqüência de quem ele é. Suas palavras têm importância secundária, por mais valiosas que

sejam em si”.[3]

A fundamentação da proclamação da Igreja, o kerygma[4] da morte e da ressurreição do Cristo, transformou Jesus do maravilhoso instrumento divino que trouxe a ‘boa nova’ do Reino dos Céus, na própria boa nova. Com isso o mensageiro divino tornou-se a mensagem de Deus. O triste corolário dessa mudança de perspectiva é a pouca importância dada pela Igreja aos ensinamentos do Mestre. Quis a providência divina, no entanto, que alguns exemplares dos antigos documentos anatemizados pela Igreja fossem preservados, chegando até nós. Alguns já eram conhecidos desde a antigüidade, tais como os Atos de Tomé, nos quais se encontra o ‘Hino da Pérola’, apresentado e interpretado no Anexo 2, e os Atos de João. Esse último documento, citado por Clemente de Alexandria, apresenta uma visão docética[5] de Jesus relacionada com sua crucificação, e o único ritual conhecido da tradição cristã, chamado ‘Hino de Jesus’.[6]

No século dezoito foram encontrados os códices conhecidos como Askew e Bruce, dos quais faziam parte o livro Pistis Sophia e os Livros de Ieu. No século dezenove foi encontrado o Codex Akhmin, pouco

conhecido. No início do século XX foram encontrados vários fragmentos de antigos documentos,

geralmente denominados pela região de sua descoberta ou pelo nome de seus descobridores, como os papiros Oxyrhynchus 840, Egerton 2, Oxyrhynchus 1224 e mais tarde o Evangelho Secreto de Marcos. Em meados de nosso século, mais precisamente em 1945, foi descoberto no Alto Egito, numa caverna perto da localidade de Nag Hammadi, um grande vaso com uma coleção de livros, provavelmente escondidos por monges do mosteiro de São Pacômio, localizado próximo à caverna. Esses monges procuraram salvar sua preciosa biblioteca, contendo vários textos gnósticos, antes da chegada de observadores enviados pelo arcebispo Athanasius, com um destacamento de tropas romanas, para

édito condenava os gnósticos e determinava que seus livros fossem destruídos.[7]

A coleção de Nag Hammadi consiste de doze códices, em copto (a língua antiga do Alto Egito), e de oito páginas adicionais retiradas de um décimo terceiro códex e usadas para formar a capa do livro. Essas oito páginas correspondiam a um texto completo, um tratado independente retirado de um livro de ensaios. Havia um total de 52 tratados, sendo seis repetidos. Outros seis já eram conhecidos no original grego ou em tradução para o latim ou para o copto quando a biblioteca de Nag Hammadi foi

descoberta,. Dessas 40 obras novas, 10 estavam bastante fragmentadas, decompostas pelo tempo. Esse acervo constitui um tesouro de ensinamentos originais de diferentes escolas gnósticas, sobre as quais só eram conhecidas citações de seus detratores, que proporcionavam visões invariavelmente resumidas e distorcidas. Os livros eram traduções de originais gregos, provavelmente produzidos entre a segunda metade do século III e a primeira metade do século IV.

Dentre os textos encontrados destaca-se, no códex II, o Evangelho de Tomé, obra preciosa com aforismos e várias parábolas do Mestre, sem nenhum relato da vida de Jesus nem de sua morte e

ressurreição, provavelmente nos moldes da fonte dos ditados (logia) de Jesus, conhecido como livro “Q”, inicial de Quelle (fonte, em alemão), que teria servido de base para os evangelhos de Mateus e Lucas. Muitos estudiosos são da opinião de que esse evangelho deveria estar entre os canônicos. O Seminário sobre Jesus,[8] que reuniu quase 200 professores bíblicos e teólogos para pesquisar quais teriam sido as verdadeiras palavras de Jesus, incluiu esse evangelho junto com os quatro canônicos em sua pauta de trabalhos.

O Evangelho de Felipe, também encontrado no códex II, segue a tradição dos evangelhos de sentenças (que apresentam somente aforismos atribuídos a Jesus, sem nenhum relato de sua vida). Nesse

evangelho os aforismos são geralmente mais extensos que os encontrados no Evangelho de Tomé, dando ênfase especial aos mistérios, ou sacramentos, de Jesus. Esse Evangelho é uma jóia que oferece inúmeros vislumbres do instrumental esotérico utilizado pelo Mestre para promover a expansão de consciência e, assim, introduzir os discípulos devidamente preparados no Reino dos Céus.

Alguns textos, como O Evangelho da Verdade, O Livro de Tomé o Contendor, O Diálogo do Salvador e O Evangelho de Maria, permitem uma visão diferente do Mestre, que é mostrado revelando segredos aos seus discípulos. A maioria dos textos versa sobre assuntos cosmológicos, como os apresentados por diferentes movimentos gnósticos, dentre os quais sobressaem os barbeloítas, os sethianos e os

gnósticos cristãos. O mito de Sophia e a peregrinação da alma são também abordados em vários textos, como O Tratado sobre a Ressurreição, O Apócrifo de João, A Exegese da Alma, A Sophia de Jesus Cristo, Allogenes e Protennoia Trimórfica.

Esses textos não canônicos utilizam alegorias e símbolos para velar os ensinamentos de cunho esotérico. Um exemplo de como as palavras são propositadamente veladas pode ser visto no Evangelho da

Verdade:

“Esse é o conhecimento do livro vivo que ele revelou aos eons, no final, como (suas letras), revelando como elas não eram vogais nem consoantes, de forma que alguém pudesse lê-las e

pensar sobre algo tolo. Elas eram letras da verdade que somente os que as conhecem falam. Cada letra é um (pensamento) completo como um livro completo, pois elas são letras escritas pela

Unidade, tendo o Pai escrito essas letras para que os eons, por meio delas, pudessem conhecer o Pai.”[9]

Os documentos apócrifos, principalmente aqueles de origem gnóstica, oferecem um imenso tesouro de informações sobre o lado interno da tradição cristã, quando sua linguagem alegórica e simbólica é devidamente interpretada.

[1] New Testament Apocrypha, op.cit., pg. 14. [2] Ancient Christian Gospels, op.cit., pg. 44.

[3] A. Duncan, Jesus, Ensinamentos essenciais (S.P.: Cultrix), pg. 12.

[4] Palavra grega que significa ‘proclamação’. Núcleo central e essencial da mensagem cristã. [5] Doutrina segundo a qual o corpo de Cristo era de natureza sutil e não de carne e osso.

[6] G.R.S. Mead, Fragments of a Faith Forgotten (London, Theosophical Publishing Society, 1906), pg. 426-444

[7] Para mais detalhes sobre a história desses documentos, vide a introdução de James M. Robinson à monumental obra que editou, The Nag Hammadi Library (Harper San Francisco, 1980)

[8] Vide a introdução de The Five Gospels, op.cit.

[9] Evangelho da Verdade, em Nag Hammadi Library, op.cit., pg. 43. Voltar

OS ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ AS CHAVES QUE ABREM O REINO DOS CÉUS NA TERRA

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