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Alguns conceitos básicos da Gramática Funcional do Discurso

Capítulo 2 – Embasamento teórico: a Gramática Funcional do Discurso

2.1 Alguns conceitos básicos da Gramática Funcional do Discurso

Apresentam-se, neste capítulo, as bases teóricas do modelo gramatical de análise que vai nortear a abordagem funcionalista da tese. A Gramática Funcional do Discurso (FDG) é uma teoria recente (Hengeveld, 2004a e b, 2005a e b, e n.p.; Hengeveld & Mackenzie, 2006; Mackenzie & Gómez-González, 2004) que resultou da integração de avanços de pesquisa e aplicação na Gramática Funcional (FG) de Dik (1980, 1997a e b) e seus colegas.6 Da FG, a FDG preserva e atualiza os postulados funcionalistas e a maioria das premissas teóricas. Como inovação, acrescentou a distinção clara entre os níveis de análise interpessoal e representacional, que permite a separação entre as intenções comunicativas e o conteúdo comunicativo, assim como incorporou aspectos importantes do modelo de camadas (Hengeveld, 1989). Fora disso, a FDG avançou os objetivos originais da FG ainda mais (Dik, 1997b), no sentido de passar de uma gramática da sentença para uma gramática do discurso (Hengeveld, 2004a e b).

Não obstante a inclusão de ‘discurso’ no nome da teoria, a FDG é, basicamente, um modelo de gramática. Não é uma teoria que analisa o discurso no sentido de centrar-se nos aspectos extralingüísticos, mas é uma teoria que considera ‘discurso’ não como processo mas como produto (Connolly, 2005; Dik, 1997b; Mackenzie & Keizer, 1991; Moutaouakil, 1998). Fundamenta esse foco diferenciado no fato de que muitos fenômenos lingüísticos podem ser explicados com maior adequação, se forem considerados no interior não apenas de sentenças, mas de unidades de influência maiores, tais como o tipo de discurso, de contexto, de enunciação, e se for analisado o papel da pragmática ao se aliar a uma forte base semântica.

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As abreviações consagradas na teoria, entre outras as da teoria em discussão e dos váriáveis, serão mantidas no original em inglês, por serem convencionais. Usa-se FG em referência ao modelo de Dik, FDG ao modelo novo e F(D)G para as áreas que ambas tem em comum. Noções pertinentes à teoria serão mantidas com inicial maiúscula.

Por outro lado, segue a FDG firme no propósito de centrar-se na expressão lingüística e considerar os lexemas como unidades básicas para as unidades lingüísticas, por preceitos funcionais e estruturais de cada língua. Para tanto, situa sua forma e sua função no uso, busca explicações funcionais em primeiro lugar e, ainda, tenta formalizá-las para chegar a uma descrição adequada e teoricamente válida.

Inicialmente, serão introduzidos alguns aspectos marcantes dessa teoria, mostrados esquematicamente na Figura II a seguir, os quais, no decorrer da exposição nas próximas subseções, serão explicados detalhadamente. Destaca-se o postulado básico de uma gramática do discurso que se baseia na orientação do processo de formação das expressões lingüísticas ‘de cima para baixo’ (top-down). Isso significa que a análise procede de tal maneira que privilegia a perspectiva que vai da intenção para a articulação, pois assume que as decisões tomadas em nível mais alto determinam ou limitam as possibilidades de expressão nos níveis mais baixos (Hengeveld, 2004a). Esse enfoque reforça hierarquias funcionais, que se iniciam em níveis abstratos e, obedecendo a questões de escopo, terão reflexos morfossintáticos e fonológicos nas unidades lingüísticas.

Nisso, o modelo de FDG se opõe ao de FG, uma vez que este elaborou um modelo de construção de predicação, no qual um enunciado se constrói em camadas, ou estratos, sucessivas, que vão de dentro para fora, ou melhor, de baixo para cima. Isso significa que uma predicação ‘se inicia’ com um predicado e seus termos, no qual, pelo ato de predicação, são construídos os níveis de predicação nuclear, de predicação central e de predicação estendida, até chegar na proposição e no ato de fala (Dik, 1997a). Em cada nível, aplicam-se funções, as funções semânticas, sintáticas e pragmáticas, elementos gramaticais (operadores) e elementos lexicais (satélites). Embora Dik tenha enfatizado que a direção de influência, na verdade, segue do ato de fala para as camadas internas, esse postulado vem sendo efetivamente posto em prática pela FDG, com a direcionalidade indo da formulação para a codificação – o que Hengeveld chama de top-down.

Além da organização de cima para baixo, a FDG caracteriza-se pelas seguintes propriedades:

FIGURA II:O MODELO GERAL DE FDG Marcos Lexemas Operadores primários Formulação Nível interpessoal Nível representacional Esquemas Auxiliares Operadores secundários Padrões prosódicos Morfemas Operadores secundários Codificação morfossintática Nível morfossintático Codificação fonológica Nível fonológico Componente Conceitual Com pon ent e Co ntex tual Com p o nen te Gram ati cal Articulação / Enunciado / Componente de saída

i) o ato do discurso A é visto como a unidade básica de análise;

ii) o componente da gramática interage sistematicamente com um componente conceitual, com um contextual e com o de saída (output);

iii) a FDG inclui as representações morfossintáticas e fonológicas como parte de sua estrutura subjacente (semântica) e não apenas como resultado do componente de saída.

De acordo com a Figura II, o modelo de gramática trabalha com os níveis conceituais, contextuais e de saída, além do componente gramatical propriamente dito. É fundamental enfatizar que cada módulo tem organização hierárquica, mas interage com os outros de várias maneiras. Em cada nível de representação atuam funções, elementos primitivos e regras de mapeamento que garantem a interface entre os níveis. Essas regras elaboram as expressões lingüísticas que são internamente construídas e, em termos de complexidade, estão orientadas ‘de baixo para cima’, como na FG tradicional. Faz-se, portanto, a distinção entre níveis do modelo inteiro (levels: interpessoal, representacional, morfossintático e fonológico) e as camadas no interior dos módulos (layers: predicado, predicação, proposição). Além disso, o modelo gramatical da FDG é também integrado a uma estrutura modular, que inclui os módulos conceitual e contextual. As regularidades que se mostram nas expressões lingüísticas, no componente de saída, são o resultado de regras de expressão e podem ser representadas por meio de variáveis.

A representação na Figura II reforça a centralidade do componente gramatical, que é, como já mencionado, de interesse central na análise da expressão lingüística, particularmente no presente trabalho. Quanto aos componentes conceituais, contextuais e de saída, vale observar que estes, embora se encontrem separados, estão interligados ao módulo central por regras de mapeamento e, em termos de representação, por setas. Com isso, ficou evidente que o conceitual e o contextual – que são ‘extralingüísticos’ – possuem influência nas decisões iniciais da formação lingüística. Os módulos correspondentes determinam os primeiros passos, mas não o processamento encaminhado, no momento em que o sistema da língua em questão, com suas características, é acionado.

O componente gramatical é constituído pelas operações de formulação e codificação (em oval na figura), primitivos usados nas operações (nos quadrados da figura) e níveis de representação produzidos pelas operações (nos retângulos). Todos interagem de cima para

baixo e da esquerda para a direita, à semelhança dos processos de produção lingüística7. A formulação especifica possíveis configurações pragmáticas e semânticas que podem ser ou são codificadas na língua de análise. A codificação ocupa-se das formas morfossintáticas e fonológicas que as configurações formuladas assumem na língua. Os primitivos agrupam-se em marcos e esquemas pragmáticos, semânticos, morfossintáticos e fonológicos, nos quais lexemas são inseridos e operadores se aplicam (Hengeveld & Mackenzie, 2005).

Os diversos níveis serão detalhados nas seções a seguir, mas podem ser destacados os níveis de representação (o nível interpessoal ou pragmático - NI; o representacional ou semântico - NR; o estrutural ou morfossintático – NM e o fonológico) como locus de aplicação de funções e regras de mapeamento. Estas últimas constituem a gramática, no sentido tradicional, e distinguem-se dos elementos de construção, do léxico, que são parte do Fundo Lexical. Os elementos de construção aplicam-se, por meio de primitivos específicos, nos diferentes níveis. Articulam-se no componente de saída por meio das regras de expressão – a morfologia – para formar um enunciado. O modelo visa a captar as relações complexas da atividade lingüística e a estreita inter-relação e colaboração entre gramática e léxico, portanto, entre o mais regular e o mais idiossincrático. Um outro objetivo é o detalhamento da direcionalidade e do escopo, que vão do mais geral para a atualização nas manifestações mais específicas.

De acordo com a área de atuação dos níveis, pode-se verificar que, enquanto os níveis interpessoais e representacionais são mais abstratos e mais independentes da língua analisada, os níveis estruturais e fonológicos são específicos a uma língua, pois constituem, passo a passo, os resultados lingüísticos concretos das regularidades aplicadas. Isso significa que uma organização do componente gramatical desse tipo confirma uma abordagem funcional autêntica, já que concretiza a prioridade pragmática sobre a semântica e a prioridade semântica sobre a sintática. Essa mesma hierarquia traduz-se na Figura III, na qual foram detalhadas as conseqüências dos componentes lingüísticos em relação aos níveis de atuação, à aplicação das funções e às regras provenientes para formar uma expressão lingüística. Nas

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Hengeveld enfatiza, em várias oportunidades (2004a e b), que o modelo representa e esquematiza fatos lingüísticos e que, apesar de ser dinâmico e procurar aproximar-se da realidade psicolingüística de fala, não pretende ser um modelo de produção.

próximas subseções, cado tópico será aprofundado para avaliar o seu papel para as hipóteses do presente trabalho.

FIGURA III:A HIERARQUIA FUNCIONAL DE INFLUÊNCIA NO COMPONENTE GRAMATICAL DO MODELO DE GRAMÁTICA:

A Figura III esboça o mapeamento de funções na expressão lingüística no que se refere ao componente gramatical. As funções pragmáticas prevalecem sobre as semânticas e estas sobre as de expressão (morfossintaxe e fonologia). As regras de expressão são específicas a uma língua e aplicam-se conforme a integração de todas na expressão lingüística, ou seja, no componente de saída. A configuração do componente gramatical confirma, entre outros, que, na F(D)G – ao contrário de outras teorias – a pragmática é parte da gramática, o que destina um papel particular a fatores que, muitas vezes, são chamados de ‘discursivos’ e ‘contextuais’. Para as funções pragmáticas, citam-se principalmente as funções de Tópico e Foco e algumas subdivisões; para as funções semânticas, as de Agente, Paciente (ou Meta), Experienciador, Força, Processado, Recipiente, Referente, Zero, Locação, Direção, Origem,

Referência e outros; e para as funções sintáticas, Sujeito e Objeto.8 Todos esses parâmetros foram estabelecidos e comprovados com base em estudos tipológicos (Dik, 1997a).