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Capítulo 4 – Nominalidade e sintagma nominal

4.2 Tipologia de substantivos

4.2.1 Classificação dos substantivos

Será pertinente examinar algumas classificações, já que as subcategorias refletem a categorização e se manifestam com marcas gramaticais nos sintagmas, assim como explicam fatos que, freqüentemente, são atribuídos a ‘idiossincrasias’ do léxico comum ou especializado. A classificação que condiz mais com a descrição do que com a explicação é a morfológica, por exemplo, em pares como primitivo-derivado, simples-composto e outros. Outras distinções tradicionais são as que são feitas entre substantivo próprio e substantivo comum e substantivo concreto e abstrato. Na primeira, interessa que o N comum, reunindo conteúdo semântico e função denominativa e descritiva, pode tanto assumir a função de N quanto de nominal e, com isso, presta-se i) para rotular a categoria estabelecida e ii) para definir o conjunto de propriedades que a identificam.

Mais complicada é a classificação semântica entre concreto e abstrato devido à freqüente falta de critérios para definir o que é abstrato (Correia, 2004). Uma abordagem semântica, como a de Lyons (1977) e da F(D)G, presta-se melhor para estabelecer uma distinção mais clara em termos de tipos de entidades referidos pelo N, embora o ‘abstrato’ possa ser de tipos muito variados. Por definição, Ns concretos possuem extensão mais visível e delimitável (Rijkhoff, 2002). Referem sempre a Ent-1 (IndObj), enquanto Ns abstratos estão para Ent-zero (‘alegria’, ‘inteligência’), Ent-1 (‘paz’, ‘círculo’), Ent-2 (‘classificação’, ‘recebimento’) e, embora com menos freqüência, para entidades de ordem mais alta (‘fato’, ‘questão’, ‘idéia’), já que estas últimas normalmente se manifestam por expressões e construções analíticas. Por outro lado, há Ns com mais de uma acepção, tais como ‘alegria’, visto como propriedade e como estado (Ent-zero), ou, por exemplo, ‘classificação’ como Ent- 1, na interpretação resultativa, ou como Ent-2, quando processo. Essas e outras complexidades reduzem o valor de aplicação da distinção concreto-abstrato para classificar os Ns do discurso especializado, tendo em vista que prevalecem conceitos intuitivamente ‘abstratos’ (‘taxas’, ‘inflação’), ações (‘aplicação’, ‘lançamento’), processos (‘queda’,

‘percepção’), estados (‘alta’, ‘volatilidade’), proposições e avaliações. Além disso, instanciação e especificação dos conceitos, por meio de propriedades, são fatores fundamentais que estabelecem o significado no contexto comunicativo e na área. Isso mostra que a classificação somente entre Ns abstratos e concretos não é suficientemente precisa e explicativa.

A distinção entre N contável e N não-contável (N de massa ou N massivo) é mencionada por vários autores (para o português, entre outros Neves, 2000, Camacho & Pezzatti 2002, Correia, 2004), sem, no entanto, ter recebido a atenção merecida. Esta distinção apresenta conseqüências gramaticais significativas relacionadas com a quantificação e o uso de singular (SG) e plural (PL). Por exemplo, os Ns contáveis são marcados pela distinção SG- PL, assim como pelo uso de números cardinais (‘um livro’ - ‘dois livros’).22 A contabilidade geralmente coincide com os Ns concretos e demonstra a preferência tracionalmente dada ao protótipo de N: o N concreto e contável. Alguns outros casos, nos quais não há congruência entre a marcação de número e a contabilidade, apresentam formas lexicalizadas e são conhecidas como pluralia tantum (por exemplo, ‘bodas’) e singularia tantum (por exemplo, ‘polícia’, na interpretação de ‘conjunto de policiais’).

Os Ns não-contáveis são neutros em relação à marcação de número e sua quantificação ocorre no português por expressões analíticas de medida que envolvem o relator ‘de’ e obedecem às restrições semânticas entre o tipo de medida e a substância medida (‘um pedaço de pão’, ‘um metro de fita’, ‘uma garrafa de vinho’, mas também com ‘um pouco de’, ‘um resto de’, ‘grande quantidade de’ etc.). Há ainda um outro grupo de N, os coletivos, que também dispensa a marcação gramatical pela categoria Número. Os coletivos não mostram quantificação de uma substância homogênea, mas um elemento superordenador que agrupa diversos componentes com algum tipo de relação, sem ser homogêneo (‘móveis’, ‘talheres’, ‘manada’). Muitas vezes, a contabilidade não é inerente à entidade, mas depende da conceitualização feita. Por exemplo, a substância ‘uva’ (grape, de Rijkhoff, 2002) pode ser concebida como entidade coletiva (‘uma penca de uva’), como unidades em objetos individuais distintos (‘50 uvas’) ou como massa (‘meio quilo de uva’), sem afetar o conceito,

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Para uma distinção mais precisa no inglês, Vossen (1993) apresenta um conjunto de testes com diversos tipos de quantificadores.

embora o português agrupe as distinções ‘coletivo’ e ‘massa’ pela falta da marca PL (coletivo ‘uva’ e massa ‘uva’ versus N de objetos singulares ‘uva(s)’).

As classes de N receberam tratamento detalhado em Dik (1997a, e trabalhos anteriores), que estabeleceu a supercategoria ensemble com as subcategorias objetos individuais (individuals), conjuntos (sets) e massa (mass). Esse agrupamento baseia-se em estudos tipológicos e filosóficos, e foi refinado para Ent-1 por Rijkhoff (2002, e publicações anteriores). Sob o termo Seinsart (ou‘modo de ser’), uma propriedade nominal representada na dimensão espacial, este autor elabora uma classificação da categoria nominal segundo os traços [±contorno] (shape) e [±homogeneidade] (homogeneity). O traço [contorno] – e isso é previsível pela definição de N – é fundamental para todos os seis tipos de Ns estabelecidos por Rijkhoff (singular object nouns, collective nouns, set nouns, sort nouns, mass nouns, general nouns).

Para o português, dos seis tipos destacam-se quatro, que surgem pela combinação de traços representados no Quadro XXI: N de objetos singulares, ou contáveis (singular object nouns), N de conjuntos, ou coletivos (collective nouns), N de massa, ou não-contáveis (mass nouns) e N genéricos, ou gerais (general nouns).

QUADRO XXI–TIPOLOGIA DE N(ADAPT. DE RIJKHOFF,2002)

Tipo Traços Exemplo N de objetos singulares [+contorno], [-homogeneidade] livro N coletivos [+contorno], [+homogeneidade] móveis N de massa [-contorno], [+homogeneidade] água N genéricos [-contorno] água (em ‘bolsa de água’)

As três primeiras classes também fazem parte da classificação de Vossen (1995). Incluiu-se o quarto tipo, o de Ns genéricos, por ser relevante para os estudos do léxico comum e especializado. Deve-se lembrar que os quatro tipos se caracterizam por distinções semânticas e gramaticais. A oposição SG-PL, mostrada nos exemplos a seguir, comprova que a subcategorização ‘contabilidade’ não é uma noção cognitiva de individuação, mas constitui-se como um fenômeno gramatical de flexão. Percebe-se a produtividade e a

regularidade de (1) a (3), em que um mesmo lexema (‘aplicação’) permite diversas interpretações.

(1) Os FIF cambiais encerraram outubro com alta nominal de 4%, a melhor entre as aplicações. (GM-01-11)

(2) A continuidade da instabilidade dos mercados financeiros cria oportunidades de ganhos futuros para os fundos de carteira livre, que circulam entre os diversos tipos de aplicações. (VE-27-10)

(3) A alta no mercado futuro de juros prejudicou alguns fundos de renda fixa prefixados, mas os analistas dizem que não é hora de trocar de aplicação. (VE- 26-10)

Em (1), há um claro exemplo de N de objetos singulares, no qual o PL indica a contabilidade, reforçado por ‘a melhor entre’. Uma outra marca gramatical é o artigo, que indica a definitude (que se deve ao fato de o item ser núcleo de um SRef). ‘Aplicações’, em (2), é um N de massa em forma de pluralia tantum. Apesar de a expressão ‘tipo de’ não ser de Quantificação (ou medida), ela indica a relação semântica de hiponímia, de especificação e individuação entre um conjunto de aplicações e aproxima o N da classe dos genéricos. O que dificulta a interpretação de genérico, na verdade, é a marca de PL no lexema. Assim, comprova-se que a categoria Número é distintiva entre Ns genéricos e de massa. O lexema é claramente genérico em (3), sem artigo e sem marcas de Número.

Observe agora o mesmo lexema ‘aplicação’ representando um evento (Ent-2) em (4). O N é dependente e só se completa pelo complemento ‘dos fundos’ e também se subordina a ‘limites de’. Assim os traços de [±contorno] e [±homogeneidade] não se aplicam e não há marcas de Número nem de Definitude. Com isso, o N em (4) se enquadra no tipo de N genérico, que, na tradição gramatical, é chamado de ‘N abstrato’.

(4) Kliass também não concordava com posição defendida pela Comissão de Valores Mobiliários no grupo que estuda alterações nos limites de aplicação dos fundos. (VE-01-11)

Para completar a tipologia de N em relação aos coletivos, Vossen refina a subclassificação dos Ns de massa. Além de Ns de substâncias como ‘água’, ‘ouro’ etc. e pluralia tantum como ‘aplicações’ em (2), dois outros tipos de N de massa interessam: N de massa multiforme (ou Ns multiformes), e N de massa pluriforme (ou Ns pluriformes). O primeiro tipo, exemplificado por ‘portfólio’ em (5), apresenta uma forma de N própria, no qual o conceito de especialidade leva à interpretação não de massa homogênea, mas de N

coletivo composto por componentes individuais, ou seja, por tipos de títulos e fundos que compõem um portfólio (ou uma ‘carteira’). O segundo tipo mostrado em (6), o dos Ns pluriformes, baséia-se em processo produtivo de formação de N por derivação ou composição, com um morfema (‘-veis’) que denomina uma classe inteira.23

(5) "Por mais que o volume fique concentrado, os grandes caixas, como fundos de pensão e empresas sempre vão querer ter pelo menos uma pequena parte de seu portfólio em uma aplicação diferenciada", diz Pitta, do Brascan. (VE-EI-02)

(6) Aumentou, por exemplo, a oferta de consórcios imobiliários por diversas instituições privadas, como parte de uma política alternativa de financiamento de imóveis. (VE-EI-01)

Os Ns multiformes (‘portfólio’) são de formação idiossincrática e, por sua vez, podem ocorrer como Ns contáveis ou não-contáveis. Isso significa que esses coletivos se comportam gramaticalmente como Ns contáveis. Nos Ns pluriformes, a individuação gramatical diverge da conceitual; só há um morfema invariável para expressão da noção de coletivo, por exemplo, sempre o PL com ‘-veis’ do substantivo ‘imóveis’ em (6). Ambos, Ns multiformes e pluriformes, abrangem componentes diversificados e são alternativas para o conjunto {} de peças individuais pluralizadas (7).

(7) a. portfólio = {títulos, fundos, ações etc.} b. imóveis = {casas, prédios, terrenos etc.}

O interessante desse último grupo, ou dos Ns pluriformes, é a alta produtividade para formar cadeias de coletivos que usam o morfema sufixal como elemento genérico e a base como especificador. Assim, os morfemas vinculam-se, com maior ou menor transparência, a entidades que se agrupam em determinadas técnicas ou áreas de conhecimento ou especialidade (Gutièrrez Rodilla, 1998). ‘Imóveis’ é um exemplo de uma classe que se forma em torno de tipos de bens alienáveis (ou ‘bem’), com ‘-veis’ ou ‘-vel’ (8); ‘detergente’ é um dos representantes de líquidos da área da química, com ‘-nte’, que se vincula a bases verbais (9); ‘macarronada’ é um dos representantes de comida da área da culinária (10), amplamente discutido em Correia (2004); o morfema em ‘cafezal’ remete a uma área de plantação (11) e o

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Mostrar-se-á que o português usa mais a derivação ou processos analíticos para formar N multiformes, em oposição às línguas germânicas que privilegiam a composição. No inglês, há elementos de composição como ‘- ware’ para nomear coletivos (hardware, software) e no alemão, ‘-ware’, -gut’, ‘-zeug’ (Handelsware, Steingut, Werkzeug). Vossen também traz uma lista extensa desses formantes para o holandês.

‘-ia’ da cadeia em (12) parece ter-se especializado em lugares e estabelecimentos comerciais, embora também haja formas que façam parte de conjuntos (‘cavalaria’).

(8) -veis: imóveis, móveis, recebíveis, comestíveis, perecíveis etc. (9) -nte: detergente, solvente, amaciante, lubrificante etc.

(10) -ada: macarronada, goiabada, limonada; garotada etc. (11) -al: cafezal, arrozal, bambuzal etc.

(12) -ia: livraria, padaria, lavanderia; cavalaria etc.

O morfema ‘-vel’ (8) indica modalidade de capacidade no seu significado mais básico (capítulo 6) e liga-se, normalmente, a bases verbais (ou predicativas). A ocorrência nos dados em (7) sugere que há um núcleo nominal apagado que é, ou foi, modificado por um ADJ deverbal em ‘-vel’. Isso pode ser visto em expressões como ‘bens duráveis’ ou ‘alimentos perecíveis’, em que o N genérico (ainda) foi mantido.

Percebe-se, portanto, que o fenômeno de Ns pluriformes aponta para interessantes pistas na formação do léxico especializado do português, além de lançar luz sobre alguns morfemas produtivos e suas particularidades. O recurso de formantes, sufixais ou composicionais, é também freqüente na área química, na qual foi criado um conjunto de formantes lexicais para relacionar sistematicamente os reativos a determinados comportamentos e características, assim como também direcionou a taxonomia botânica por meio de derivativos do latim. Entretanto, deve ser ressaltado que não foram encontrados morfemas exclusivos na área da economia, e, sim, processos analíticos de especificação. Isso tudo indica que a expressão lingüística de conceitos comuns e especializados se serve das possibilidades gramaticais e lexicais da língua para classificar as entidades relevantes.

O exame das diversas classes de N pretendeu deixar claro que i) a classificação dos Ns nos tipos do Quadro XXI é relevante para a análise semântica e morfossintática; ii) as subcategorias, ou classes, são impostas pelo N nuclear, apesar dos operadores completarem a tipologia no nível sintagmático; iii) a marcação gramatical dá-se para as noções contável–não- contável, mas não para concreto–abstrato; e iv) o português lança mão de recursos gramaticais (operadores) e lexicais (sufixos/elementos de composição) para categorizar o vocabulário dos lexemas de categoria N.

Confirmando a classificação baseada na Seinsart de Rijkhoff nos dados e ampliando-a com as observações sobre regularidade e produtividade, Vossen (1995) lembra que são vários

os efeitos para a individuação gramatical de conceitos nominais. Além da divisão em agrupamentos (os coletivos), da necessidade de quantificadores e recursos gramaticais (os operadores de Número e Definitude), também há o recurso em que o falante escolhe determinados itens lexicais simples e complexos para expressar perspectiva e avaliação (os cognitive synonyms de Cruse (1986)). Isso se dá, por exemplo, quando é usado ‘vira-lata’ para ‘cachorro’ ou quando expressões fraseológicas ou metafóricas são selecionadas para denominar realidades complexas (Alves, 2002). Há ainda vários sufixos para denominar coletivos (N pluriformes), que também incluem conotação pejorativa (Correia, 2004; Rocha, 1998; entre outros).