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Classes lexicais e categorias gramaticais

Capítulo 3 – Categorização lexical e classes de palavras

3.3 Classes lexicais e categorias gramaticais

Como já mencionado na seção anterior, serão abordadas somente as classes de palavras verbo (V), nome (N), adjetivo (ADJ) e advérbio de modo (ADV), pelo fato de essas expressarem mais claramente conceitos e serem passíveis de uso predicativo, ou pelo menos poderem entrar em relação estreita – de modificação ou atribuição – com classes predicativas, como no caso do ADV de modo. Neste sentido, a visão funcionalista sobrepõe-se à concepção tradicional, aristotélica (Neves, 2002), e a substitui e amplia por relações semânticas quanto à

predicação e referenciação, e por relações sintáticas quanto ao que se refere a conceitos com núcleo e modificador. Diz Neves (2002:80) que “entre os processos de funcionamento e as classes, podem-se descobrir correspondências regulares que respondem pelo estabelecimento do estatuto categorial dos diversos itens em funcionamento na produção lingüística”. A visão funcionalista permitirá, por conseguinte, verificar o potencial predicativo no funcionamento das PdD e distinguir entre as palavras que representam essa classe e as unidades de funcionamento, os sintagmas. É nesse sentido que devem ser entendidas as definições das categorias lexicais predicativas dadas por Hengeveld (1992b) e transcritas no Quadro XIV16. QUADRO XIV:DEFINIÇÕES DAS CATEGORIAS PREDICATIVAS:

→ Um predicado verbal é um predicado que, sem medidas complementares necessárias, tem apenas uso predicativo.

→ Um predicado nominal é um predicado que, sem medidas complementares necessárias, pode ser usado como núcleo de um termo.

→ Um predicado adjetival é um predicado que, sem medidas complementares necessárias, pode ser usado como modificador de um núcleo nominal. → Um predicado adverbial é um predicado que, sem medidas complementares

necessárias, pode ser usado como modificador de um núcleo não-nominal.

As definições anteriores exigem algumas explicações: i) a expressão ‘sem medidas complementares necessárias’ exclui quaisquer recursos morfossintáticos necessários para garantir o funcionamento de um lexema como V, N, ADJ ou ADV, tais como sufixos categoriais, ordenamento em relação a núcleos e modificadores e na oração, prosódia etc. como representante de uma determinada categoria; ii) as funções das categorias predicativas estabelecem-se, primeiramente, pelo uso e não são necessariamente dadas de antemão. Nisso, as classes de palavras definidas no quadro seguem, em termos de definição, a tradição gramatical de ater-se ao funcionamento das partes do discurso na sentença; iii) um predicado verbal caracteriza-se pelo uso exclusivo como predicado – o que leva a entender a razão de

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essa categoria ser considerada como predicado prototípico –, mas também o distingue das outras categorias predicativas, pelo fato de as últimas não serem exclusivamente predicativas.

Em relação às ‘medidas complementares necessárias’ (i) cabe a menção aos processos morfológicos derivacionais que, embora não se apliquem à tipologia de PdD, são um recurso relevante para marcar a mudança categorial do português. Assim, as derivações por sufixos categorias do português se aplicam quando um lexema se adapta às necessidades de integrar as funções de núcleo ou modificador por via de categorias lexicais. A marcação da nova categoria no lexema com recursos lexicais é establecida formalmente (ii) e propicia a aproximação ao protótipo, enquanto a estratégia analítica, por meio de construções, é gramatical e principalmente satisfaz as exigências funcionais do protótipo, mas não as formais. Essa diferença será importante na discussão dos processos de adaptação de diversos lexemas para palavras-ocorrências.

O ponto iii) anteriormente referido vale para o V. O uso predicativo, de fato, não esgota a caracterização do V, porque, além do uso predicativo (função semântica), o verbo também é núcleo de um sintagma predicativo (função sintática), que, na terminologia funcionalista, corresponde ao sintagma verbal da tradição formalista, no entanto sem incluir o sintagma de objeto direto dos verbos transitivos. O V é completado pelos termos em forma nominal, às vezes até mesmo em sobreposição ao conteúdo semântico, apenas para expressar o complemento mínimo da expressão predicativa (marco). Desta forma, o N – e outras classes predicativas – podem assumir várias funções do predicado. O N também pode desempenhar o papel de argumento em relação ao verbo, ou, no nível de sintagma, ser núcleo de um sintagma referencial.

Particularmente interessante é o fato de que Hengeveld (1992b), ao tratar de predicação não-verbal, estabelece uma relação direta entre o uso do verbo de ligação (copula, abreviada V-lig) e partes do discurso. Em vista das funções de V-lig – vinculação do Sujeito ao ‘predicado’ da gramática tradicional, como elemento que agrega categorias de flexão verbal e com a função de predicador adicionado a lexemas que não formam predicados sozinhos (Pustet, 2003) –, é relevante que o V-lig possibilite um predicado não-verbal a atuar como predicado principal (Hengeveld, 1992b). Dessa forma, a ‘medida complementar necessária’ de V-lig, das definições em (2), amplia a distribuição das categorias lexicais em posição predicativa não só para N e ADJ, mas também para alguns tipos de ADV, além de unidades

lingüísticas maiores do que a unidade ‘palavra’: sintagmas, orações, textos. Isso envolve a predicabilidade lingüística, ou seja, se algo é ou não é expressável lingüisticamente (Hengeveld, 1992b).

O V-lig (‘ser’) tem, portanto, função de suporte para expressar, por meio de expressões analíticas, categorias complexas híbridas como diversos tipos de deverbais, formas nominais e estruturas complexas de modificação, os quais não teriam expressibilidade em português. Essa mesma função pode ser ampliada a pseudocópulas (‘estar’, ‘tornar-se’, ‘permanecer’ etc., segundo Hengeveld, 1992b), que explicitam a escala entre o lexicalmente menos pleno e mais pleno, a verbos-suporte (V-sup) e verbos de interpretação genérica. Essas e outras questões sobre predicabilidade envolvem distinções e relações entre verbal e nominal e os processos de verbalização e nominalização, a serem analisados no próximo capítulo. Quanto à codificação segundo o modelo de gramática da FDG, o V-lig é um morfema gramatical livre, que pode ocupar determinadas posições e afeta a estrutura lingüística. A distribuição de predicados verbais e não-verbais com o suporte de formas verbais, também V-lig e V-sup, leva a configurações morfossintáticas e pragmáticas singulares que até mesmo se refletem em diferentes estilos de linguagem e na conceitualização de realidades de uma área de especialidade em unidades lingüísticas, de maior ou menor grau de especialização.

A superioridade de uma definição primordialmente funcional e, no interior desta, sintática, também se comprova quando se considera a questão da variação na expressão de conceitos. Isso remete a distinçaõ fundamental entre os níveis de descrição lingüística: entre o nível lexical, o lexema, que representa a forma e entre o nível sintático, o sintagma, que explicita a função. Com o objetivo de mostrar o freqüente descompasso entre forma e função e as conseqüências na expressão de categorias lexicais, apresentam-se alguns exemplos do português, de (2) a (5), nos quais os lexemas em questão vêm sublinhados.

(2) O país produz cabos óticos de boa qualidade. (3) a. O produto vende bem.

b. a produção algodoeira

c. Os produtores anunciaram um novo aumento. (4) os países produtores

(5) a. trabalhar produtivamente b. o trabalho produtivo

O lexema verbal PRODUZIR, flexionado em pessoa, número, tempo, só pode ser usado na categoria V (2). Já as palavras-ocorrência do conjunto de exemplos (‘produto’, ‘produção’

e ‘produtor’), todos da categoria N (3a - c), divergem formalmente entre si, apesar de conterem um conceito em comum e serem referenciais, mas desempenham todos a mesma função sintática nos exemplos de (3), o de sintagma referencial (SRef). Nesse caso, ocorre a mesma função com diferentes formas. Há discrepância entre forma e função do lexema PRODUTOR, mostrada no exemplo (3c) e (4). Livre de sua função e de seu contexto, o lexema PRODUTOR pode ser tanto N como ADJ, e o mesmo acontece com a forma ‘produtores’ do exemplo dado, ainda que essa ambigüidade se desfaça na sua função sintática, quer dizer, é N por ser núcleo de um SRef, em (3c), e é ADJ, atuando como modificador de núcleo nominal em (4). Outras categorias, como as de ADJ e ADV costumam ser formalmente marcadas no português: em (5a), o morfema ‘-mente’ se junta ao ADJ, devido à função como núcleo não- nominal (verbal) neste caso, enquanto o lexema PRODUTIVO é modificador de núcleo nominal, portanto, tem a forma de ADJ (5b). Nota-se que, no português, a marcação de funções pode ser dupla:

i) Marcação de categoria lexical, com morfemas obrigatórios de classes próprias (mais nítida, por exemplo, no caso dos verbos:-ar/-er/-ir ou de muitos ADV, mas menos nítida nos Ns e ADJs) ou com presença de morfemas derivacionais, ou não (exemplos em (4));

ii) Marcação de categoria gramatical, tais como número, pessoa, gênero etc. (exemplo de (4c) e (5) mas também com número, pessoa, tempo, aspecto, modo etc., no exemplo (3)).

Para ilustrar e adiantar exemplos que constam dos capítulos de análise a seguir, apresentam-se, no Quadro XV, algumas marcas morfológicas do português que se ligam aos lexemas de base, os chamados ‘sufixos categoriais’. Caracterizam as quatro classes predicativas analisadas e ajudam na abordagem morfossintática das PdD no português. Ressalta-se que, no português, é a categoria ADJ que divide várias dessas marcas com o N, por exemplo, ‘-do’, ‘-nte’, ‘-eiro’, entre outros.17

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Devido a critérios funcionais, decidiu-se agrupar a vogal temática com as marcas morfológicas categoriais, e não como parte da base.

QUADRO XV:CLASSES DE PALAVRAS E SUFIXOS CATEGORIAIS DO PORTUGUÊS Classe de

palavras (Base) + morfemas

Verbo ( ) -ar, -er, -ir

( ) -ecer, -ificar, -izar Nome

( ) -mento, -ção, -agem

( ) -ança, -ença, -ência, -ez, -idade ( ) -do,

( ) -eiro, -nte Adjetivo

( ) -ável, -ível, -úvel

( ) -al, -ivo, -eiro; -oso, -udo, -esco ( ) -nte

( ) -do Advérbio ( ) -mente

Além da diferença entre classes de uso predicativo e não-predicativo, sendo que as primeiras são, às vezes, também chamadas de classes categoremáticas e, as últimas, de classes sincategoremáticas (Rastier et al., 2002), há ainda a distinção entre categoria lexical e categoria gramatical. O que Neves (2002) denomina de ‘palavras lexicais’ e ‘palavras gramaticais’ apresenta-se como diferença fundamental na discussão sobre a relação entre gramática e léxico. As categorias gramaticais chamadas de ‘acessórias’ na tradição gramatical grega (Neves, 2002) servem justamente para marcar a função de um lexema no interior de uma sentença. Para tal, as relações entre os lexemas são codificadas na sua organização de itens lexicais e gramaticais, indicando relações de dependência nas diferentes esferas (ou ‘níveis’, segundo o modelo de FDG), que expressam significados e dão pistas para a interpretação das formas lingüísticas em uso. No discurso, justamente essas marcas são significativas para expressar os conceitos atualizados. Pode-se afirmar, então, que na expressão lingüística em uso, não há categorias mais ou menos importantes – como, por exemplo, os termos em N nos estudos terminológicos tradicionais –, mas que são fatores como a interação entre lexemas e sua atualização no uso, no âmbito da área de especialização, que devem nortear o significado.

Em relação à marcação das categorias gramaticais, da qual a morfologia se encarrega, as regras de expressão de línguas flexionais, como o português, determinam-nas no nível paradigmatico. Observam-se as categorias ‘morfológicas’ enumeradas em (6), as quais privilegiam as categorias V e N, devido à função básica de serem núcleos de sintagma. O ADJ, com sua função prototípica de modificador no SRef, ‘adapta-se’ na expressão

referencial e assume as marcas de seu núcleo por ‘concordância nominal’ (ou congruência, segundo Haspelmath, 2000).

(6) Predicado verbal: número, pessoa, tempo, modo, aspecto, voz etc. Predicado nominal: número, pessoa, gênero etc.18

Predicado adjetival: número, pessoa, gênero etc.

Voltar-se-á a isso com mais detalhes no decorrer do trabalho e tentar-se-á, nesta análise, preservar o equilíbrio entre o lexical e o funcional, a fim de explicar satisfatoriamente os predicados complexos do português e as UTs da LEsp da economia. Na próxima seção, serão esclarecidos os fatos morfológicos.