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O nível estrutural ou morfossintático (NM)

Capítulo 2 – Embasamento teórico: a Gramática Funcional do Discurso

2.5 O nível estrutural ou morfossintático (NM)

Após a formulação segundo diretrizes dos níveis pragmáticos e semânticos, ou seja, segundo marcos, e já com o mapeamento encaminhado por regras e primitivos, o material lexical é submetido ao processamento no nível estrutural, com a aplicação de esquemas, isto é, de ‘traduções’ ordenadas dos marcos. A diferença fundamental entre formulação e codificação é que a primeira se refere às regras que determinam a representação pragmática e semântica subjacente de uma língua, enquanto a segunda diz respeito às regras que convertem as representações abstratas em representações morfossintáticas e fonológicas (Hengeveld, 2005b). Assim como os níveis mais altos, o nível estrutural desdobra-se em unidades de organização, em parte paralelas aos níveis abstratos e em parte específicas, visando a efetuar a codificação morfossintática. É preciso reiterar que os marcos de ilocução e de predicação preenchidos por lexemas se atualizam para esquemas morfossintáticos (templates), servindo- se dos primitivos disponíveis para o nível estrutural. Como este se subdivide em nível morfossintático e nível fonológico e o último se aplica menos a dados escritos, usa-se, neste trabalho, principalmente ‘nível morfossintático’ (abreviado NM).

A codificação, na verdade, nem sempre se completa nesse nível, se bem que são dadas as instruções básicas para a articulação final, a começar pelos esquemas. As regras sintagmáticas, por exemplo, aquelas em relação à estruturação dos sintagmas predicativos e referenciais, assim como a especificação da distribuição de núcleo e modificador desses sintagmas, são direcionadas pelas funções interpessoais (subato referencial R), mas cabe ao NM para que os esquemas apropriados sejam implantados. Isso inclui, entre outros, a aplicação das funções sintáticas Sujeito e Objeto, as únicas que a F(D)G admite, que se dá segundo diretrizes abstratas e se completa pelos operadores secundários nas adaptações que a língua exige. Os últimos ajustes ficam por conta de eventuais dependências entre morfologia, sintaxe e fonologia. Estes exigem operadores que traduzem a tipologia morfológica para a codificação. Quanto mais ‘rica’ e morfologicamente opaca uma língua – por exemplo, línguas fusionais – tanto mais envolvidos são os primitivos de todos os níveis (Hengeveld, 2005b). Isso será exemplificado com dados do português nas próximas seções, a começar com os esquemas morfossintáticos.

2.5.1 Os esquemas morfossintáticos

Uma expressão se inicia, então, com a seleção de marcos e a inserção simultânea de lexemas. Esses marcos são semânticos, mas já trazem todas as informações que se referem ao lexema relacionado: especificações semânticas básicas, configuração de funções semânticas, número de posições para serem preenchidos por termos (valência), instruções categoriais, operadores primários para indicar as relações gramaticais envolvidas etc. (Quadro VI). É no NM que os marcos são atualizados por esquemas morfossintáticos. Ao contrário dos marcos, os esquemas contêm seus constituintes já ordenados segundo as regras de ordem da língua, já que as funções sintáticas Sujeito e Objeto e as funções Núcleo e Modificador são instanciadas na expressão lingüística. É por isso que a linearização dos constituintes se inicia no nível estrutural, com a distribuição dos argumentos, como, por exemplo, de acordo com a função de Sujeito e Objeto. Outras funções sintáticas são, para a FDG, aquelas relacionadas a Núcleo e Modificador. Envolvem, igualmente, questões de ordenamento e dependência e ocorrem, por essa razão, no nível estrutural com a aplicação de esquemas. Do mesmo modo, os esquemas fixam a passagem de lexema para palavra-ocorrência, principalmente nas UL derivadas.

Essas questões se apóiam, não obstante a complexidade e especificidade das línguas, em representações básicas que ajudam a compreender a caracterização detalhada dos esquemas e morfemas típicos desse nível. O Quadro VII é um exemplo de uma fórmula possível do nível estrutural da sentença tratada no nível representacional (Quadro III). Inclui as funções núcleo e modificador e a instanciação das categorias semânticas de base.

QUADRO VII:O NÍVEL ESTRUTURAL DO PORTUGUÊS – ORAÇÃO

‘As exportações brasileiras cresceram consideravelmente.’

[[[lexemaN]SRef [lexemaAdj] SMod ] [lexemaV [lexemaAdv] SMod ] SPred ] Oração]

SMod = Sintagma modificador

SRef = Sintagma referencial, ou SN; para núcleo

A fórmula representa uma oração com um predicado verbal monoargumental, modificado por um advérbio que forma um SPred. O único SRef, já que o lexema de base está inserido em um marco de predicação monoargumental, é modificado por um ADJ. Assim, aplica-se, para a modificação do SRef, o primeiro esquema morfossintático do Quadro VIII e

o segundo para a modificação de um SPred, assim como o terceiro para um SAdj, todos com o esquema de modificação. Nota-se que a diferença em relação à representação semântica está apenas na ordem. Observa-se o paralelismo entre a modificação de SRef e SPred, embora , no SRef haja concordância .

QUADRO VIII:ESQUEMAS MORFOSSINTÁTICOS PARA SREF,SPRED E SADJ: 1. SRef [[[lexemaN]SRef [lexemaAdj]]SMod]

2. SPred [[[lexemaV [lexemaAdv] SMod ] SPred ]

3. SAdj [[[lexemaAdv] SMod [lexemaAdj]] SRef ]

Os paralelismos entre os tipos de sintagma e seus esquemas abrem perspectivas interessantes em relação às formas recategorizadas, por exemplo, as verbo-nominais, mas também para ocorrências de variação da ordem do ADJ no constituinte, principalmente porque a ordem é condicionada por variáveis dos níveis de maior escopo e se baseia em esquemas variantes. Esse assunto será a base da discussão nos capítulos de análise. Na próxima seção, abordar-se-á a questão dos morfemas gramaticais livres e dos morfemas presos.

2.5.2 Auxiliares e morfemas presos

Sabe-se que a atualização lingüística de determinadas categorias gramaticais do português ocorre tanto por operadores (abstratos) como por morfemas presos (meios morfossintáticos) e por morfemas livres (meios analíticos ou perifrásticos), entre outros, os auxiliares. Quanto aos aportes semânticos, deve ser acrescentado que há um leque de possibilidades expressivas entre auxiliares mais gerais: o verbo de ligação ‘ser’ na predicação não-verbal, (exemplo 2a), ‘ser’ e ‘ter’ nos tempos compostos (2b), ‘ir’ na expressão do futuro (2c), e outros um pouco mais lexicais: ‘estar’ em oposição a ‘ser’ (2d), os verbos suporte ‘dar’ (2e) e ‘ter’ (2f). Em outros casos, como na expressão de modalidade deôntica com ‘dever’ (2g), já há acréscimos semânticos claros, algo que se poderia também afirmar em 2e e 2f. O conjunto em 2c representa variantes possíveis do português, embora também seja determinada por variáveis de uso. Os auxiliares integrantes do sintagma verbal de (2) carregam as marcas categoriais de verbo (no predicado verbal) e se combinam com formas mais nominais do

predicado. O dado em 2h representa um morfema preso (‘-ção’) em possível alternância com uma variante analítica (‘ação de...’).

(2) a. João é professor.

b. A casa foi reformada. Tem chovido muito nos últimos dias. c. Vou buscar os amigos. Buscarei os amigos.

d. O jantar está bom. Comer é bom. e. Deu um pulo de alegria.

f. A empresa não teve lucro. A empresa não lucrou. g. Deveria ter dito isso logo.

h. A revisão do texto já acabou. A ação de revisar o texto já acabou.

Voltando à análise teórica, confirma-se a localização dos morfemas gramaticais livres entre os primitivos do nível estrutural. Os morfemas gramaticais livres são selecionados por regras morfossintáticas e, no nível estrutural, fazem parte de esquemas morfossintáticos disponíveis no Fundo e ocupam determinadas posições na configuração sintática, ao contrário dos morfemas presos. Apesar de certas restrições de ordem, observa-se que os morfemas livres se adaptam a algumas reestruturações sentenciais. Isso se opõe aos morfemas presos que fazem parte de uma palavra. Observa-se ainda que, em termos de ordem, há diminuição de flexibilidade do nível sentencial para o sintagmático e fixidez no nível da palavra, por exemplo, ‘revisão do texto’ em comparação com ‘ação de revisar o texto’.

Além dos esquemas verbais citados, há os esquemas que se aplicam para morfemas gramaticais livres nos contextos nominais. Nesse contexto, fala-se freqüentemente em partículas ou, funcionalmente, em relatores. Estão incluídas as adposições, isto é, as preposições do português, tanto como marcadores de funções semânticas (Direção em 3a e Locativo em 3b), como para expressão de Caso (3c), de agente da passiva (3d) ou na regência verbal e nominal (3e e 3f). A forma ‘de’ do português, uma partícula versátil, ocorre nas estruturas de posse (3g) e na composição (3h), de acordo com Alves (2004). Também artigos são partículas (3a etc.). Da mesma forma, os pronomes (3c), que asseguram as relações anafóricas no texto, são considerados partículas.

(3) a. Fui ao mercado. (‘a’) b. Moro na capital. (‘em’) c. O que disse a ele? (‘a’)

d. O romance foi escrito por Jorge Amado. (‘por’) e. Não pensei mais no caso. (‘em’)

f. ter orgulho dos filhos (‘de’) g. a casa de João (‘de’)

h. casa de alvenaria; viagem de férias (‘de’)

A questão é de grande interesse devido à variação interlingüística relacionada à tipologia morfológica (Hengeveld, 2005 b). Mostra que o mapeamento formal entre funções pragmáticas e semânticas e sua expressão morfossintática não apresenta necessariamente isomorfismo e que os aparentes ‘descompassos’ encontram melhor explicação se tomarmos a perspectiva funcionalista como ponto de partida. Essa perspectiva aponta para duas tendências diferentes nas línguas, ou até numa mesma língua: i) uma determinada categoria gramatical pode ser expressa por um morfema livre atrelado a um predicado na formação de um sintagma, ou ii) a categoria gramatical aparece como morfema preso a um lexema (‘radical’) – o que reforça a importância dos esquemas. O primeiro recurso caracteriza línguas e estratégias lingüísticas mais analíticas e o segundo, as mais sintéticas.

Consideremos, então, o procedimento para expressar categorias gramaticais e funções que usa um morfema preso para marcá-las diretamente nos lexemas, e está disponível para o português. Expressam noções variadas e estão, em parte, lexicalizadas. Comprova-se, no entanto, que a língua portuguesa permite, nos itens lexicais mais eruditos, algumas formas sintéticas de categorias que, tradicionalmente, não são consideradas tipicamente gramaticais, apesar de serem regulares e produtivas. São elas: a iteratividade, em 4a, noção expressa no nível de predicação; um aspecto de quantificação de evento em 4b; noções de polaridade de evento e de negação de adjetivo e substantivo em 4c; expressão de relações aspectuais e temporais em 4d; a marcação da função semântica Companhia com a preposição que a expressa em 4e; reflexos de localização ou (possível) avaliação em 4f; e noções semânticas de ‘aumentativo’ e ‘diminuição’ (4g). Além disso, remete-se ao morfema nominalizador em (2h) e outros sufixos derivacionais e categoriais a serem discutidos no capítulo 4.

(4) a. reajustar b. semi-pronto

c. desacelerar, inexistente, não-pagamento d. pré-pago, récem-inaugurado

e. co-geração f. subvalorizar

g. mega-inflação, super-oferta, microempresa

Lembramos que uma abordagem funcionalista é capaz de reinterpretar não só fenômenos morfológicos, mas também dar novas atribuições aos elementos básicos destes. Desse modo, distinguem-se os morfemas presos dos livres no domínio de classificação, quer

dizer, os morfemas presos estão no domínio da morfologia, os morfemas lívres estão fora do domínio desta. Em termos de competência de nível no processamento lingüístico, os morfemas livres são introduzidos no nível estrutural e os presos são de competência do nível fonológico. De qualquer forma, são elementos indispensáveis para marcar as categorias gramaticais nos itens lexicais e, conforme discussão nos capítulos 3 e 4, também classes de palavras e categorias semânticas.