• Nenhum resultado encontrado

Regras de expressão e papel da morfologia

Capítulo 3 – Categorização lexical e classes de palavras

3.4 Regras de expressão e papel da morfologia

Conforme dito antes, as marcas das categorias gramaticais dizem respeito à expressão formal e não podem ser generalizadas, por serem altamente dependentes da língua em questão, ao contrário da função das PdD, que são universais. Entretanto, o que há de regular na expressão paradigmática é passível de ser determinado por regras de expressão, as quais utilizam os recursos morfossintáticos e morfofonológicos da língua observada, isto é, o sistema da língua. No entanto, as funções não podem ser apenas abordadas no sentido paradigmático, uma vez que apresentam características variadas no nível sintagmático. No interior de cada SPred ou SRef, há expressões formais particulares, mais simples ou mais complexas, ou com paralelismos nas formas recategorizadas, já que a expressão lingüística segue as características e a tipologia de uma língua, sempre de acordo com a predicabilidade lingüística.

No caso dos predicados verbais (SPred), fala-se ora em formas complexas, ora em predicados compostos ou complexos, quando estas se compõem de afixos ou de um conjunto de lexemas (Haspelmath, 2002, Rocha, 1998). Mencionam-se, tradicionalmente, formas perifrásticas (Haspelmath, 2000; Olbertz, 1996), quando estas incluem auxiliares para expressar as categorias gramaticais, assim como locuções ou predicados fraseológicos

18

O caso não é marcado nos predicados nominais (e tampouco nos adjetivais) do português, mas apenas nos elementos pronominais; definitude, especificidade, quantificação, dêixis, classificação, honorificidade etc. são expressas por formas livres ou ficam sem expressão.

(Lorente, 2002; Pavel, 2003; Alves, 2002), os quais podem abranger o continuum entre construções com verbos-suporte (Neves, 1996, Barón & Herslund, 1997, Alves, 2002 e 2004) e verbos mais plenos. Sob perspectiva funcional, o continuum também se estende para V-lig e pseudocópulas, assim como para os Vs genéricos em formas colocacionais. De certo modo, as propriedades desse tipo de predicados complexos situam-se, em termos de descrição, claramente entre léxico e gramática.

No caso do SRef, ou sintagma nominal, observa-se uma estruturação típica no português, que possui, no seu esquema morfossintático, posições para incluir a presença de determinantes, quantificadores ou pronomes, modificadores em forma de complemento, adjunto ou ADJ, além do núcleo nominal referencial obrigatório. O leque de categorias lexicais possíveis na unidade lingüística ‘sintagma’ assemelha-se àquele da ‘oração’, embora muitas marcas relacionais e de predicação estejam apagadas e a expressão toda seja ‘condensada’ lingüisticamente. Principalmente sintagmas com núcleo deverbal ou deadjetival, portanto, com algum grau de verbalidade (verbality, Mackenzie, 1986) mantêm a estrutura argumental, muitas vezes reduzida em forma de ADJs relacionais, e modificadores não- nominais, como diversos tipos de ADV. Já os SPred abarcam apenas o núcleo predicativo ou verbal e seu modificador, mas também nestas ocorrências pode haver alguma complexidade categorial e morfológica que aponta para o parentesco com estruturas oracionais. Discutir-se- ão as propriedades do sintagma predicativo e, principalmente, do sintagma referencial no próximo capítulo.

Com intenção de ater-se à realização formal das noções expressas pelas categorias gramaticais, adotar-se-á a proposta de Taylor (2003), autor que cita as categorias ‘palavra’, ‘clítico’ e ‘afixo’ como recursos de expressão das partes do discurso por meio das categorias gramaticais. Essa proposta condiz com o fato de os diferentes meios de expressão, tais como formas livres ou formas presas, estarem relacionados ao tipo morfológico de uma língua (Hengeveld, 2004b), embora possam expressar valores semânticos semelhantes. Verifica-se, no entanto, que uma mera classificação formal não dá conta de explicar os mecanismos envolvidos – nem mesmo em uma única língua – uma vez que as categorias palavra, clítico e afixo nem sempre podem ser delimitadas como tais com absoluta clareza. Além do mais, excluiría as inúmeras possibilidades sintáticas, como as formas complexas discutidas no parágrafo anterior, assim como também determinadas construções sintáticas, a ordem dos constituintes etc., que sinalizam as redes relacionais na sentença enquanto expressam

conceitos. A exclusividade da abordagem formal também deixa de fora as condições discursivas e contextuais que condicionam a forma, se bem que aporta boa adequação descritiva.

No entanto, se for encarada a questão por uma perspectiva funcional, ou funcional em combinação com a formal, encontram-se evidências nos postulados do modelo de gramática de FDG, já introduzido e discutido no capítulo anterior, o qual é rapidamente recapitulado aqui nos pontos que se referem diretamente ao componente de expressão. A perspectiva de cima para baixo do modelo de gramática reflete o processamento lingüístico e evidencia as operações de formulação e codificação morfossintática como responsáveis pelo componente morfológico. Na formulação, as representações conceituais pré-lingüísticas são convertidas em representações lingüísticas e determinam, com seus elementos básicos (os lexemas), as regras de expressão da operação codificação. Marcos, verbos auxiliares e operadores primários expressam as diversas funções pragmáticas e semânticas e, como tais, traduzem-se nos esquemas, morfemas gramaticais livres e operadores secundários no português. São, de fato, os elementos que constituem o componente de marcação morfológica, tanto flexionais como derivacionais. Aquilo que vem expresso por codificação traduz, portanto, os fatores interpessoais responsáveis pela seleção de marcos e esquemas e que interagem com o componente conceitual e semântico na combinação de lexemas e construções da língua. A multiplicidade dos fatores envolvidos também estrutura-se em função do conteúdo transmitido, da situação comunicativa específica e do entrosamento dos participantes, assim como da área de conhecimento ou atividade de aplicação. Assim, é possível acomodar as diversas influências, uma vez que todas elas interferem, à sua maneira, na seleção e estruturação das unidades lingüísticas efetivamente usadas.

Para verificar a atuação de algumas regras de expressão, parte-se de exemplos como de (7) a (10): expressão de moldes em (7), atuação de um morfema gramatical livre em (9), e representantes de predicados complexos com operadores secundários em (10) e (11):

(7) O Iraque produz e exporta 2,3 milhões de barris por dia. (VE-27-10)

(8) Eles têm feito os ajustes necessários para sustentar o currency board. (VE-27-10)

(9) ... trabalhadores ... devem obter reajustes salariais bem menores ... (VE-08-11)

(10) ... um sistema de tipos de câmbio fixos, mas ajustáveis, ... (VE-01-11)

O esquema (marco de predicação ordenado) dos verbos ‘produzir’ e ‘exportar’, em (7), determina não só a valência argumental (bivalência), mas também a seleção de restrição

(Sujeito: agente, humano etc. e objeto não-animado, material de troca econômica etc.) e a ordem não-marcada (SVO na oração principal). O exemplo de (8) aponta para o tempo composto do português para representar lingüisticamente a noção do passado de ‘fazer’; o auxiliar ‘ter’ é um morfema gramatical livre (operador primário), ocupando uma posição fixa, anteposta, em relação ao componente verbal ‘feito’. Os lexemas ‘trabalhadores’, ‘devem’, ‘reajustes’ e ‘salariais’, no exemplo (9), ilustram o operador secundário Plural, formando uma rede de congruência, primeiramente entre SRef em função de Sujeito e predicado verbal e, em nível hierárquico distinto, entre o SRef ‘reajustes’ e seu modificador ‘salariais’. Além disso, o V ‘dever’ indica modalidade epistêmica (obrigação), que é expressa por meio de predicado complexo. O dado em (10) traz um exemplo de um ADJ deverbal que incorporou o operador modal de capacidade (‘ajustável’ para ‘podem ser ajustados’), mas, neste caso, como operador em forma de morfema e não de partícula. Em todos os casos mostrados, as regras de expressão do português exigem determinadas marcas morfológicas.

Para ilustrar ainda melhor a diferença entre operadores primários e secundários, cita-se Haspelmath (1996), para quem as formas flexionais freqüentemente se agrupam em chamadas supercategorias, tais como número (incluindo singular, plural, dual etc.), pessoa (1ª, 2ª e 3ª pessoa inclusiva e exclusiva), gênero, caso, tempo etc., com todas as especificações do paradigma que o inventário morfológico de uma língua permite, além das combinações, formas supletivas, entre outras. Um operador primário seria, por exemplo, a categoria Número, a qual deixa de ser abstrata na hora de se atualizar no operador secundário SG ou PL, expresso no exemplo (9) do português. Algo parecido também ocorre em (8), na perífrase têm feito: essa combinação é uma das expressões da supercategoria ‘tempo passado’ – provavelmente em combinação com traços aspectuais, como progressividade – e tem, no caso do português e neste caso especial, uma forma perifrástica. Com isso, a cada classe de palavras aplica-se um paradigma abstrato de morfemas, seja uma ou mais supercategorias, expressas por meio de um ou mais operadores primários. Ao constituinte em particular, já com função sintática designada, aplica-se uma realização concreta, expressa por meio de um ou mais operadores secundários.

Dado isso, em uma língua de marcação relativamente abundante, como o português, não só a presença de marcas morfológicas para expressar as categorias gramaticais, mas também sua ausência suscitam reflexões sobre a interação de diversos operadores e marcas, ou ainda a alternância entre morfemas presos e morfemas livres. A ordenação relativa ao núcleo reflete o

escopo dos operadores respectivos (Bybee, 1985), mas nem todos os operadores precisam estar presentes na codificação. Hipóteses do ponto de vista funcional parecem, mais uma vez, confirmar que deve haver um jogo complexo de relações que se constituem hierarquicamente a partir de operações discursivas, pragmáticas e semânticas e se refletem no nível estrutural (morfossintático), fazendo com que a expressão lingüística do componente de saída tenha determinadas características formais.

Outro aspecto intrigante em relação à marcação ou não-marcação por recursos morfológicos surge nas expressões lingüísticas, sejam estas em forma de lexema ou de construções sintáticas, que se cristalizam na mudança categorial, por exemplo, nas formas de origem verbal que assumem função nominal e vice-versa. Mackenzie (1996 e outros), em trabalhos sobre a nominalização, demonstra e confirma para o inglês que, apesar de se poder distinguir 5 estágios formais entre as formas lexicais prototípicas de V e N, há um continuum em termos de possibilidades sintáticas, em que a estrutura argumental e as marcas das categorias gramaticais se adaptam formalmente à sua nova função de parte do discurso.19 Tratar-se-á dessa questão exaustivamente nos próximos capítulos, mas pode-se ilustrá-la rapidamente, com particular ênfase na atuação dos operadores que determinam as regras de expressão nas formas ‘intermediárias’ do continuum. Vejamos alguns exemplos, de (11) a (15), nos quais os trechos em discussão estão sublinhados:

(11) V Æ N, com o constituinte em complemento nominal:

A empresa reafirmou seu compromisso de participar do leilão de licenças de telefonia móvel de terceira geração na Suíça, com novos sócios. (VE-11-00)

(12) V Æ N como argumento:

... o fato de trabalhar mais com vendas à vista e de comercializar produtos de menor valor agregado contribuíram para melhorar os resultados. (VE-EI-02)

(13) ...[eles] se beneficiaram da operação fora dos limites da legislação nacional...

(14) V Æ N como proposição inteira:

Levanta também o fato de que os acordos estavam sendo fechados com “master franquias” ... (VE-09-11)

(15) Contudo, alguns analistas ficaram decepcionados com o fato de as receitas terem ficado abaixo da previsão... (VE-26-10)

19

As formas nesse continuum caracterizam-se por serem estruturas encaixadas. Desempenham, como unidades lingüisticas, determinadas funções no modelo de camadas (Dik, 1997; Hengeveld, 1989, 1992b, 1997, 2004b e d).

O constituinte complexo em torno do predicado verbal ‘participar’ do exemplo (11) assumiu a função de complemento nominal do lexema ‘compromisso’, mantendo sua estrutura argumental intacta, o primeiro argumento no pronome possessivo e o segundo argumento na mesma forma deverbal. Nota-se que ‘participar’ aparece sob forma nominal invariável, portanto sem marcação flexional de tempo, aspecto ou modo, e sem liberdade de ordem, pois o complemento deve vir sempre logo após o núcleo nominal, especificando-o. Em termos de estrutura argumental, podemos distinguir entre diferentes níveis encaixados. Ainda que os argumentos de ‘participar’ venham realizados exatamente como em função verbal, o complemento, por sua vez, é moldado como argumento do lexema deverbal nominalizado ‘compromisso’, que é introduzido com a preposição ‘de’ (‘genitivo objetivo’) e sempre posposto.

As construções com ‘fato’ (12) e (14) também desempenham função nominal. A construção introduzida por ‘fato’ em (12) é um argumento do lexema verbal ‘passar’ e assemelha-se formalmente à expressão de (11). Na expressão de (13), constata-se um morfema derivacional (‘-ção’) que indica o status de núcleo, função de certa forma preenchida por itens lexicais como ‘ação’, ‘evento’, atividade’ e, eventualmente, por ‘fato’, quando a intenção que prevalece é a de reforçar o valor proposicional do evento. A diferença fundamental é que, fora do elemento composicional ‘de’, a construção ainda possui mais traços verbais do que nominais (Haspelmath, 1996). A construção com ‘fato’ em (12) difere das anteriores por ser um CProp (Ent-3) e não um Est-C (Ent-2). Isso se revela, entre outros, com o ‘de’ que, nesse caso, não pode sofrer fusão com o artigo ‘a’, se bem que pode ser omitido, enquanto no núcleo ‘fato’ pode haver complementos com ‘de’, como em (12), (14) e (15), ou com ‘que’, como em (14).No último caso, o ‘de’ indica a função de complemento nominal e o ‘que’ introduz a categoria semântica Prop.

Em síntese, pode-se apontar para marcas de categorialidade, tipicamente mais verbais, devido à atuação de operadores para flexão de tempo, modo, aspectos, resíduos de influência do sujeito (no infinitivo flexionado), quando as construções se situam no lado mais verbal do continuum. No que diz respeito às marcas tipicamente nominais, tais como a presença do ‘de’ para marcar a estrutura argumental, a ordem fixa no interior do sintagma, a possibilidade de concordância nominal nos casos de modificadores adjetivais do núcleo nominal/nominalizado e a presença de morfemas presos derivacionais (como o ‘-ção’), deve-se também chamar a atenção para a presença reduzida de marcação temporal e aspectual – apenas a oposição

presente/passado e progressivo/não-progressivo –, somente nos casos menos nominais, por exemplo (14) e (15).

Outro fator intrigante é a dificuldade de fixar os limites exatos entre flexão e derivação (Haspelmath, 1996), já que se percebe que no centro do continuum pode haver tanto marcas verbais quanto nominais, e não é sempre possível distinguir claramente entre marcação como função (pertença a uma classe, formação de palavras, derivação) e marcas morfossintáticas dessa mesma função (categorias gramaticais, flexão). Na seção 3.6 e no capítulo 4, esses aspectos serão aprofundados, particularmente para o português, e discorrer-se-á sobre os processos de nominalização e verbalização, quando há mudanças categoriais referentes a modificadores. Com relação à referenciação, é importante lembrar a discussão sobre tipologia de entidades e o fato de que a afixação derivacional contribui para a extensão do leque de Ns como expressão de entidades de diversas ordens (Mackenzie, 2004).