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Categorização lexical e categorização das formas lingüísticas

Capítulo 3 – Categorização lexical e classes de palavras

3.2 Categorização lexical e categorização das formas lingüísticas

A categorização pertence à experiência real e lingüística humana e constitui um processo lingüístico, embora esteja estreitamente vinculada a faculdades cognitivas e preceitos conceituais. Com base nisso, podemos afirmar, consoante Taylor (2003), que o

estudo da semântica lexical deve ser considerado como um estudo sobre categorização. Neves (2002) mostra que a organização da gramática tradicional baseia-se na tradição grega e latina, na qual as classes de palavras foram instauradas como partes do discurso e vistas, basicamente, no seu funcionamento sintagmático15. Assim, procedeu-se a classificar o sistema das partes do discurso (doravante PdD) segundo as marcas flexionais do grego e do latim e a associar as classes de palavras a categorias gramaticais, ditadas pela presença ou ausência de flexão de caso, tempo, número e gênero (Robins, 2000 [1966]). Paralelamente, surgiu a discussão sobre a problemática da unidade ‘palavra’, pois a seleção de critérios definitórios para as classes de palavras que podem ser identificadas nas PdD exigiu considerar-se três ‘tipos’: a palavra formal, isto é, a palavra-ocorrência, a função sintática e o que parecia ser o significado de classe de cada PdD, ou seja, o lexema. Isso levou à conhecida predominância da caracterização semântica ontológica das classes de palavras, em combinação com critérios morfossintáticos, como é comprovado pelas definições tradicionais das classes de palavras N, V e ADJ.

A categorização clássica não estava isenta de problemas e, como vem sendo feita pela tradição gramatical, é alvo de crítica por parte de diversos estudos lingüísticos, pois, apesar de ter sido elaborada a partir do funcionamento no nível de sentença, mistura critérios muito variados, tais como os de natureza filosófica, sintática e semântica (Neves, 2002). A importância de se estabelecerem critérios mais rigorosos para efetuar a categorização lexical mostra-se em diversas áreas, a começar pelos estudos interlingüísticos, nos quais fica evidente que essa categorização não se sustenta na análise das línguas indo-germânicas e, menos ainda, na de línguas diferentes dessa família. Mesmo para o português, com herança mais próxima das línguas clássicas, como o latim, há muitas inconsistências em relação às classes de palavras.

Por um lado, há línguas com características morfológicas distintas – que não ‘marcam’ as categorias lexicais com determinados morfemas, como as línguas românicas, por exemplo – e que precisam de outros critérios, tais como ordem, função, prosódia etc., para

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As expressões classes de palavras, partes do discurso e categorias lexicais são aparentemente intercambiáveis do mesmo conceito, embora haja preferências de uso: categorias lexicais é a denominação mais geral, classes de palavras remete mais diretamente ao léxico e partes do discurso inclui a função do léxico em relação à sintaxe. Usam-se, neste trabalho, as três expressões e só se dá preferência à última quando são abordados mais especificamente aspectos funcionais e sintáticos das partes do discurso.

reconhecimento de seu estatuto categorial, ou de algumas categorias não-marcadas (Schachter, 1985; Lehmann, 1990; Hengeveld, 1992a e b, 2002, 2004). Por outro lado, há conceitos que se atualizam lingüisticamente em diversas classes de palavras. Conceitos de propriedades, como, por exemplo, ‘branco’, podem ser expressos em português e em muitas línguas familiares, em forma de ADJ. No entanto, pode diferir sua classificação primária entre as línguas (ora V, ora N, ora ADJ) ou, ainda, aparecer em diferentes categorias numa mesma língua, como em latim (Lehmann, 1990), dependendo da conceitualização à qual a propriedade ‘branco’ se associa: a uma propriedade de um evento, à de um objeto ou à de um estado. Veja o exemplo (1) do mesmo autor:

(1) a. nix cand-et

neve (F): NOMSG branco-PRES 3SG ‘A neve é branca’

b. nivis cand-or

neve (F): NOM SG branqu-idão(NOMSG M) ‘a branquidão da neve’

c. nix cand-ida

neve (F): NOMSG branc-a (ADJ:NOM SG F) ‘neve branca’

O conceito da propriedade ‘branco’ é categorizado como estado (ou até mesmo processo), portanto em uma classe que caracteriza principalmente verbos, em (1a); visto como abstração, quase objeto, e codificado como na classe usada primordialmente para referenciar, o nome (1b); ou ainda é tratado como aspecto ou atributo contingente de um objeto, uso tipicamente destinado à classe de adjetivos, como em (1c). Em cada palavra-ocorrência ocorrem as categorias morfológicas pertinentes a uma determinada classe de palavras enquanto o conceito se mantém. Mas, como definir a propriedade ‘branco’ em termos de classe de palavras e, afinal, ela pode ser atribuída a uma determinada PdD do latim?

Em face da dificuldade intralingüística, e, às vezes, interlingüística, de fazer com que a representação dos conceitos abarque as diferentes entidades, analisar-se-ão primeiramente as diferentes abordagens de categorização em classes de palavras. O recurso das etiquetas tradicionais de N, V, ADJ etc. para assinalar protótipos semânticos já foi notado por Sapir (1949), quando ele afirma que tradição e educação levam o falante a atribuir essas classificações semânticas, apesar do vocabulário não resistir a testes de uso real. Isso confirma, no entanto, a observação feita anteriormente de que esse tipo de categoria está estabelecida em muitas línguas e, por isso, faz parte da intuição lingüística dos falantes. Para

determinar e estudar as PdD, Hengeveld (1992b) menciona quatro abordagens, a discursiva, a nocional, a morfossintática e a funcional, que apontam para diversos aspectos descritivos e funcionais.

Na abordagem discursiva (Hopper & Thompson, 1984), os predicados definem-se na sua função no discurso: um V prototípico indica a ocorrência de um evento e um N prototípico introduz participantes e proposições no discurso. Esta abordagem situa a questão num âmbito mais amplo, mostrando, segundo Hengeveld (1992b), importantes correlações entre classes de palavras, função discursiva e fatos morfossintáticos. É limitado, no entanto, no sentido de não distinguir claramente palavras de predicados e sintagmas e não considerar o funcionamento sintático e os mecanismos para marcar o processo de recategorização, presentes em algumas línguas, mas não em todas. De fato, N e V não são realidades ontológicas ou abstratas, mas, sim, realidades lingüísticas, como será mostrado mais detalhadamente nos próximos capítulos. De qualquer forma, há o risco de se perder importantes aspectos particularizáveis e, ao mesmo tempo, generalizáveis, se forem consideradas exclusivamente as formas prototípicas das classes de palavras.

A abordagem nocional define os predicados em relação a entidades (Lyons, 1977), conceito já introduzido nos capítulos anteriores, e permite a distinção das PdD no nível do sintagma. Essa visão está de acordo com a concepção funcionalista que também considera as unidades de descrição pela função sintática, sendo que a classe de palavras está subordinada às funções de núcleo e modificador. Alguns dos problemas possíveis, suscitados por essa perspectiva, já foram apresentados no exemplo (1), no qual um conceito (ou noção) é passível de ser expresso em diferentes classes de palavras. Ainda que, por meio dela, não se possa abarcar todos os aspectos da categorização lexical com as classes de palavras de interesse para a presente pesquisa, há a opção de, igualmente, concentrar-se nos membros prototípicos de cada uma. Como a abordagem nocional é baseada em critérios semânticos e é uma via de materialização de conceitos (também terminológicos), ver-se-á com quais ressalvas e adaptações ela pode ser levada em consideração no presente trabalho.

A abordagem morfossintática, segundo marcas categoriais nos lexemas, apresenta sérias dificuldades para uma generalização interlingüística (consoante Hengeveld, 1992b) e dificilmente serve como critério exclusivo. Deve ser vista, todavia, como aliada valiosa na análise e descrição da língua portuguesa, já que esta usa tais recursos sistematicamente.

Sobretudo na formação de palavras e na mudança categorial, essa abordagem possibilita situar o léxico em relação à sua função gramatical. Eventuais ambigüidades com formas derivacionais, principalmente quando estas se aplicam para nomes e adjetivos, tratadas nas seções 3.5, e para deverbais, denominais e deadjetivais mais exaustivamente nos capítulos a seguir, poderão ser desfeitas na combinação com critérios funcionais e nocionais.

Por último, a abordagem funcional, ou melhor, sintática-funcional, segundo Hengeveld (1992a e b, 2004 a e b), toma como ponto de partida a função predicativa das classes e, conseqüentemente, só se aplica às classes predicativas: V, N, ADJ e ADV de modo. Como critérios funcionais e semânticos, são levados em conta tanto o uso predicativo-adscritivo (prototipicamente, o V) como o referencial (prototipicamente, o N), e como critérios sintáticos as funções de núcleo (desempenhadas por V e N) e as funções de modificador (o ADJ em relação ao N no sintagma referencial e o ADV em relação ao V no sintagma predicativo). Isso permite verificar as categorias lexicais também em relação à mudança categorial de formas complexas e eventuais estruturas de subordinação.

Com isso, ficou evidente que, para os fins desta tese, as abordagens mais adequadas para a categorização lexical são as de bases sintático-funcional e nocional, apoiadas na do discurso e confirmadas por meio da abordagem morfossintática. Com isso, evita-se a mera descrição, assim como não se perde o foco na realidade cognitiva e comunicativa das linguagens de especialidade. Permitem, igualmente, distinguir entre o aspecto lexical, o lexema, e o gramatical, a expressão lingüística que se cristaliza no sintagma, por meio da adscrição e/ou da referenciação, e, além disso, ver a questão de representação e distribuição sistemática das entidades nas categorias.