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Capítulo 4 – Nominalidade e sintagma nominal

4.3 O sintagma referencial

4.3.1 Diferença N – nominal

A categoria N, discutida na seção anterior, é o núcleo prototípico nos sintagmas nominais e nos sintagmas referenciais e, freqüentemente, é de difícil distinção do próprio N. No entanto, devido às conseqüências da referenciação para a gramática e para o léxico, justifica-se sua análise detalhada. Apesar de importante, a diferenciação entre N e nominal nem sempre tem recebido a atenção devida. Principalmente a NLZ e outros fenômenos de derivação tendem a ser atribuídos quase exclusivamente ao léxico, sem considerar a complexa interação entre este e as regularidades gramaticais que se baseiam em fatores semânticos. Isso faz com que todos os itens lexicais em N, que aparecem em forma de palavras, como as formas nominalizadas, logo sejam enquadrados na categoria lexical N e não na categoria sintática ‘nominal’. Muitas vezes, prefere-se tratar o nominal em oposição ao verbal e desconsiderar as distinções internas daquilo que é chamado ‘nominal’ .

De fato, o N é um lexema da categoria lexical N, ao passo que nominais não são lexemas, mas palavras-ocorrências. Freqüentemente, mas não exclusivamente, são unidades lingüísticas complexas, especificadas em torno de um núcleo N, mas também podem não ter núcleo (Hengeveld, n.p.). N e nominais não são as mesmas categorias, tampouco são do mesmo nível lingüístico: o N é categoria lexical, do nível lingüístico ‘palavra’, e o nominal é um fenômeno gramatical, dos níveis lingüísticos ‘palavra’, ‘sintagma’ e/ou ‘oração’. Em termos semânticos, um N tipicamente designa um IndObj (Ent-1 ou Ent-2 lexicalizada e com

interpretação de IndObj, ou Ent-3 como ‘fato’), enquanto um nominal também designa entidades de ordem mais alta (Ent-2 ou mais). O quadro a seguir mostra as diferenças, assim como as características de designação do tipo de entidade, que se dão por denotação no N e por referenciação no nominal.

QUADRO XXIII:DISTINÇÃO ENTRE N E NOMINAL

N Nominal

Tipo de categoria: lexical gramatical

Nível lingüístico: lexema palavra-ocorrência Unidade formal: palavra palavra, sintagma,

oração

Entidades designadas: Ent-1, Ent-2, Ent-3 Todos os tipos Designação das

entidades por: denotação referenciação

Na base das diversas unidades lingüísticas, palavra ou sintagma, há um outro fato semântico importante: enquanto o N traz a classe genérica do lexema, o nominal representa a instanciação do N na situação de uso. Como tal há referenciação de N e este é atualizado, localizado no contexto, modificado e interpretado, indicando e inferindo isso por diversas marcas gramaticais ou por recursos lexicais. As marcas gramaticais são, para a FDG, determinados pelos operadores, e os recursos lexicais, por modificadores. Podem-se listar os seguintes referentes particulares designados gramaticalmente, basicamente as noções citadas de 1. a 5., e lexicalmente (6) no âmbito nominal. Deve-se esclarecer, no entanto, que em muitos casos os recursos gramaticais e lexicais interagem (1. a 5.):

1) classe de N: marcas de contabilidade e não-contabilidade, de genericidade, de especificidade;

2) espaço do discurso: definitude, indefinitude;

3) locação: demonstrativos, marcas dêiticas; ADJs possessivos; locuções locativas; 4) quantificação: números, medidas;

5) mudança categorial: sufixos derivacionais, também com marcas do gênero da derivação;

6) modificação: modificadores (restritores na FG) em forma de ADJs classificadores, ADJs qualificadores.

Quanto ao tópico 1 e 4, já foi mencionado na seção anterior que a tipologia de N se completa no nível sintagmático e na interação entre os níveis de N e de nominal (Vossen, 1995). No português, as marcas para contável e não-contável vêm da categoria gramatical Número (SG-PL). Se já é um fato conhecido que a distinção genérico–específico é feita lexicalmente por modificação, gramaticalmente, esta se dá, entre outros, na interação entre

presença ou ausência de artigo ou de PL, pela distinção artigo definido e indefinido ou pela interação entre os fatores mencionados e PL. O artigo é, portanto, um indicador gramatical de diversos operadores, mas também marca um outro indício de referenciação: a (in)definitude, assim como entra na expressão das funções pragmáticas. Veja os exemplos (22) a (24), além dos já apresentados em relação a contável e não-contável da seção anterior. Note que os lexemas em N BALEIA, LEÃO e PRESENTE opõem-se aos sintagmas instanciados. O exemplo (22) é de Correia (2004) e os artigos estão sublinhados.

(22) Vi uma baleia [genérico] vs. A baleia é um mamífero [específico]. (23) O leão é um animal feroz. Leões são animais ferozes. [genérico]

(24) Comprei um presente [informação nova – Foco]. O presente já veio embrulhado [informação conhecida – Tópico].

Observe ainda que elementos dêiticos, tais como demonstrativos e possessivos, alguns advérbios de tempo e lugar, sintagmas adposicionais, e também o artigo definido, fixam a referência no espaço situacional do discurso e na locação (25). Em um exemplo já mencionado, e aqui renumerado como (26), o tipo de quantificador, se numeral ou medida, depende da interpretação de N contável ou N não-contável, e ainda envolve a distinção SG- PL. Mas também a ordem dos componentes pode determinar a interpretação de N como genérico ou como de N de objetos singulares, como demonstram os Ns sublinhados no exemplo em (27):

(25) nossos livros, estes livros, os livros aqui, os livros na estante (26) 50 uvas, meio quilo de uva

(27) lucro de 20% (N de objetos singulares) 20% de lucro (N genérico)

O último exemplo mostra que as freqüentes medidas, porcentagens e quantias da área de economia podem indicar tanto especificações de Ns conceitualizados como Ns de objetos singulares, quanto quantificar gramaticalmente Ns conceitualizados como Ns genéricos. Interessa notar que o elemento ‘de’ relaciona os núcleos em ambos os casos como relator, ora para introduzir uma estrutura de modificação, ora para ligar a porcentagem ao núcleo para quantificação. Assim, os dois usos atuam no N nuclear de forma lexical. Examinar-se-á a modificação por meios lexicais, citada anteriormente no tópico 6, na próxima subseção (4.3.2).

De particular interesse é, aqui, a mudança categorial de não-N para N, por meio de recursos morfológicos, como de responsabilidade do nível sintagmático (referente designado gramaticalmente, do Tópico 5). É nesse contexto que a distinção entre tipos de entidades é relevante, já que a mera consideração do lexema portador do sufixo categorial nem sempre é distintivo. Os dados relacionados a ‘aplicações’ em (28), para uma Ent-1, e em (29), para uma Ent-2, mostram isso:

(28) "Sendo a maior bolsa de títulos, a CBOE tem o prazer de adicionar o iShares para nossa crescente lista de alternativas de aplicações para os investidores", disse o presidente da CBOE, William J. Brodsky. (GM-03-11)

(29) Mas, segundo a Previ, ao contrato inicial de R$ 204,7 milhões juntou-se um aporte de R$ 87 milhões em março passado e ainda os rendimentos de R$ 37 milhões resultantes de aplicações financeiras de recursos destinados ao projeto. (GM-01-11)

Mesmo com o sufixo ‘-ção’, o lexema APLICAÇÕES é, em uma das interpretações de ‘alternativas de aplicações’ (22), um IndObj, pois é resultado de um evento, um NActi. Já em (23), ‘aplicações’ é núcleo do sintagma ‘aplicações financeiras de recursos destinados ao projeto’ (NAct). Possui complementos contidos em ‘financeiros’ e ‘de recursos...’ que são exigidos pela valência do N nuclear. Nesse último dado, também evidencia-se que os complementos complexos contêm estruturas encaixadas. Examinar-se-ão os complementos e suas particularidades nas próximas seções.

Além do sufixo categorial, há ainda outros fatores importantes a serem levados em conta além da semelhança formal na expressão de tipos de entidade diferentes: as características morfológicas de uma língua e fatores comunicativos. Em relação ao primeiro, é relevante considerar se uma língua possui um repertório rico em morfemas apropriados para que determinadas categorias gramaticais sejam nominalizadas ou não. Um exemplo interessante é o sufixo ‘-bilidade’ para modalidade de capacidade (30). Outras possibilidades são: a língua favorece a expressão da mesma categoria gramatical em termos analíticos, ressaltando a modalidade por NLZ (31), ou ainda interessa salientar a agentividade em uma estrutura de voz ativa (32). Por fim, também são importantes razões comunicativas (saliência, ênfase etc.) e suas repercussões, no caso de optar por uma ou outra estratégia.

(30) Muitos executivos perguntam-se sobre o real valor e a aplicabilidade dessa tal "gerência de projetos" em suas empresas. (VE-EI-02)

(31) Com a possibilidade de aplicar os recursos do Fundo de Garantia nas ações ON da Petrobras, o trabalhador que optou por esse investimento está no topo do ranking. (VE-27-11)

(32) O site considera como site de investimento qualquer endereço por onde o cliente pode aplicar on-line em fundos, ações e títulos. (VE-26-10)

Em termos gerais, os dois nominais sublinhados em (30) e (31), ‘a aplicabilidade de’ e ‘a possibilidade de aplicar’, podem ser considerados, respectivamente, como expressão sintética e analítica da mesma categoria de modalidade. Também ‘pode aplicar’ (ou melhor, a diátese ‘pode ser aplicado’), em (32), expressa um valor modal semelhante, embora de forma verbal. Os dois primeiros são formas nominais com núcleo em N e seus complementos, sendo que, em (30), há dois Ns para serem referenciais (‘aplicabilidade’ e ‘gerência de projetos’) e, em (31), a noção de ‘possível’ (modalidade epistêmica) é destacada. Uma vez que os complementos apresentam estruturas diferentes, com presença de traços verbais em (31), há de se falar também em graus de nominalidade. Isso será tema das próximas seções.

Ainda sobre a semelhança formal vista em (28) e (29), observa-se, de fato, uma estreita relação entre N e nominal, já que os nominais tendem à lexicalização, sobretudo quando são expressos em uma única palavra (veja ‘aplicações’ em (28)). Isso pode ser constatado nas UTs do discurso especializado, que são tipicamente constituídas por expressões nominais. A alta produtividade e a informatividade podem ser explicadas por instanciação, especificação e condensação lingüística, características dos nominais no nível lingüístico ‘sintagma’. As especificações de um núcleo nominal básico que objetivam situar o termo na escala de termo mais básico ou mais específico podem ser ‘incorporadas’ por lexicalização, embora mais dificilmente por fusão no nível de ‘palavra’. É a união semântica dos componentes lingüísticos, seja em torno do tipo de entidade, seja em torno do conceito, que promove a completa ou parcial terminologização de uma UT, aproximando-a a um nominal, ou seja, ao nível de uma estrutura sintagmática.