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ESTRUTURAL E A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA FUNÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL

4. ANÁLISE DOS DADOS

4.1 Das representações da violência

Quando a discussão é derramada no âmbito do sistema prisional, é interessante observar como algumas coisas não são ditas; outras, sequer são nomeadas. Ao mesmo tempo em que são corriqueiramente explícitas, tomam outros nomes, outras formas, outras representações quando chamadas conceitualmente. Informações conflitantes jorram aos montes. Com o fenômeno da violência, este jogo de papéis não é diferente. Deleuze (1988), ao traçar a trajetória de Foucault como arquivista, vem citar a raridade do enunciado. Especialmente caracterizados na contradição e na abstração, os enunciados se denunciam nas lacunas, se opondo às próprias proposições, àquilo que é dito de forma literal. Neste ambiente desagradável e agressivo em que se configura a prisão, o não-dito faz emergir aquilo que é enunciado.

A violência que se expõe nas falas é marcadamente não dita, não nomeada. Ainda que não haja certeza suficiente para afirmar se o detento pretende esconder a violência que ali acontece (por pressão do sistema) ou mesmo se não entende aquilo como violência, um ponto é claro quando nos pautamos no fundamento da existência de uma característica estrutural da violência. Minayo (1994) conceitua o fenômeno da violência estrutural, e cabe constatar que esta faceta da violência

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é de fundamental importância para compreender as relações que ali se configuram; afinal, a violência estrutural é tida como a violência que é naturalizada (no sentido de ser tomada como a ordem natural das coisas). Justamente por ser naturalizada, não é encarada como violência; se cobre com um véu de normalidade. Consideramos exemplar a frase proferida por Alex, quando perguntado a ele sobre o que lhe vem à mente quando lhe é dito a palavra

violência: "[...] eu, até hoje, pra dizer a verdade, não vi nenhum tipo de violência

assim, no... a gente assiste bastante coisa na televisão. Mas aqui dentro, tranquilo. Né?". Alex não nomeia a violência. Mas ela está constantemente presente nas suas narrativas. Esta observação configura-se como um firme ponto de partida para a análise da violência neste contexto, servindo como base e identificando seus próprios pontos de apoio; afinal, o dito (como presença de uma não-violência) dança com o não-dito (violências) durante a integralidade do discurso, fazendo com que os entendimentos fiquem apoiados um no outro, coexistindo para existir.

Um dos pilares da escancarada faceta da violência estrutural se denuncia logo ao início de cada entrevista. Havia uma espécie de necessidade de afirmação sobre como não haviam sofrido agressões físicas ao entrar no presídio. Tanto que na fala de Alex, ao ser questionado sobre como havia sido sua chegada no presídio, dispara: "[...] normal; cheguei, fui bem recebido, não apanhei nem nada, tranquilo. Tratado como uma pessoa normal, na verdade. Não sofri nenhum tipo de agressão aqui dentro, né!". Josef também, sempre trazendo constantes afirmações sobre como tudo é bom e está tudo bem, traz a seguinte fala: "- Mas graças a Deus não tenho queixa de nada, né. Não me fizeram nada, não me bateram, nada... processo tudo de boa". A violência "não existe" (não é nomeada); entretanto, faz-se questão de afirmar sua inexistência e sobre como não sofrem com ela, mesmo que ela (como palavra) sequer tenha sido citada na pergunta ou em parte anterior da entrevista. A contradição é clara e necessária. Para tanto, remontaremos aqui à fala de Silveira (2013), quando cita que o sistema prisional, mesmo que proposto para fins de reeducação, tem sido articulado para infligir o temor do castigo no corpo do condenado. Suas condições claramente antipedagógicas criam uma dinâmica meramente disciplinatória e mecânica.

Bem é esperado que num determinado momento o condenado se depare com esta situação de contradição; a violência (especialmente física) é presente, é observável. Mas, bem como colocado por Josef, "[...] violência é pior... é coisa ruim, né. Violência é coisa ruim. Eu já nem, nem... nem posso pensar uma coisa, violência. Mas também, isso aí é coisa do capeta, né...". A representação explícita e espontânea da violência como "coisa do capeta" faz considerável sentido quando relacionamos que o condenado se encontra hoje ali por ter, justamente, cometido uma violação. Mas, acima disso, o fato de "poder nem pensar" novamente grita: aqui isso não se nomeia.

199 Fazendo referência à fala de Assis (2007) acerca da constatação de violências cometidas pelos agentes, é imprescindível apontar a necessidade de incerteza de diagnosticar se existe uma pretensão de que esta violência seja encoberta/não dita (com ou sem pressão sistêmica), ou se o que acontece é de fato fruto de desconhecimento da característica que configura determinado ato como violência. De fato, não parece haver caminho de mensuração para esta problemática (inclusive considerando que as duas características não necessariamente devem existir sozinhas para atuar). Entretanto, observa-se com clareza na fala de Josef quando este está a discorrer sobre o respeito que deve ser exercido com seus colegas de cela e de prisão. Logo, o jogo se estende aos agentes: "É que nem nós com os agente, né. Os agente, nós tem que respeitar eles se não... eles pegam a gente, né... vai saber o que acontece, né, mano". Logo em seguida, quando questionado se já teria ouvido histórias sobre detentos que não respeitam os agentes, recua: "Não, isso aí eu nunca ouvi". A fala de Josef é bastante velada, de certa forma. Há um certo medo ou receio do agente, mas não explicita nada além do "pegam a gente". Insere-se aqui o questionamento: de onde verte este medo da punição reproduzido por Josef? O discurso de Alex incorre de forma mais concreta, vindo a acrescentar à análise: "[...] eu nunca levei um tapa, levei nem um xingão aqui dentro. Eu. Mas já vi gente levar xingão, por que não obedece, daí". Quando Alex evoca o tapa, esta fala se articula com diversos outros fragmentos da violência que emergem nos discursos; bem como a já citada fala de Josef: "[...] não me bateram, nada...", se referindo ao momento em que ingressou na prisão. De onde nasce essa expectativa de violência que ali se expõe?

A violência legitimada do sistema não se estende apenas pelas vias físicas. O ambiente evidentemente tem hierarquias muito concretas, especialmente quando se fala da relação preso-agente. Num determinado momento, Josef traz, ao ser questionado sobre sua imagem diante do agente, o seguinte fragmento: "[...] eu peço alguma coisa pros agente, e eles atendem a gente, né. Tipo, um remédio, um kit higiene... eles já traz tudo pra gente. Agora, se não vão com a cara do cara, daí não levam mesmo, né". Enquanto a fala explícita parece exaltar um bom relacionamento, deve ser nítido o ponto de que um remédio ou um kit

higiene se configuram como necessidade básica. Em sequência, ele traz que há

situações em que esses itens não são disponibilizados. Na sequência, quando o questiono sobre o "não vão com a cara", Josef traz que seria o "fuziqueiro"; aquele que perturba a ordem, que não demonstra um bom comportamento. E, talvez este seja um dos pontos mais importantes desta análise, que ainda virá a ser um aspecto abordado com maior profundidade na dimensão do castigo: o mau comportamento é respondido com o tratamento abaixo do básico; com a punição escancarada. Já o bom comportamento é tratado com a não-punição. Isso fica explícito também quando, no momento em que é questionado sobre sua imagem diante do agente, Alex traz a seguinte linha de pensamento: “- Eu, apesar de não ter levado nenhum tipo de agressão ali, ser xingado assim... eu sei lá. Acho que na cabeça deles, preso é bandido, né? Preso. Não sei não se acreditam em ressocialização, que as pessoas podem mudar ...”.

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Logo de início, já se ateve a afirmar sobre a ausência de agressão. Em seguida, ocorre uma espécie de fuga do discurso instituído; um questionamento que é destoante em relação à ordem vigente, mas que logo é percebido dentro da própria fala e reprimido pelo próprio recluso, fazendo com que o discurso volte à sintonia com a estrutura instituída. O questionamento acerca da crença da ressocialização ameaça o poder instituído, pois é visto que há uma intencionalidade de punição retributivista ali, fazendo claro contraponto a uma corrente utilitarista (STRUCHINER; CHRISMANN, 2012), sendo esta a objetivada regente do sistema prisional brasileiro; Alex aqui cria uma incerteza, considerando que há a possibilidade de estar sendo punido por uma condição de causa e efeito (crime e punição), e não para que se torne um sujeito reintegrado à sociedade, pois é visto que as condições para a obtenção deste objetivo não estão claras ou mesmo dispostas. O questionamento que vem em seguida novamente indaga uma ordem instituída quando Alex pontua: "[...] ser uma pessoa normal. Então, por que não tratar a gente como qualquer um?". Entretanto, como já foi citado acima, Alex traz logo ao início da entrevista sobre como teria sido sua chegada ao presídio:

"[...] fui bem recebido, não apanhei nem nada, tranquilo. Tratado como, uma pessoa normal, na verdade". Neste momento inicial, quando o questiono sobre o que caracterizaria uma pessoa normal, ele traz: "- Bem tratado. Tipo assim, de não sofrer agressão, né? Ameaça, ou ser rebaixado, menos que os outros". Esta contradição que emerge quase que nas entrelinhas de Alex ("Então, por que não tratar a gente como qualquer um?") denuncia o movimento supracitado de fuga do discurso instituído, uma vez que o discurso em sua integralidade pende à defesa do sistema, mesmo este tendo seus empecilhos. Quando coloco em questão este fenômeno de "fuga do discurso instituído" me refiro ao movimento que acontece quando, em determinados momentos, nunca iniciais ou finais, mas sempre postos num ponto em que há confiança suficiente depositada no entrevistador, emerge rapidamente um ponto destoante no discurso. Logo na sequência, ele não é necessariamente negado, mas claramente posto em contradição, sobreposto pelo discurso instituído.

O movimento descrito acima, de uma fuga do discurso instituído, aparece significativamente durante as entrevistas. Entretanto, ele ocorre com maior clareza quando o detento se refere ao sistema e aos agentes. Quando está relacionado dos presos aos presos, o discurso ainda porta restrições, mas não tão claras ou inquebráveis. Quando citamos que ainda existem barreiras, isto firma- se em diversas passagens observadas nos dados coletados. Uma delas se encontra no discurso de Ródion, quando indagado acerca do relacionamento entre os presos: "- Normal, se entendemo... não resolve brigar muito... é bom, né? É bom". Quando Ródion afirma que não acontece muito, fica implícito algum movimento. Na sequência, quando pergunto sobre os atritos entre os agentes e os detentos, o discurso é amenizado, com a seguinte fala: "Às vezes eles se estranham, mas não

201 de se agredir. Só se olham assim, mas passa", voltando a encobrir o assunto que estava sendo descoberto.

Em relação à violência entre os detentos, o discurso que mais explicita este movimento é o de Alex: "- Da minha parte, nunca tive problema, né. Tô há dois anos aí, nunca briguei com ninguém, apesar de ser um lugar onde todo mundo é meio neurótico, né? Estressado aí, longe de tudo, né?". O ambiente ali descrito parece propiciar o conflito. Esta premissa também se apóia na seguinte frase de Alex, na mesma resposta: "- Sempre, entre nós fazemos de tudo pra dar risada e tentar não se incomodar com nada, não se estressar um com o outro". O contraponto vem na resposta seguinte, ao se referir aos conflitos dos outros: "- Daí acontece às vezes de deixar subir pra cabeça e assim... Se estressar com nada, né? Que daí acaba. Não tem pra onde correr, não tem, né... Acabam partindo pra agressão". Aqui, fica clara a existência de uma violência que circula entre os presos. O constante ambiente de desconforto e estresse propicia, segundo a fala de Alex, a propagação da violência; não difere, também, das constatações colocadas acerca das condições do cárcere, colocadas por Assis (2007). Alex inclusive lista alguns motivos para a condição de estopim, esclarecendo a questão do ambiente: “ - [...] das vez é 'ah, não vem visita', ou também aconteceu algum problema com a família, e a pessoa quer ficar mais quieta. Daí tem uma pessoa que tá mais acesa, e fica provocando, mas tem umas horas que você só quer ficar quieto.”

Com teor de continuidade, finda-se aqui com a fala de Alex a análise da violência para dar início à análise da representação da punição, tendo em vista que uma não se desvencilha da outra. Julga-se que este movimento é interessante para a compreensão do fenômeno descrito nos dados coletados pois a característica de continuidade se dá tanto no conceito da representação social quanto no da análise de discurso. A representação social, conforme Jodelet (1993), se configura tanto como produto quanto como processo. O método de análise de discurso, não se distanciando, também considera que havendo um posicionamento perante o mundo, haverá uma constante negociação das identidades sociais, sendo que o sujeito vivencia e o pretende ao mesmo tempo. (SPINK, 1994).

4.2 Das representações do castigo

O segundo movimento de análise se firma, em dimensão maior, no fenômeno da punição. Este capítulo, mediador entre os capítulos da violência e do sistema prisional, se assemelha muito com um laço que se estende entre estes dois conceitos, e reiterará a observação montada sobre o caráter contínuo e indissociável das três dimensões de análise aqui postas. O castigo é, de acordo