• Nenhum resultado encontrado

NATUREZA JURÍDICA E EFICÁCIA VERTICAL DO DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL

PÚBLICA: UM SISTEMA DE INFORMAÇÃO INOVADOR PARA O AVANÇO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA

3. NATUREZA JURÍDICA E EFICÁCIA VERTICAL DO DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL

Delineado esse breve panorama doutrinário acerca dos elementos que caracterizam os direitos fundamentais, bem como sobre a existência de teorias que os subdividem em direitos formalmente fundamentais e direitos materialmente fundamentais, cumpre retornar ao problema inicial deste estudo, que é verificar se há na ordem constitucional brasileira um direito à segurança pessoal e qual sua extensão.

Nesse mister, cumpre realçar, de plano, o que dispõe o artigo 5.º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]”.

A primeira indagação que surge da leitura desse enunciado normativo radica na acepção do termo “segurança”, isto é, se a referência é à segurança jurídica, segurança social, segurança pessoal ou de alguma outra espécie. A resposta, quer nos crer, deve ser obtida a partir da interpretação sistemática, não só do catálogo elencado nos incisos do artigo 5º, mas de todo o bloco de constitucionalidade.

Nessa linha de raciocínio, constata-se que há diversos incisos que oferecem proteção à integridade física e psíquica, à liberdade e ao patrimônio das pessoas, dentre os quais podem ser destacados: III – proibição de tortura e tratamento desumano e degradante; XV – livre locomoção e permanência em tempo de paz; XXII – direito de propriedade; XXX – direito de herança; XLIX - respeito à integridade física e moral do preso. Há também incisos que impõem a tutela penal aos direitos fundamentais, como os seguintes: XLI – punição para discriminação atentatória aos direitos fundamentais; XLIII – tratamento penal rigoroso para crimes hediondos e equiparados; XLVI – imposição de penas privativas de liberdade.

Vê-se que os direitos à vida, à liberdade e à propriedade, cuja garantia é estabelecida no caput do artigo 5.º da CRFB, são valores tutelados por meio de disposições específicas nos incisos suso relacionados, juntamente com a

83 incolumidade física e psicológica da pessoa. No que atine à liberdade, é inequívoco que envolve todas as suas nuances, ou seja, não só a liberdade de locomoção, mas de manifestação do pensamento, de exercício profissional, de orientação política, ideológica e sexual (orientação e exercício), dentre outras. A interligação desses valores, cuja proteção é preconizada constitucionalmente, confirma e existência de um direito fundamental à segurança pessoal, que pode ser definido como o direito a não sofrer violação da vida, da incolumidade física e psicológica, do patrimônio e da liberdade em qualquer de suas acepções. Essa necessária interpretação sistemática permite afirmar, portanto, que o direito à segurança pessoal se encontra positivado no artigo 5.º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, de modo a estar perfeitamente demarcado espaço e temporalmente em nosso Estado Democrático de Direito.

No prisma das teorias que fazem distinção entre direitos formalmente e materialmente fundamentais, nos parece inequívoco que tal direito se amolda a ambas as classificações. No aspecto formal, em decorrência da expressa normatividade acima referida. No aspecto material porque, quer nos crer, trata- se de um direito intimamente ligado à dignidade humana, a qual pressupõe a tranquilidade do indivíduo com relação ao respeito à sua incolumidade pessoal, física e psíquica, a liberdade para exercer suas escolhas nos mais variados papeis que pode desempenhar na sociedade e o pleno usufruto das faculdades inerentes aos direitos sobre o patrimônio que lograr amealhar.

Não há como negar que a dignidade da pessoa humana é aviltada numa sociedade em que o Estado não adote medidas efetivas para coibir atos que importem a eliminação da vida do homem, lesão à sua integridade corporal e psicológica, violação de seu patrimônio ou interdição de sua liberdade de fazer escolhas políticas e manifestá-las, de assumir dada orientação sexual e exercitá- la na forma e oportunidades que escolher (respeitado, logicamente, idêntico direito do semelhante), enfim, que não proteja a liberdade individual do cidadão em qualquer de suas facetas. Todos os atos perpetrados por agente do Estado ou por particular que impliquem embaraço a alguma dessas faculdades de seu semelhante é inexoravelmente uma violação da dignidade humana, a qual se vincula, axiologicamente, portanto, à segurança pessoal do indivíduo.

Nessa concepção, temos que por força de seu conteúdo axiológico, o direito à segurança pessoal sequer dependeria de expressa inscrição no artigo 5.º da CRFB ou de ser contemplado em tratado internacional a que o país tenha aderido, para ser entendido como um direito fundamental, sobretudo em face da expansividade permitida pela cláusula de abertura inserta no § 2.º daquele dispositivo, a permitir a exegese de que se trata de um direito que decorre da principiologia adotada em nossa lei fundamental, verdadeiro corolário da dignidade humana.

84

Sob outro prisma, destaca-se que o direito à segurança pessoal é estatuído expressamente na Declaração Universal dos Direitos Humanos da UNESCO, que prevê em seu artigo 3º que “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. De igual modo, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, incorporado à ordem jurídica interna pelo Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992, enuncia que “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais” (item 9.1), disposição que também é repetida na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) em seu item 7.1 (introduzida em nosso ordenamento pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992). A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, por sua vez, estatui que “Todo indivíduo tem direito à liberdade e à segurança de sua pessoa” (Artigo 6.º).

Esse reconhecimento no plano internacional, a conferir-lhe também o

status de direito humano, confirma que o direito à segurança pessoal, qualquer

que seja o ângulo de análise, alcança a hierarquia de direito fundamental, porquanto, além de normatizado na Constituição da República Federativa do Brasil, é umbilicalmente vinculado à dignidade humana e amplamente reconhecido pela comunidade internacional.

Enquanto direito fundamental, o direito à segurança pessoal possui diversos atributos. Em relação às funções dos direitos fundamentais, uma das teorias mais difundidas e aceitas é a clássica teoria dos quatro status, desenvolvida por Georg Jellinek. Bernardo Gonçalves Fernandes, com notável poder de síntese, assim os explicita:

a) O status passivo ou subjectionis é aquele em que o indivíduo está subordinado aos poderes estatais. Nesses termos ele diz respeito a um conjunto de deveres do indivíduo frente ao Estado. Com isso, o Estado juridicamente vincula os indivíduos por meio de ordenações, mandamentos e proibições.

b) O status negativo ou libertatis é aquele em que o indivíduo tem o direito de exigir do estado uma abstenção. Certo é que o indivíduo deve ter uma esfera de autonomia e liberdade imune à intervenção ou interferência estatal. Nesse sentido, o indivíduo desfruta de um poder jurídico circunscrito (delimitado) em que o Estado não pode interferir, exceto, obviamente, se for para garantir o próprio direito de autonomia privada do indivíduo [...].

c) O status positivo ou civitatis é aquele em que o indivíduo tem o direito de exigir do Estado o cumprimento de determinadas prestações positivas que visem a satisfação de necessidades. Nesses termos, estamos diante do que chamamos de direitos de cunho positivo, ou seja, direitos que em algumas situações o indivíduo pode exigir do Estado uma prestação, ou seja, que atue em seu favor.

d) O status ativo ou activus é aquele em que o indivíduo tem a possibilidade de participar de forma ativa na formação da vontade política do Estado, ou seja, participar como membro da comunidade política na condição de cidadão ativo, exercendo, por exemplo, o direito de voto (FERNANDES, 2016, p. 327).

85 A polivalência do âmbito de proteção dos direitos fundamentais é muito bem trabalhada por José Carlos Vieira de Andrade, quando realça que “são frequentemente múltiplas as faculdades incluídas num direito constitucionalmente consagrado, faculdades que têm objeto e conteúdo distintos, que são oponíveis a destinatários diferentes, determinam deveres de variado tipo e que podem ter até titulares diversos” (ANDRADE, 2016, p. 162). Nessa linha de raciocínio, o professor luso assinala que um mesmo direito fundamental pode atribuir poderes de exigir do Estado uma abstenção ou uma prestação positiva – jurídica ou material – e também autorizar intervenções na esfera jurídica alheia, gerando a outrem deveres de abstenção ou não intromissão, deveres de ação e prestação, de tolerância ou sujeições (ANDRADE, 2016).

Uma dimensão similar do direito fundamental é denominada por Alexy de “Direitos à Proteção”, sobre os quais discorre:

Por “direitos à proteção” devem ser aqui entendidos os direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja contra intervenções de terceiros. Direitos a proteção podem ter os mais diferentes objetos. Desde a proteção contra homicídios na forma mais tradicional, até a proteção contra os perigos do uso pacífico da energia nuclear. Não são apenas a vida e a saúde os bens passíveis de serem protegidos, mas tudo aquilo que seja digno de proteção a partir do ponto de vista dos direitos fundamentais: por exemplo, a dignidade, a liberdade, a família e a propriedade. Não menos diversificadas são as possíveis formas de proteção. Elas abarcam, por exemplo, a proteção por meio de normas de direito penal, por meio de normas de responsabilidade civil, por meio de normas de direito processual, por meio de atos administrativos e por meio de ações fáticas (ALEXY, 2012, p. 450).

Daniel Sarmento, na obra que trata da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, encampa esse entendimento ao defender que essa categoria de direitos deve também ser assimilada na ótica de direitos à proteção, conforme argumenta:

Entende a mais autorizada doutrina que do reconhecimento dos deveres de proteção é possível extrair direitos subjetivos individuais à proteção, oponíveis em face do Estado, que terá a obrigação de, através de providências normativas, administrativas e materiais, salvaguardar os indivíduos de danos e lesões que possam sofrer em razão da atuação de terceiros. Portanto, esses direitos à proteção constituem direitos prestacionais lato sensu, já que envolvem uma atividade ativa por parte dos Poderes Públicos e não uma simples abstenção. Por isso, todas as dificuldades teóricas e práticas concernentes à tutela dos direitos de caráter prestacional (administração da escassez, reserva do possível etc.), também aqui se aplicam (SARMENTO, 2004, p. 161/162).

86

Em razão do status positivo dos direitos fundamentais e dos denominados “direitos à proteção” que eles conferem ao seu titular, no sentido de obter intervenções ativas do Estado para garanti-los, mediante prestações, e proteção ante atos de terceiros, é evidente que o direito fundamental à segurança pessoal estabelece um dever do Estado a prestar a segurança pública. Com efeito, não há como se conceber que o Estado ofereça proteção à vida, integridade física e psíquica, liberdade e patrimônio das pessoas senão através de um sistema de segurança pública, pois, como bem exemplifica Vieira de Andrade, “mesmo num direito aparentemente “simples” como o direito à integridade física, podem ver- se, para além da faculdade de exigir que o Estado se abstenha de comportamentos que provoquem a morte, a faculdade de exigir do Estado a proibição de atos de terceiros violadores do direito e a proteção efetiva e positiva (preventiva e repressiva) contra essas violações (ANDRADE, 2016, p. 164/165).

Desse modo se conclui que o direito à segurança pessoal preconizado no

caput do artigo 5.º da CRFB corresponde ao dever do Estado de prestar segurança

pública, assim entendido o sistema constituído por órgãos diversos que atuem no sentido de prevenir e reprimir violações àqueles direitos. A Constituição Federal inclusive cuidou de organizá-lo no artigo 144:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Não se pode refutar que o termo “segurança” alcança ainda outras significações, como a segurança jurídica, o que fica claro na medida em que o catálogo garante a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, e à coisa julgada (inciso XXXVI), à irretroatividade da lei (inciso XL), ao juiz natural (incisos XXXVII e LIII), o devido processo legal (inciso LIV), contraditório e ampla defesa (inciso LV) e a inadmissibilidade de provas ilícitas (inciso LVI). Pode ser interpretado ainda que abrange a segurança social, lastreada no tripé saúde-previdência-assistência social, cuja organização é dada a partir do artigo 194. Porém, não é objetivo deste artigo investigar tais concepções, mas sim evidenciar que o a segurança pessoal é objeto da previsão do caput do artigo 5.º da CRFB.

Na qualidade de direito fundamental, o direito à segurança pessoal é cláusula pétrea na ordem constitucional da República Federativa do Brasil, por força do disposto no artigo 60, § 4,º. Em consequência, revestir-se-ia de inconstitucionalidade qualquer ação que pudesse afetar a essência do sistema de

87 segurança pública a que está correlacionado, como a extinção de organismos responsáveis pelo policiamento ostensivo ou pela apuração de infrações penais.

Esse direito fundamental deve ser assegurado mediante um sistema estatal organizado, formado por diversos órgãos estruturados e com atribuições próprias, voltados à proteção dos valores que lhes são inerentes, seja no aspecto de adotar medidas preventivas a qualquer lesão, seja no de apurar lesões ocorridas para viabilizar que o Poder Judiciário seja provocado a impor sanções legalmente previstas, para desestimular a reprodução de fatos idênticos. Eis aí a eficácia vertical do direito fundamental à segurança pessoal.

4. EFICÁCIA HORIZONTAL DO DIREITO FUNDAMENTAL À