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CAPÍTULO II GESTÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA

2.4 Antropocentrismo x Biocentrismo (ou radicalização da visão

Numa constatação diferenciada, pode-se afirmar que a complexidade das relações sociais, em certos campos, como o ambiental, vem exigindo a transcendência de marcos teóricos vinculados a concepções lineares e reducionistas.

A análise de temas vinculados ao meio ambiente, como regra, não mais se sustenta diante de uma visão antropocêntrica, pois o simples benefício atual e imediato do homem é insuficiente para justificar o risco de desequilíbrios ambientais para todas as formas de vida e para as futuras gerações. Mister se faz uma visão integralista (holística) dessas questões, atualmente amparada na teoria da complexidade.

Os movimentos mapeados acima, relativos à necessidade de maior integração e participação na conformação da questão ambiental, apontam de forma bastante sólida para uma alteração das bases que dão fundamento à relação entre seres humanos e biosfera.

Partindo-se para uma crítica epistemológica da abordagem tradicional da realidade, vê-se a necessidade de adoção de uma perspectiva aberta, conjuntiva e plural de enfrentamento das questões que surgem aos olhos dos pesquisadores, a qual instiga à superação do paradigma da modernidade, vinculado ao funcionamento dos modelos produtivistas (FLORIANI & KNECHTEL, 2003:V).

As crises sócio-ambientais da modernidade delineiam os contornos da sociedade de risco50, acendendo o alerta para uma série de valores e conceitos que permaneciam inquestionados, como o desenvolvimento e o progresso (FLORIANI & KNECHTEL, 2003:13).

Sob esse enfoque, é defensável a assertiva no sentido de que se faz mais adequada, neste momento histórico, a adoção de uma compreensão holística e autônoma do meio ambiente, determinante de um tratamento das partes a partir do todo, além da assunção de um compromisso ético de não vilipendiar as bases da vida (BENJAMIN, 2007:67). No entanto, pode-se defender que este pacto não teria como base os direitos das futuras gerações, como afirma Benjamin (2007:67) – na defesa de uma visão antropocêntrica mitigada –, mas sim a própria manutenção e perpetuação indefinida da vida em todas as suas formas.

E decorre desta concepção que não há sentido em se discutir a vida e a matéria de forma isolada dos modelos interpretativos emanados dos sistemas sócio-culturais (FLORIANI & KNECHTEL, 2003:16). A racionalidade no

50 “estágio da modernidade no qual começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então pelo

modelo econômico da sociedade industrial.” (LEITE, 2007:131). Representa o esgotamento do

modelo de produção desenvolvido pelo capitalismo industrial, marcado pelo iminente risco de ocorrência de situações problemáticas de grande porte, especialmente de catástrofes ambientais. No entanto, os riscos não vêm acompanhados de políticas de gestão adequadas, dando ensejo à consolidação do fenômeno denominado “irresponsabilidade organizada” (LEITE, 2007:132).

campo ambiental supera o mero olhar técnico e disciplinar, e tem o potencial de atrair noções oriundas de outros ramos do conhecimento em rumo a uma compreensão multidisciplinar (LEITE, 2007:131).

Dentro desta orientação ligada à complexidade e multidisciplinaridade no enfrentamento da pesquisa ambiental, buscando suporte no campo da história, o desvendamento dos processos de longa duração da humanidade recebeu a adição da visão das “formas da terra” (BRAUDEL, 1972) como elemento quase fora do tempo, quão importante, contemplador e base das estruturas onde dinamicamente se desencadeiam as conjunturas.

O momento da vivência humana exige consideração da relevância dos fatores ligados ao meio ambiente no curso dos acontecimentos. Esse posicionamento toma corpo na sustentação dos estudiosos e cientistas que defendem a inevitável ampliação do objeto dos estudos da história, no caminho de superação da simples história dos Estados Nacionais e da sociedade civil.

A sensibilidade de uma parte dos estudiosos da história começa a gerar reflexos em diversos outros campos do conhecimento, já que muitos dos processos estudados pelas ciências em geral superam os limites do Estado, em virtude do que é necessária a ampliação do foco de sua visão para que passe a considerar nas suas investidas os dilemas influenciados pelas peculiaridades do ambiente onde se passa a realidade (WORSTER, 1991). O planeta em que vivemos e os efeitos que lhe causamos também merecem ser considerados como parte da história e como elemento de influência para as ciências sociais, naturais e humanas de forma geral. Mesmo porque, a cultura humana constitui “uma pequena frase ao fim de uma nota de rodapé na última página do longo compêndio da vida do planeta”, fato para o qual por muito tempo não se atentaram as ciências sociais (DRUMMOND, 1991:178).

Nesta medida, foi necessário aos cientistas sociais incorporar em seu campo de análise variáveis ambientais, já que de modo geral reconheceu-se que estas têm a potencialidade de influenciar as relações sociais e culturais do homem – bem como de ser influenciadas por ele (DRUMMOND, 1991:180; GALLINI, 2005:5). Trata-se de uma visão de mundo que não está imune às críticas – como as relatadas por Gallini (2005:5), no sentido de consistir em mero modismo, representativo de uma estratégia de mercado para atrair um número maior de

leitores (consumidores) – as quais devem ser consideradas dentro de uma abordagem com base complexa.

Um passo adiante, com supedâneo nos elementos encadeados, pode-se concluir que a vida (humana ou não) deve ser compreendida como uma propriedade do sistema biosfera51 (FLORIANI & KNECHTEL, 2003:17), integrando- se a dimensão natural na articulação dos processos sociais e culturais. Para tanto, deve-se levar em consideração que as dimensões da realidade se encontram inegavelmente interligadas (não se sabe exatamente de que forma), pois, à medida que o ser vivo reage às influências do ambiente, está a alterar seu comportamento futuro (CAPRA, 2002:51).

Desta feita, a produção do conhecimento no campo ambiental, a partir do paradigma da complexidade, deve compreender certos princípios que abarquem as estruturas físicas, biológicas e humanas (antropo-sociais), já que nem o conhecimento científico, nem o espírito humano, dão conta do sentido do real (FLORIANI & KNECHTEL, 2003:25). Por esta forma, a complexidade reconhece que todo conhecimento é incompleto e inacabado e deve incorporar e reconhecer as incertezas e contradições enfrentadas ao longo de sua produção (MORIN, 2000b).

Pois bem, como se vê, o campo ambiental tem proporcionado uma verdadeira mudança das bases pelas quais é produzido o conhecimento científico, estendendo seus efeitos para além da ciência e gerando reflexos no campo social e cultural.

O pensamento hegemônico até então, fundado no paradigma da modernidade – que enxerga o meio ambiente como fonte de expropriação para benefício do homem – dirige-se a uma concepção antropocêntrica da realidade, que concebe o ser humano como senhor e dominador da natureza.

Esta postura reflete uma posição utilitarista do homem em face dos bens ambientais, pela qual se justificam os atos de exploração e destruição dos

51 O conceito de biosfera geralmente difundido, com base nas ciências naturais, diz respeito à “parte

do planeta terra que apresenta possibilidades de sustentar a vida” (GIAVENO & OLIVEIRA, s/d, p.

16). Via de regra, admite-se que a biosfera é compreendida por três biociclos principais, a saber: terra, água doce e água salgada, os quais podem ser divididos em unidades menores denominadas biocoros, estes, por sua vez, formados por unidades ecologicamente uniformes e relativamente estáveis denominadas biomas. (GIAVENO & OLIVEIRA, s/d, p. 16). Num sentido mais amplo, à luz da teoria da complexidade, Silva (s/d, p. 3), com base na obra de Morin, defende que a biosfera pode ser concebida como as milhares de redes que constituem a esfera da vida, onde se encontram a natureza e as sociedades humanas, com suas instituições e construções, correspondendo a todo o conjunto de ecossistemas existentes no planeta Terra. Esta visão se adéqua melhor aos fins deste trabalho de pesquisa, já que se propõe uma visão holística do problema de pesquisa enfrentado.

recursos naturais – sejam eles de origem vegetal, animal ou mineral – em prestígio da produção de riquezas (com foco no modelo do capitalismo industrial), que deveria trazer benefícios sociais para grande parte da população.

Contudo, como destacado algumas linhas acima, essa postura do homem, situado como ente separado da natureza, a qual tem como principal função servir de base à produção de riquezas, acarretou o aprofundamento de uma crise ambiental sem precedentes, decorrente da exploração predatória e insustentável dos recursos ambientais (BENJAMIN, 2007:71).

Os dilemas ambientais que ganharam maior vazão a partir da década de 1970 passaram a influenciar a forma pela qual o homem se vê diante da natureza, o que deu causa à mitigação (não sem dura resistência) da visão estritamente antropocêntrica e economicista.

Como proposta de superação desse ponto de vista, inicia-se um processo de constituição da natureza como sujeito de direitos, cuja vertente mais radical se encontra na Ecologia Profunda (Deep Ecology), que prega o descarte dos princípios humanistas erigidos pela modernidade ocidental (AGUIAR, 2003). Esta proposta é alvo de severas críticas pelos teóricos da modernidade, como aquela no sentido de que a adoção de tal postura significaria um romântico retorno ao animismo pré-moderno.

No campo da ciência jurídica, Antunes (2002:132) faz referência a que a visão biocêntrica, em verdade, contém um fundo de antropocentrismo, pois não nega o papel central do homem em relação aos outros seres vivos, mas apenas ameniza essa centralidade, de acordo com as características culturais de cada sociedade. Isto se dá, na visão de Antunes (2002:170), porque as categorias “natureza” e “meio ambiente” são fruto de processos de construção cultural, fator que não pode ser desconsiderado na estruturação da visão biocêntrica.

Rebate-se a crítica acima ao se apontar que a base teórica do biocentrismo colhe amparo na visão finalística de preservação e conservação da vida em todas as suas formas. E a definição científica de vida, no sentido geralmente indicado pela visão biocêntrica, não corresponde a uma definição cultural, mas biológica, consistentes em “redes de reações moleculares, que produzem os mesmos tipos de moléculas que as integram e, também, limitam o entorno espacial no qual se realizam.” (MATURANA & VARELA, 2007:46).

CAPÍTULO III - AMBIENTE E SOCIEDADE: BACIA HIDROGRÁFICA DO LITORAL