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CAPÍTULO II GESTÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA

2.1 Participação na perspectiva ambiental

2.1.2 Participação na perspectiva da Política de Recursos Hídricos:

Encadeando a sequência de ideias no sentido dos objetivos deste trabalho, retoma-se a questão relativa à participação no campo ambiental, desta vez com vistas às nuances específicas da questão em relação à gestão dos recursos hídricos. A gestão por bacias hidrográficas, numa esfera de descentralização e busca dos usos múltiplos da água, indica que há um grande impulso participativo no que pertine às decisões que envolvem o manejo dos recursos hídricos.

Considerada a multiplicidade das formas contemporâneas de ação coletiva, que intervém em diversos níveis no aparato social (MELUCCI, 2001), têm- se defendido e proclamado – tanto pelos órgãos governamentais e usuários, como por técnicos e pesquisadores, dentre os quais Machado (2005:554) – que o modelo de gestão hídrica adotado na atualidade pelo Brasil (e reproduzido em grande parte no Estado do Paraná) possui caráter pluralista, democrático e participativo, com vistas ao fim de prestigiar os usos múltiplos da água.

Ressalte-se que a concepção adotada pelos sujeitos representativos do poder público com relação à política de recursos hídricos, alinhavada anteriormente, se encontra alinhada com as diretrizes internacionais mais

avançadas, citando-se como exemplo a Diretiva-Quadro nº 60/2000, do Parlamento Europeu e Conselho da União Europeia, a qual especifica, em seus considerando, que

O êxito da presente directiva depende da estreita cooperação e de uma acção coerente a nível comunitário, a nível dos Estados-Membros e a nível local, bem como da informação, consulta e participação do público, inclusivamente dos utentes.

No mesmo sentido, a disposição da legislação espanhola acerca do tema – citada dente outras –, consubstanciada no art. 14, do Real Decreto Legislativo n° 1/2000, nos termos do qual:

El ejercicio de las funciones del Estado, en materia de aguas, se someterá a los siguientes principios: 1. Unidad de gestión, tratamiento integral, economía del agua, desconcentración, descentralización, coordinación, eficacia y participación de los usuarios.

Ainda, o Clean Water Act40 traz disposição similar em sua Seção 102, ‘e’, ao dispor sobre a participação pública no desenvolvimento, revisão e aplicação da legislação sobre recursos hídricos, bem como na definição de padrões e limites de despejo de poluentes nos corpos hídricos, estabelecimento de planos e programas implementados pela EPA41 e pelos Estados, o que deve ser providenciado, encorajado e assistido pelo poder público.

Em outro viés, autores com compreensão distinta suscitam que, na prática, a participação e descentralização na gerência das águas é mero instrumento discursivo que não se consolida no plano de aplicação e execução da norma. Exemplo deste posicionamento é aquele defendido por Caubet (2004), já citado em momento anterior. A lei apenas transfere a outros entes administrativos, através de delegação – com intenção de desabarrotar seus gabinetes – a competência e autoridade para realizar determinados atos (BRANNSTROM, 2002).

O pensamento hegemônico, representado por aqueles que detêm posições calcadas no poder público, tende a manter a situação vigente, ou, no mínimo, inviabilizar o avanço de dinâmicas que possam alterar o estado das coisas. Mesmo diante da instauração de uma nova conjuntura, onde foram inseridos sujeitos, cenários e interesses, continuaram os defensores dos velhos interesses

40 Legislação federal norte-americana sobre recursos hídricos, denominada formalmente de Federal

Water Pollution Control Act (33 U.S.C. 1251 et seq.).

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(apropriação privada dos recursos naturais) a manter seu lugar de hegemonia, haja vista as relações que entabularam no curso da história com os detentores do poder político. O “particularismo das relações pessoais” (VAITSMAN, 2002) se faz bastante enraizado na formação e composição dos órgãos responsáveis pelo gerenciamento do bem ambiental água, o que é um grave fator de exclusão e desigualdade no seu manejo. Os grandes usuários de recursos hídricos possuem fortes e antigos laços que atravessam os novos arranjos institucionais, fazendo com que permaneçam em posição de hegemonia, em detrimento de toda a coletividade, que via de regra se vê preterida (JACOBI, 2002b:38). Ainda neste sentido, as palavras de Veiga (2007:80), para quem

Mesmo com a abertura democrática, a cultura política brasileira ainda permanece arraigada a um processo de dominação das elites que estrategicamente tiram proveito dos processos participativos que visam à democratização das instituições.

Aqui é identificada a primeira grande contradição na tentativa de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, que, de modo geral, ao contrário do que aparenta uma superficial análise das normas pertinentes, desprestigia a democratização e pluralidade participativa conjurada pelos textos legais, em benefício dos interesses de setores dos usuários, apoiando-se no tecnicismo revestido pela nomeclatura “participação responsável”.

Não raro parcela dos interessados, como as populações ribeirinhas e costeiras, não é consultada sobre o manejo e uso da água existente no local onde vive, sob o frágil argumento de que não possui conhecimento suficiente para entender a complexidade técnica das questões envolvidas. Exemplo dessa visão centralizadora e antidemocrática foi explanada pelo representante do CREA-PR no Comitê de Bacia Hidrográfica do Paraná 3, Calil Abumanssur, em entrevista concedida à revista do CREA-PR (Setembro e Outubro de 2007, Ano 10, nº 47, p. 29), dirigida à classe dos engenheiros e arquitetos, ao assinalar que:

As questões técnicas sobre o gerenciamento desses recursos, na maioria das vezes, não são da compreensão de um cidadão comum, daí a importância da participação dos profissionais das áreas tecnológicas. Porque nós temos o conhecimento sobre extração, exploração, proteção e conservação dos recursos naturais, principalmente da água.

Como se denota, essa visão centralizadora está, de forma geral, profundamente arraigada na cultura de nossa sociedade e precisa maior aprofundamento para que sejam superadas as contradições existentes em seu discurso e ampliadas as possibilidades de participação comunitária na gestão das águas.

Vê-se aqui um desvio do foco da busca da igualdade e plena cidadania neste campo, o que encoberta as raízes históricas da desigualdade na sociedade brasileira (COSTA, 2006a). Meras regras de estruturação dos sistemas de tomada de decisão na gestão hídrica não podem ser confundidas com uma gestão democrática de fato, já que servem, na prática, apenas para desestimular a participação com o afastamento do cidadão comum das articulações travadas na esfera pública.

Através da negociação sociotécnica (MACHADO, 2005), os sujeitos envolvidos no manejo das águas, com base em critérios de sustentabilidade, deveriam orientar-se por um estilo de ação dirigido a superar o modelo tecnocrático, subordinado normalmente a interesses econômicos e políticos.

Entretanto, na contramão desta perspectiva, novamente Caubet (2004) expõe consistente argumento que aponta para o fato de que

o viés tecnocrático e a justificação da centralização são corriqueiros, mesmo que os imperativos de participação e descentralização recebam os destaques, puramente retóricos que marcam o texto legal.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a participação democrática e plural só pode ser considerada quando efetivamente os agentes conseguem se fazer representar e ouvir no resultado das deliberações coletivas, mesmo que configurem minorias, situação que não é prestigiada em sua plenitude no atual sistema de gerenciamento de recursos hídricos.

Seguindo esta linha de raciocínio, Veiga (2007:100) defende que a forma de participação prestigiada pela política hídrica se apresenta setorializada e funcional em relação aos interesses do poder público, acarretando a fragmentação da formação cidadã e o enfraquecimento do papel político dos sujeitos sociais.

E o que é primordial para Veiga, no que diz respeito à falta de efetividade da participação social na política hídrica, é a falta de repasse de qualquer recurso estatal para os órgãos gestores (Comitês de Bacia Hidrográfica), restando

repassadas apenas as funções, sem a correspondente contrapartida financeira que daria condições para regular o funcionamento do sistema, já que, mesmo passados mais de dez anos da promulgação da lei respectiva, a Política Nacional de Recursos Hídricos não se encontra implantada em sua plenitude, o que inviabiliza em grande parte a cobrança pelo uso da água. Assim, defende Veiga (2007:110) que

O envolvimento da sociedade civil na gestão das águas não trata apenas da intenção de partilhar o poder decisório criando espaços democráticos, mas concebe as organizações da sociedade e ela própria como parceira na tarefa do Estado que pretende tornar-se mais eficiente com menos custos. Para tanto, transforma o custo financeiro de execução, bem como de controle desta política, em custo social, repassando-o à sociedade que financia não só por meio dos instrumentos da política – como a cobrança, mas por meios próprios dos segmentos que desejam participar da gestão das águas.

Sob o argumento participativo, o Estado brasileiro transfere novamente parte de suas responsabilidades para o mercado (usuários de recursos hídricos) e a sociedade civil, em verdadeira demonstração de atendimento aos ajustes neoliberais prestigiados no âmbito do Consenso de Washington.

Cumpre ainda destacar que o grau de organização social e a existência prévia de situações onde tenha sido exigida a participação dos sujeitos sociais (capital social42) é um fator chave para determinar a qualidade da participação comunitária na política hídrica (VEIGA, 2007:113). Assim, defende-se que o grau de presença de capital social em dado local é fator determinante para

42 Nas palavras de Jacobi (2007:527), “De maneira geral, há um consenso na literatura, de que capital

social refere-se à habilidade que os atores desenvolvem em garantir benefícios através de associação em redes de relações sociais ou outras estruturas sociais sustentadas por confiança recíproca, normas e costumes. O capital social é o elemento que mantém as instituições coesas e as vincula ao cidadão visando à produção do bem comum. (Bordieu, 1980; Coleman, 1988; Ostrom, 1990; Putnam, 1993; Portes, 2000; Uphoff, 2000). Esse conceito reforça a importância (continua)

(continuação) de práticas sociais que valorizam a organização social e a constituição de redes

sociais, enquanto uma dinâmica coordenada e cooperativa entre atores. Além disso, reforça o fenômeno da proximidade social, que permite uma forma de coordenação entre os atores capaz de valorizar o conjunto do espaço em que atuam e, de convertê-lo em base para empreendimentos inovadores. Pode ser visto como um importante instrumento conceitual e prático para a consolidação de políticas públicas e revitalização da sociedade civil e da democracia.” Faz-se importante trazer à

tona as controvérsias existentes acerca da conceituação de capital social, que se encontra em processo de releitura (HIGGINS, 2005) desde sua identificação por Pierre Bourdieu até hoje. Conforme HIGGINS (2005), além de ganhos em eficiência econômica, o capital social deve estimular a participação cidadã para o controle político das instituições públicas, desencadeando processos de redistribuição da riqueza e poder. Propõe-se a superação do conceito adjetivado de tradicionalista de PUTNAM (1995) e das funcionalidades erigidas por COLEMAN (2001), com a ampliação de seu foco para permear “todos aqueles elementos de uma estrutura social que cumprem a função de servir

como recursos para que atores individuais atinjam suas metas e satisfaçam seus interesses"

(HIGGINS, 2005:33). Ressalte-se que este enfoque de re-elaboração e superação dos limites do conceito de capital social vem se tornando cada vez mais incisivo, especialmente nos autores de origem latino-americana, como o próprio HIGGINS (2005) e LECHNER (2002).

definir a efetividade da participação na política pública de gestão das águas. Ou seja, quanto maior a presença do capital social, maior será a sinergia43 e mais rápido se dará o aperfeiçoamento do atuar dos sujeitos sociais na esfera pública para implementação de políticas coerentes e de longo alcance (PEREIRA, 2005).

2.1.3 Participação no Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos: