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1 Constituição Federal de 988

1.2 Gestão de recursos hídricos no Brasil a partir da Constituição

1.2.5 Usuários de recursos hídricos

Foi visto anteriormente que o discurso predominante sobre as políticas públicas de gestão dos recursos hídricos é dirigido a conceber esta atividade como exemplo de integração e participação social dos sujeitos interessados na gestão dos bens públicos.

Os sujeitos envolvidos neste objeto complexo denominado gestão de recursos hídricos são basicamente agentes públicos, membros dos órgãos gestores, usuários, técnicos, organizações da sociedade civil, comunidades localizadas em áreas de interesse hídrico e os consumidores em geral.

Salta aos olhos o fato de o consumidor final não participar, via de regra, como sujeito legitimado a intervir na Política Nacional de Recursos Hídricos, na medida em que não é considerado usuário25 (que são somente aqueles sujeitos à

25 Na forma do art. 14, I, da resolução nº 5/2000, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, são considerados usuários da água e sujeitos à outorga de uso, para fins da Política Nacional de

obtenção de outorga, que captam ou utilizam a água no estado bruto26, como indústrias, geradoras hidrelétricas, distribuidoras de água, empresas de saneamento, agricultores, navegadores, etc.), mesmo tratando-se de quem sofre diretamente maior impacto com os efeitos das posições adotadas no âmbito do sistema, o que confirma uma visão economicista e antidemocrática, a qual exprime mais uma contradição a ser superada no corpo do discurso competente (CHAUÍ, 1990).

Esta conclusão pode ser extraída do comando do art. 2°, VI, e seu § 3°, do Regimento interno do CNRH – que deve ser obedecido no âmbito dos estados federados, em vista da necessidade de observância das normas gerais da União e do princípio constitucional da simetria27 – o qual confirma que são apenas os agentes econômicos, junto com os representantes do poder público, os sujeitos responsáveis pelas deliberações acerca da política de recursos hídricos, bem como por sua gestão e execução (CAUBET, 2004:185).

Na visão de Caubet (2005:185), os consumidores finais da água ficam ocultos atrás das instituições que prestam serviço de abastecimento público de água e esgotamento sanitário – em que pese o uso da água para dessedentação seja considerado prioritário pela Política Nacional de Recursos Hídricos (art. 1°, III, da Lei n° 9433/1997), bem como pela Política de Recursos Hídricos do Paraná (art. 2°, III, da Lei Estadual n° 12726/1999) –, o que representa uma exclusão fundamental e demonstra o obscuro caráter antidemocrático da política pública respectiva e de seu direcionamento economicista.

Sobre este enfoque, aduz Caubet (2004:206), com a lucidez e clareza que lhe são características, que

A pessoa que consome a água, captada na torneira de sua pia, não é consumidora do ponto de vista da legislação específica de recursos hídricos. A lei nunca cita essa pessoa, nem como agente econômico, nem como utilizadora ou usuária da água, nem como consumidora. A pessoa jurídica que capta, trata e distribui a água é um usuário, no sentido da lei e das categorias que ela cria. Quem bebe água da torneira deverá recorrer ao Código de Defesa do Consumidor, se for lesado nos seus interesses: de cliente de uma distribuidora.

Recursos Hídricos, os representantes dos seguintes seguimentos do mercado: abastecimento urbano, inclusive diluição de efluentes urbanos; indústria, captação e diluição de efluentes industriais; irrigação e uso agropecuário; hidroeletricidade; hidroviário; pesca, turismo, lazer e outros usos não consuntivos.

26 Água em estado bruto é aquela encontrada no meio natural, que não recebeu nenhum tipo de tratamento (CAUBET, 2004:165).

27 “É o princípio federativo que exige uma relação simétrica entre os institutos jurídicos da

Com base neste panorama, pode-se chegar à conclusão de que a política hídrica em nosso país continua a prestigiar a apropriação privada de recursos naturais com a transferência do custo para sua recuperação e do ônus da escassez à sociedade, em que pese a moderna legislação que regulamenta o setor e seus anseios de gestão democrática, integrada e participativa.

Cite-se que ao longo do desenvolvimento do presente trabalho de pesquisa foram localizados diversos textos nos quais o termo “usuário” de recursos hídricos foi usado de forma atécnica, com o significado de consumidor de água, como se pode ver, por exemplo, em Pontes & Schramm (2004:1324) e Ribeiro et al. (1999).

No contexto da União Europeia, a Diretiva-Quadro nº 60/2000, do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, em uma visão mais inclusiva e democrática (ao menos formalmente), admite como usuários de recursos hídricos também os consumidores finais e o público em geral, garantindo sua inserção na elaboração e atualização dos planos de gestão de bacia hidrográfica, antes da tomada final de decisão pelo poder público.

Do mesmo modo, foi dimensionado o ordenamento interno da Espanha – Real Decreto Legislativo n° 1/2001 – (com a internalização da norma comunitária), contemplador de todos os usuários de recursos hídricos, “sejam eles agricultores, agentes imobiliários ou usuários domésticos” (ALEDO et al., 2006:4).

Extrai-se a mesma perspectiva do ordenamento norte-americano (Clean Water Act), o qual, em sua Seção 204, ‘5’, reconhece como usuários de recursos hídricos aqueles que se apropriam da água em face de necessidades residenciais, comerciais e industriais. E além de ser considerado usuário de recursos hídricos, com voz ativa dentro da política pública respectiva, o usuário residencial ainda tem proteção legal frente aos prestadores do serviço de distribuição de água potável, por se encontrar na condição de consumidor de água, o que vem regulamentado no Code of Federal Regulations.

Como se vê, com relação aos usuários de recursos hídricos, o Brasil não seguiu as diretrizes mais avançadas até o momento concebidas no plano internacional, as quais incorporam na categoria de usuários os consumidores finais de água. Trata-se de uma discussão não prestigiada pela grande maioria dos estudiosos brasileiros sobre o tema, os quais, via de regra, confundem os conceitos

de usuário e consumidor, que, no plano da técnica jurídica e no contexto da política pública respectiva, não possuem similaridade.

O consumidor, de acordo com a definição do Código de Defesa do Consumidor, é aquele que faz uso de produtos e serviços colocados no mercado pelos fornecedores, bem como aquele exposto às práticas comerciais abusivas concretizadas no mercado28. Dentre os produtos e serviços oferecidos no mercado pelos fornecedores encontram-se os de abastecimento público de água e coleta de esgotos, dos quais boa parte dos cidadãos brasileiros se utiliza.

Já o usuário de recursos hídricos, como acima mencionado, é quem capta água em seu estado bruto, mediante autorização específica (exceto em caso de usos insignificantes definidos pela Lei nº 9433/1997 e pela Resolução nº 52/2009, da SEMA-PR).

Merece consideração neste ponto a questão relativa às “tarifas sociais” (especialmente de água e energia), implementadas como medidas redistributivas para dar acesso a esses serviços públicos às populações menos favorecidas.

Sobre o tema, destaca Tavares (2003:58) que durante o período em que os serviços públicos no Brasil foram prestados em grande parte por empresas estatais, restaram implementados programas para atendimento das pessoas possuidoras de uma condição econômica menos privilegiada (“baixa renda”), como políticas de redistribuição de renda e universalização do acesso aos serviços.

Ocorre que a perda de receita das concessionárias decorrente do custeio destas “tarifas sociais” não é absorvido pelos empreendedores, mas repassado aos cofres públicos, que devem repor o faturamento não auferido pelas respectivas empresas, num sistema de subsídios cruzados (IPEA, 1996:4-16). Desta forma, em última análise, o custeio da energia e água fornecida àquelas pessoas consideradas de “baixa renda” é realizado pelos demais usuários do serviço público.

Assim, denota-se que não é o empreendedor ou o poder público quem custeia a tarifa subsidiada para obtenção dos serviços de abastecimento de água e fornecimento de energia (em que pese a propaganda oficial assim faça parecer), mas sim o cidadão comum. E isto se dá especialmente no Estado do

Paraná, onde tanto a concessionária dos serviços de abastecimento público como a de fornecimento de energia são empresas controladas pelo governo estadual.

E de forma alguma a política redistributiva presente nas tarifas sociais pode ser encarada como compensação financeira às classes menos favorecidas pelo uso da água por parte dos demais agentes da cadeia, já que tais recursos não são aplicados na gestão hídrica e sim transferidos aos seus beneficiários, de modo indireto.

Com base nos elementos identificados, pode-se concluir que as políticas públicas voltadas para os recursos hídricos no local objeto de estudo prestigiam sobremaneira o setor público e os agentes econômicos que integram o mercado, demonstrando que no fundo, apesar do discurso hegemônico de inclusão e participação social, foram protegidos os interesses capitalistas em prejuízo do interesse coletivo.

1.3 Política de Recursos Hídricos do Estado do Paraná: Lei Estadual nº