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1 Constituição Federal de 988

1.2 Gestão de recursos hídricos no Brasil a partir da Constituição

1.2.4 Usos múltiplos com prioridade para a dessedentação

Desde o Código Brasileiro de Águas24, vigente a partir de 1934, já se fazia constar previsão de uso prioritário das águas para o abastecimento das populações (art. 36, § 1º), devendo os aproveitamentos de potencial hidráulico satisfazer exigências referentes às necessidades das populações ribeirinhas, salubridade pública, navegação, irrigação, proteção contra inundações, proteção aos peixes e drenagem (POMPEU, 2007:136). Esse fato demonstra a preocupação de longa data do Estado brasileiro, pelo menos de modo formal, com os usos múltiplos dos recursos hídricos.

A legislação instituidora da Política Nacional de Recursos Hídricos manteve a prioridade do uso da água para dessedentação em situações de escassez (art. 1º, III, da Lei nº 9433/1997), submetendo à outorga os usos da água, a qual é condicionada a um programa de prioridades estabelecido pelo Plano Nacional de Recursos Hídricos, pelos Planos Estaduais e pelos Planos de Bacia Hidrográfica. Ocorre que, enquanto inexistente a aprovação dos referidos planos, o aproveitamento dos potenciais hidráulicos continua submetido à regulação setorial específica, restando definidas pela Resolução nº 34/2004, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos as diretrizes para outorga de uso de água para fins de implantação de barragens.

Neste panorama, para o uso dos recursos hídricos, deve-se primeiro verificar se a disponibilidade deste bem ambiental é suficiente para abastecer a população local e regional (atual e futura), para, posteriormente, direcionar a água para outros usos (CAUBET, 2004:56). Isto implica na necessidade de realização de levantamentos por parte do poder público outorgante, sobre as necessidades de disponibilidade hídrica atuais e futuras da população, antes da destinação das águas para outras modalidades de uso, já que se demonstra lógico

que a prioridade de uso deve ser destinada às necessidades humanas e sobrevivência dos animais (CAUBET, 2004:148).

Alguns autores vão além quanto a este ponto, sustentando que não só os seres humanos devem ser atendidos com a disponibilidade hídrica necessária à sua vida digna, mas também os ecossistemas em geral, proporcionando o atendimento de suas necessidades ambientais (CHRISTOFIDIS, 2002).

Dispõe o texto da Lei nº 9433/1997, em seu art. 1º, III, que “em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e dessedentação de animais”. Do ordenamento se extrai o significado do uso múltiplo das águas, identificado como aquele em que os recursos hídricos devem estar acessíveis a todos os setores interessados em seu uso, dando-se prioridade, em cada bacia hidrográfica, àquele ensejador de maiores benefícios sociais (CARRERA-FERNANDEZ, 2000:812). Aliás, no campo da economia, para além da simples dicção legal, defende-se que os usos múltiplos correspondem à forma de repartição das águas “entre os múltiplos usuários com igualdade de oportunidades, mas de modo que o benefício social líquido seja maximizado” (CARRERA- FERNANDEZ & GARRIDO, 2003:105).

Defende-se, no campo da ciência jurídica, que a “situação de escassez” preconizada pela norma já foi alcança no atual estágio da civilização, tratando-se de uma característica da sociedade pós-industrial (CAUBET, 2004:148). A mesma visão é compartilhada por cientistas do campo da geografia, como Silva (2006b:34), para quem há muitos ecossistemas nos quais as águas são disponíveis em demandas inferiores aos seus usos, inclusive no que se refere à assimilação de resíduos, o que dificulta o seu processo natural de depuração.

No entanto, este entendimento não é compartilhado pelo poder público em âmbito nacional, haja vista que, de acordo com o entendimento da Agência Nacional de Águas (ANA, 2009), a situação de escassez caracteriza-se como exceção, sendo que, via de regra, os diferentes setores usuários de água têm igualdade no direito de acesso aos recursos hídricos.

Já o “consumo humano”, erigido como uso prioritário pela lei, refere-se não somente à dessedentação, incluindo também outras atividades domésticas com cunho de essencialidade, como a higiene pessoal e o preparo de alimentos (CAUBET, 2004:148), as quais têm relação direta com a garantia

fundamental da dignidade humana, prevista no art. 1º, III, da Constituição Federal como fundamento da República Federativa do Brasil.

Na prática, no plano federal, observa-se a visão exteriorizada pela Agência Nacional de Águas (ANA, 2009), para quem “a gestão dos recursos hídricos tem se utilizado da implantação de reservatórios como uma importante ferramenta para o atendimento dos usos múltiplos das águas.” Especialmente na interface com o setor elétrico, a ANA (2009) tem por foco “a expansão da oferta de energia e a operação dos reservatórios, com garantia do uso múltiplo dos recursos hídricos, com o mínimo de prejuízo para a sociedade.”

Como se vê, para o órgão regulador da gestão das águas em nível nacional, a questão dos múltiplos usos das águas pode ser resolvida, em grande parte, com a implantação de reservatórios.

De acordo com o tipo de uso da água (SILVA, 2006a:35), podem os mesmos ser classificados como consuntivos (quando há perda qualitativa ou quantitativa) ou não consuntivos (aquele em que não existem perdas).

No que diz respeito aos usos consuntivos, o concebido como mais importante é o abastecimento humano, assim como a destinação de esgotos (SILVA, 2006b:38).

Destacam-se, também, conforme estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (2000), a agricultura irrigada e os derivados alimentares da pecuária, responsáveis por cerca de 70% da água utilizada no Brasil. De acordo com a mesma pesquisa, a região Sul do país possui a maior área irrigada (1.195.440 ha) e representa a segunda região em quantidade de água consumida pelos cultivos (7.128 m3/ha/ano), encontrando-se atrás apenas da região Nordeste (10.780 m3/ha/ano).

Ainda dentro dos usos consuntivos, um importante contribuinte para a contaminação das águas é o uso industrial, cujos rejeitos normalmente incluem efluentes de alto impacto ambiental (SILVA, 2006b:37).

Com relação aos usos não consuntivos da água, destacam-se as atividades de navegação, mineração, recreação, piscicultura, controle de cheias e geração hidrelétrica (a qual é tratada especificamente em momento posterior, no Capítulo IV). Apesar de não haver consumo da água, tais usos podem causar a indisponibilidade qualitativa e quantitativa do bem ambiental por certo tempo (SILVA, 2006b:44).

Como se vê, a potencialidade conflitiva entre os usos da água é imensa, tanto com relação aos usos consuntivos como aos não consuntivos. Dessa feita, os Comitês de Bacia representam uma importante instância de assentamento dos interesses dos diversos setores de usuários da água e mesmos das comunidades.

Mas também com relação a este fundamento da política hídrica existem posicionamentos que identificam particularidades que por vezes inviabilizam a efetivação dos usos múltiplos da água.

Nesta linha, novamente o professor Caubet (2004:78) observa que, de modo geral, “os problemas de aproveitamento de recursos hídricos constituem assuntos de natureza política e que são resolvidos em petits comitês, infensos a debater com as populações locais.”

Assim também enxerga Silva (2006b:34), que visualiza uma situação de prejudicialidade dos usos múltiplos da água, em decorrência da sua apropriação para fins de uso em processos produtivos, que lhe causam severas alterações na qualidade e quantidade, causando aumento do custo para sua disponibilização na medida necessária.