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3 Relações jurídicas de trato continuado

3.3 Regime jurídico da coisa julgada

3.3.1 Aptidão para formação da coisa julgada

Muitas dúvidas já houve sobre as relações de trato continuado, quando submetidas ao crivo judicial, serem aptas à formação da coisa julgada.536 A polêmica se justificou em virtude da possibilidade de tais decisões virem a sofrer uma “revisão” pelo Poder Judiciário, diante da alteração das circunstâncias fáticas ou jurídicas presentes quando de sua prolação.

A ideia de que tais julgados não eram contemplados pela autoridade da coisa julgada proporcionou até mesmo a edição de uma lei que expressamente aduz que “a decisão judicial sobre alimentos não transita em julgado e pode a qualquer tempo ser revista, em face da modificação da situação financeira dos interessados.”537

Trata-se, porém, de visão ultrapassada, que, pode-se afirmar, já foi abandonada pela doutrina moderna.538 O que muitas vezes confunde o operador do Direito, no particular, é a atípica aptidão de tais julgados produzirem efeitos em relação a fatos jurídicos futuros, diversos daqueles expressamente apreciados pela decisão transitada em julgado.539

Conforme já exposto, para compreender a questão, basta analisar os limites objetivos do julgado, pois a decisão judicial irá disciplinar não só os fatos jurídicos analisados (como sói ocorrer), mas também os fatos jurídicos ocorridos posteriormente que com eles

536 Manifestando-se expressamente pela impossibilidade de formação de coisa julgada: GRECO FILHO,

Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 14. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 247. COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed. Buenos Aires: Julio Cesar Faria, 2004, p. 340.

537 Art. 15 da Lei n. 5.478/1968.

538 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed. Trad. J. Guimarães Menegale. v. 1.

São Paulo: Saraiva, 1965, p. 208. PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo V: arts. 444 a 475. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 194. ARAGÃO, Paulo Cezar. Reflexões sobre as sentenças determinativas. Revista de processo, v. 1, n. 2, p. 159-168; 164, abr./jun. 1976.

539 “Em muitos países, estes casos de alteração nas relações continuativas são compreendidos como efetiva

quebra ou atenuação da coisa julgada. Trata-se de verdadeira mudança da sentença, com atenuação da coisa julgada já operada, ou ainda a atribuição da condição rebus sic stantibus às sentenças ou a alguma delas. A ação de modificação alemã, p.ex., é compreendida como uma quebra de coisa julgada porque a certificação judicial compreende também a prognose judicial sobre como a relação jurídica se desenvolverá no futuro.” (CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: Entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 90).

apresentem uma similitude quanto aos elementos conformadores essenciais. A respeito desses novos fatos, tem-se uma norma jurídica concreta dotada da autoridade da coisa julgada, que definiu algum aspecto das relações jurídicas travadas entre as partes, impedindo a propositura de nova demanda judicial a respeito. Tal decisão passou a desempenhar o papel de norma de conduta, de maneira que todos os fatos futuros que a ela se subsumirem deverão respeitá-la.

A norma jurídica concreta, a contrario sensu, não será aplicável a fatos jurídicos essencialmente distintos daqueles apreciados judicialmente, estando livres, a princípio, de uma regulamentação já identificada.540 Com efeito, não havendo identificação com o suporte fático ou com as circunstâncias jurídicas apreciadas pela decisão transitada em julgado, se estará diante de fatos jurídicos estranhos àqueles que foram objeto da demanda inicial, não podendo, por consequência, ser regulada pelo julgado anterior. Não há a necessária subsunção.541

Assim, tais decisões transitadas em julgadas não podem ser objeto de revisão pelo Judiciário (salvo rescisória), devendo ser aplicada a todos os fatos jurídicos posteriormente formados que apresentem os mesmos contornos fáticos e jurídicos já apreciados. Caso seja positiva essa análise, eventual negativa de aplicar a norma jurídica concreta significará frontal violação à coisa julgada.542

540

Cumpre alertar que a identificação da norma jurídica concreta não é tarefa exclusiva do Poder Judiciário, mas também, principalmente, dos sujeitos da relação jurídica material quando a individualizam, concordando a respeito do Direito vigente e cumprindo suas obrigações de maneira voluntária.

541 “A coisa julgada material se forma sobre a sentença de mérito, mesmo que contenha decisões sobre relações

continuativas. Essa sentença, ‘que aprecia um feito cujo suporte é constituído por relação dessa natureza, atende aos pressupostos do tempo em que foi proferida, sem, entretanto, extinguir a própria relação jurídica, continua sujeita às variações dos seus elementos’ (Porto. Coment. CPC-RT v.6, p. 181). Isto porque esta sentença traz ínsita a cláusula rebus sic stantibus, de sorte que, modificadas as situações fáticas ou jurídicas sobre as quais se formou a anterior coisa julgada material, tem-se uma nova ação, isto é, com nova causa de pedir próxima (fundamentos de fato) ou nova causa de pedir remota (fundamentos de direito). Não se trata de ‘repropositura’ da mesma ação anterior, cuja sentença de mérito foi acobertada pela autoridade da coisa julgada, mas sim de ‘propositura’ de ação nova, fundada em novos fatos ou em novo direito. O preceito, portanto, nada tem a ver com a intangibilidade da coisa julgada material, que se mantém intacta. Aliás, essa circunstância, antes de ofender a coisa julgada, na verdade expressamente a reconhece.” (NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria

Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 11. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2010, p. 738-739).

542 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais. São Paulo, n.

Evidencia-se, portanto, que tais decisões têm idêntica vocação à indiscutibilidade da coisa julgada, não obstante sejam ineficazes diante de fatos jurídicos estranhos às circunstâncias fáticas ou jurídicas apreciadas.543

Denota-se, pois, que a norma jurídica concreta reconstruída em uma sentença que regula relações de trato continuado alcançará a autoridade da coisa julgada.544 Regerá fatos jurídicos passados e futuros, desde que apresentem semelhantes contornos fáticos e jurídicos. Qualquer tentativa de criar nova norma jurídica concreta para regê-los ofenderá a coisa julgada, pois proporcionará verdadeiro efeito rescindente. Todavia, caso haja alteração das circunstâncias fáticas ou jurídicas, simplesmente a norma jurídica anteriormente definida não se aplicará, ficando os novos fatos livres de uma regulamentação imunizada pela coisa julgada.

Completamente inadequado, assim, imaginar que a possibilidade de ajuizamento de nova demanda judicial objetivando declarar a alteração das circunstâncias fáticas ou jurídicas e, consequentemente, afastar os efeitos da decisão transitada em julgado, possa significar ausência ou mesmo flexibilização do instituto da coisa julgada.545

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