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Núcleo de proteção da Constituição Federal de 1988

5 Proteção conferida à coisa julgada pela Constituição Federal de 1988 A regra

5.1 Núcleo de proteção da Constituição Federal de 1988

Deve-se reconhecer, de início, que o Constituinte não empregou a fórmula mais clara para conferir a ampla proteção que a coisa julgada merece no Estado Constitucional brasileiro. Ao expor “apenas” que a lei não prejudicará a coisa julgada, deu margem a interpretações que subestimam a relevância do instituto, como, por exemplo, a de que se trata de mera regra que impediu a retroatividade da lei às situações concretas já definidas e acobertadas pela coisa julgada.143

5º, XXXVI), de um lado; e a dignidade humana, concretizada no direito à assistência jurídica gratuita (CF, art. 5º, LXXIV) e no dever de paternidade responsável (CF, art. 226, § 7º), de outro.” (Informativo 622/2011 do STF) “Prevaleceu o voto proferido pelo Min. Dias Toffoli. Para ele, dever-se-ia ressaltar a evolução dos meios de prova para aferição da paternidade — culminada com o advento do exame de DNA — e a prevalência da busca da verdade real sobre a coisa julgada, visto estar em jogo o direito à personalidade. Ressaltou que este direito teria sido obstaculizado, no caso, pelo fato de o Estado haver faltado com seu dever de assistência jurídica, uma vez que não custeara o exame à época da ação anterior. Os demais Ministros que deram provimento ao recurso ressaltaram que a espécie envolveria o cotejo entre a coisa julgada e o princípio da dignidade da pessoa humana, consubstanciado no direito à informação genética.” (INFORMATIVO 629/2011 do STF).

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Transcreve-se, ainda, eloquente decisão do STJ, no Resp. 1.244.041/PR: “4. ‘O princípio da 'justa indenização' serve de garantia não apenas ao particular - que somente será desapossado de seus bens mediante prévia e justa indenização, capaz de recompor adequadamente o acervo patrimonial expropriado -, mas também ao próprio Estado, que poderá invocá-lo sempre que necessário para evitar indenizações excessivas e descompassadas com a realidade. Esta Corte, em diversas oportunidades, assentou que não há coisa julgada quando a sentença contraria abertamente o princípio constitucional da 'justa indenização' ou decide em evidente descompasso com dados fáticos da causa ('Teoria da Coisa Julgada Inconstitucional'). Se a orientação sedimentada nesta Corte é de afastar a coisa julgada quando a sentença fixa indenização em desconformidade com a base fática dos autos ou quando há desrespeito explícito ao princípio constitucional da 'justa indenização', com muito mais razão deve ser 'flexibilizada' a regra, quando condenação milionária é imposta à União pela expropriação de terras já pertencentes ao seu domínio indisponível, como parece ser o caso dos autos.’ (REsp 1.015.133/MT, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, Rel. p/ Acórdão Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 2.3.2010, DJe 23.4.2010.)”.

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Adeptos de tal vertente interpretativa: TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no

processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 237. THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA,

Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.). Coisa Julgada Inconstitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, p. 88. DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In:

Certamente essa não é a melhor expressão da mensagem constitucional a respeito da proteção conferida ao instituto. Sobre o ponto, verifica-se que a doutrina costuma perfilar especialmente os seguintes argumentos para refutar a tentativa de reduzir seu âmbito de proteção constitucional:

a) A regra não se destina apenas ao legislador, mas também aos juízes e administradores, pois o respeito à coisa julgada corresponde a um imperativo da segurança jurídica, indispensável à concreção do Estado de Direito. Pouco importa se há tratamento expresso na Constituição, pois é uma decorrência do Estado de Direito, concretizando os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Assim, nenhuma lei infraconstitucional, juiz ou administrador poderão negar ou desproteger a coisa julgada;144

b) As normas sobre direitos fundamentais merecem interpretação extensiva. Pela redação do dispositivo, pode-se extrair que além de a lei não poder suprimir a coisa julgada, ao seu aplicador também é vedado fazê-lo. “Ainda que não de forma explícita, o dispositivo consagra como garantia o próprio instituto da coisa julgada.” No entanto, cabe ao legislador ordinário traçar o regime jurídico da coisa julgada, sem, contudo, aboli-la.145

Apesar de concordar com tais argumentos, interessante acrescentar algumas ponderações.

Quando se lê na Constituição Federal que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, é preciso ter presente que o Constituinte pretendeu com essa fórmula conferir especial proteção a situações que se consolidam no tempo e, portanto, geram uma justa expectativa dos sujeitos a seu respeito. Trata-se, pois, de regra que tem como propósito assegurar a estabilidade dessas situações jurídicas, garantindo que a esfera jurídica daqueles detentores de tal status não poderá ser vilipendiada.

Confere-se uma espécie de “direito adquirido” à estabilidade jurídica, no sentido de que todo aquele que for titular de um direito adquirido, beneficiário de um ato jurídico NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, p. 37.

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MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional: a retroatividade da decisão de (in)constitucionalidade do STF sobre a coisa julgada; a questão da relativização da coisa julgada. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 65-71. PORTO, Sérgio Gilberto. Ação rescisória atípica. Instrumento de defesa da ordem jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 50.

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perfeito ou de uma coisa julgada é detentor da garantia constitucional de intangibilidade da sua esfera jurídica.146 Esse é o fundamento do preceito constitucional e que deve nortear sua interpretação. A teleologia do dispositivo é por demais eloquente, não dando margem para interpretações razoáveis em sentido contrário à existência de uma proteção constitucional à coisa julgada no sistema jurídico brasileiro.

Partindo de tais premissas, indaga-se: se a Constituição visa a tutelar tais situações jurídicas, informando que a lei (ou melhor, o Direito) não poderá prejudicá-las, seria preciso dizer algo a mais para informar à comunidade que todo o ordenamento deve por elas zelar?

Duas ordens de objeções podem ser identificadas a respeito da existência de uma garantia constitucional do instituto coisa julgada: a) o art. 5º, XXXVI, da CF/88 consiste em mera regra que impede a retroatividade da lei em relação às situações consolidadas por uma coisa julgada; b) o dispositivo dirige-se apenas ao legislador, não vinculando os juízes, que estariam livres para fazer ponderações no caso concreto e, se for o caso, afastar a coisa julgada para prestigiar outros valores constitucionais.

Inicialmente, não se pode aquiescer à ideia de que a garantia constitucional objetiva apenas evitar a retroatividade da lei diante de situações jurídicas concretas, nas quais já se tenha formado a coisa julgada. Para melhor explicitar tal proposição, interessante visualizar a coisa julgada sob duplo enfoque: como situação concreta que estabilizou determinada decisão judicial proferida e como instituto jurídico abstratamente previsto no ordenamento. As coisas julgadas já formadas (situação concreta) teriam a guarida constitucional, o instituto jurídico em si não teria igual proteção.

Essa interpretação é facilmente refutável, a partir de uma construção lógica. Se a lei puder livremente flexibilizar o instituto jurídico, ao fazê-lo estará enfraquecendo em igual medida a própria proteção da coisa julgada como situação concreta, pois as decisões que alcançarem tal qualidade após a edição da lei que apequenou o instituto jurídico não gozarão da proteção constitucional, mesmo enquanto situação concreta. Se antes da flexibilização do instituto jurídico havia a coisa julgada (situação concreta) que não poderia ser abalada, após o seu implemento a coisa julgada formada não gozará daquela proteção das situações concretas que a Constituição Federal prometeu.

146 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:

Parece claro, pois, que não se pode distinguir a coisa julgada, para efeito da proteção constitucional, entre situação concreta e instituto jurídico, havendo efetiva garantia para ambos.

Dando um passo adiante, é preciso reforçar a ideia de que o dispositivo constitucional não se dirige apenas ao legislador, mas também aos operadores do direito. Seria razoável imaginar que a lei não estaria prejudicando a coisa julgada se, por hipótese, previsse situações em que uma decisão que alcançou tal estabilidade pudesse ser alterada por qualquer juiz em outra demanda judicial? Ainda, que a lei não prejudicaria a coisa julgada se simplesmente retirasse de uma decisão de mérito, proferida sob cognição exauriente, a aptidão para se tornar incontestável?

Ora, se a lei, pela Constituição, não pode prejudicar a coisa julgada, estaria ela autorizada a permitir que os juízes a prejudiquem? A negativa parece evidente. Diante disso, não se pode admitir que, na falta de lei permitindo que os juízes desrespeitem a coisa julgada (cuja edição é vedada por manifesta inconstitucionalidade), possam os juízes, ainda assim, fazê-lo. Seria absolutamente ilógico (incoerente e irracional) que a Constituição proibisse a lei de prejudicar a coisa julgada, mas, na ausência de legislação, autorizasse os juízes a desrespeitá-la e a desconsiderar as situações jurídicas tuteladas pela Carta Maior. Por uma questão de lógica do discurso jurídico, os operadores do direito devem respeitar o imperativo de proteção da coisa julgada, sob pena de estarem agindo flagrantemente contra a ordem constitucional em vigor.147

Pretende-se com isso dizer que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XXXVI, traz uma regra explícita de proteção da coisa julgada, tanto para o legislador quanto para os operadores do Direito, bastando apenas um atento olhar para a sua teleologia e, sobretudo, para a completa ilogicidade de se entender que a lei não pode prejudicar a coisa

147 “A coisa julgada expressa a necessidade de estabilidade das decisões judiciais, vistas como atos de

positivação do poder, motivo pelo qual, se há sentido em garantir a sua imodificabilidade diante do Legislativo, é mais evidente ainda a imprescindibilidade de se tutelar a sua irretroatividade em relação ao Judiciário. Se a decisão judicial, embora inviolável pelo Legislativo, pudesse ser livremente negada exatamente por aquele que a produziu, não existiria a segurança jurídica indispensável ao Estado de Direito.” (MARINONI, Luiz Guilherme.

Coisa julgada inconstitucional: a retroatividade da decisão de (in)constitucionalidade do STF sobre a coisa

julgada; a questão da relativização da coisa julgada. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 69).

julgada, mas que os juízes estão livres para tal. Pode-se retirar do comando constitucional, pois, muito mais do que aquilo que se poderia, em análise perfunctória, imaginar.148

Com isso, é possível verificar que a norma jurídica que se extrai da disposição constitucional é só uma, no sentido de que a coisa julgada, seja como situação jurídica concreta ou como instituto jurídico, seja em relação ao legislador ou em relação aos operadores do direito, constitui garantia fundamental prevista na Constituição Federal de 1988.149

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