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Necessidade de observância da coisa julgada no Estado Constitucional.

Seguindo na evolução da nossa pesquisa, após a identificação da coisa julgada como relevante instrumento de promoção da segurança jurídica, chega o momento de especificar em que consiste a estabilização social acima referida como norte colimado pela indiscutibilidade das decisões judiciais.

Sem a pretensão de exaurir as inúmeras finalidades que se podem imputar à coisa julgada, é possível identificar alguns objetivos relevantes que merecem especial destaque, a fim de ratificar o papel dessa garantia constitucional. Assim, pode-se afirmar que a coisa julgada visa, primordialmente, a: a) proporcionar coerência ao sistema; b) viabilizar o discurso jurídico; c) conferir cognoscibilidade ao direito; d) possibilitar calculabilidade das relações jurídicas; e) imprimir o sentimento de confiança nos cidadãos e; f) garantir o desenvolvimento social e econômico da nação.

a) Coerência. O primeiro objetivo digno de nota se refere a um dos elementos constitutivos do princípio do Estado de Direito que é a necessidade de um sistema jurídico racionalmente estruturado, de maneira que os seus comandos sejam coerentes com as premissas adotadas, formando um bloco normativo harmônico. Sem tal característica, não é

128 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. Entre permanência, mudança e realização no direito tributário. São

Paulo: Malheiros, 2011. p. 353.

129 Machado Guimarães chega a alertar que é na sentença injusta que se identifica a “pedra-de-toque” para

identificar a natureza da coisa julgada. (GUIMARÃES, Luiz Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. Estudos de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro, 1969, p. 29).

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Dispondo sobre o recurso de revisão espanhol, instituto processual que desempenha papel idêntico ao da ação rescisória no sistema jurídico brasileiro: “Con ello, no sólo se responde a exigencias de justicia, sino de seguridad jurídica. Porque ninguna seguridad puede asentarse sobre la arena movediza de lo que aparece falso para la consciencia social y jurídica.” (PÉRES LUÑO, Antonio-Henrique. La seguridad jurídica. 2. ed. rev. e atual. Barcelona: Ariel, 1994, p. 119).

possível um ordenamento jurídico cumprir seus objetivos de ordenação e regulação do Estado e da vida social.

Por isso, se o Estado assumiu para si o monopólio da jurisdição, insculpindo como crime o exercício arbitrário das próprias razões131, deve necessariamente conferir uma solução aos conflitos que lhe são apresentados, sob pena de se mergulhar na incoerência de impedir a justiça privada e não conferir uma solução por meio da jurisdição. Ademais, não custa reiterar que “solução” sem o signo da indiscutibilidade, efetivamente nada resolve132

, pois soluções temporárias no máximo proporcionam o atendimento a situações pontuais133, mas estão longe de conferir a necessária segurança a que o Estado se obrigou quando assumiu o monopólio da jurisdição.

Assim, a estabilidade das decisões judiciais, conferindo uma resposta segura aos conflitos apresentados perante o Poder Judiciário, órgão responsável em dar a palavra final sobre os litígios no Estado brasileiro, constitui fator de coerência do sistema jurídico, pois seria um insuportável paradoxo adotar como premissa o princípio do amplo acesso à justiça e, ao mesmo tempo, se esquivar a conferir uma resposta definitiva aos jurisdicionados.

b) O discurso jurídico. Seguindo as lições de Marinoni134, é possível afirmar que a estabilização das decisões judiciais tem o condão de viabilizar o discurso jurídico, constituindo verdadeira condição para o exercício da jurisdição. Para que se tenha um verdadeiro discurso, identificável e útil, sua impugnabilidade deve ser limitada, tendo que chegar a um momento em que se enrijeça, pondo fim à possibilidade de alteração.

Caso assim não seja, ao invés de haver um discurso apto a definir a norma jurídica concreta que regerá a relação substancial declinada em juízo, a jurisdição consistirá em mera opinião, sempre provisória e precária, que não será apta a dar qualquer resposta à sociedade.

131 Art. 345 do Código Penal: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima,

salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência”.

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MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional: a retroatividade da decisão de (in)constitucionalidade do STF sobre a coisa julgada; a questão da relativização da coisa julgada. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 57; SILVA, Ovídio A. Baptista da. Eficácias da sentença e

coisa julgada. Sentença e coisa julgada: ensaios e pareceres. 4. ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.

80.

133 Como, por exemplo, a repressão de um risco de perecimento do bem jurídico disputado.

134 MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional: a retroatividade da decisão de

(in)constitucionalidade do STF sobre a coisa julgada; a questão da relativização da coisa julgada. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 58-62.

Ademais, tal “opinião” carecerá da respeitabilidade necessária de um ato estatal tendente a regular as relações sociais, porquanto a simples possibilidade de sua constante revisão não deixa de ser um estímulo à inobservância, diante da esperança da superação da decisão proferida.

A finalidade de viabilizar o discurso jurídico, portanto, deixa claro que não se pretende com a coisa julgada garantir a justiça dos julgados, apesar de perseguida durante todo o transcurso processual. Esta qualidade de estabilizar as decisões judiciais visa a pôr um ponto final na discussão, preocupada com o valor segurança jurídica, elemento inseparável do discurso jurídico útil do Estado Constitucional.

c) Cognoscibilidade. Também na coisa julgada pode-se visualizar o objetivo de conferir às partes o conhecimento do direito que rege a relação jurídica em que estão inseridas. Se os cidadãos, no mais das vezes, são conduzidos ao Poder Judiciário porque não chegam a um consenso sobre a norma jurídica concreta que se aplica ao caso, enquanto não houver uma definição derradeira do seu conteúdo, a incerteza reinará, diante de alegações fáticas e jurídicas contrapostas, cada qual defendendo a reconstrução de uma norma jurídica diversa.135

A coisa julgada, assim, possibilita que a norma jurídica definida pelo Poder Judiciário se consolide como “lei entre as partes” e dissipe a dúvida sobre qual o conteúdo do direito aplicável aos casos submetidos à apreciação judicial. Reitere-se, a precariedade das decisões judiciais é avessa à cognoscibilidade do direito, abalando as estruturas de um ordenamento minimante seguro.

d) Calculabilidade. Como podem as partes de um processo estabelecer relações jurídicas com um razoável grau de certeza quanto às suas consequências no futuro, sem a garantia de que a decisão judicial proferida e transitada em julgado não será alterada? Para que se possam calcular as consequências jurídicas dos seus atos, é essencial que o cidadão

135 “Exigencia esencial, porque es la certeza del derecho la que asegura la paz social. Y, como se ha observado

autorizadamente, debe existir certeza no sólo de la norma del derecho objetivo, sino también de las relaciones singulares, y ‘la certeza de la relación se garantiza con la indiscutibilidad de la misma’.” (VELLANI, Mario.

tenha condições de partir de premissas firmes, mais especificamente, de uma base normativa estável, sem a qual o futuro é completamente imprevisível.136

Por isso, a estabilização das decisões judiciais constitui pedra-de-toque também para esta dimensão do princípio da segurança jurídica, pois, se as normas jurídicas gerais e abstratas devem proporcionar à sociedade claridade quanto às consequências jurídicas das condutas adotadas, com maior razão devem os cidadãos ter como premissa segura a norma jurídica concreta que o próprio Estado apreciou, definiu e informou ao jurisdicionado, para que possa planejar o seu futuro com tranquilidade.

e) Confiança. Aqui está um dos mais aclamados objetivos a que se destina a coisa julgada. A proteção da confiança dos cidadãos naquilo que é definido por meio da prestação jurisdicional é fundamental para que se tenha um estado ideal de segurança jurídica, pois necessita-se de um mínimo de garantia de que aquilo que ingressou no seu patrimônio jurídico não poderá ser abalado posteriormente.137 José Afonso da Silva chega a afirmar que “a coisa julgada é, em certo sentido, um ato jurídico perfeito, mas o Constituinte a destacou como um instituto de enorme relevância na teoria da segurança jurídica.”138

Não por acaso que se afirma que, mesmo se não houvesse previsão expressa na Constituição de respeito à coisa julgada, sua intangibilidade estaria garantida, por um imperativo de proteção da confiança legítima decorrente do princípio da segurança jurídica. Merece integral transcrição a observação do Professor Humberto Ávila:139

As considerações precedentes deixam clara a vinculação do instituto da coisa julgada com o princípio da segurança jurídica: os indivíduos alcançados pela

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“Por outro lado, a coisa julgada é uma consequência necessária do direito fundamental à segurança (...) também dos demais cidadãos, e não apenas das partes no processo em que ela se formou, pois, todos aqueles que travam relações jurídicas com alguém que teve determinado direito reconhecido judicialmente, devem poder confiar na certeza desse direito que resulta da eficácia que ninguém pode negar aos atos estatais.” (GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In: DIDIER JR., Fredie. (Coord.). Relativização da coisa julgada. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 225).

137 “E poichè queste manifestazioni singole di volontà attuano nel particolare la funzione che la legge attua in

generale, di ripartire cioè fra i soggeti giuridici i beni della vita, noi vedremo che l’autorità della cosa giudicata consiste in questo soltanto, che nessun giudice possa accogliere domande dirette in qualsiasi modo a togliere o diminuire ad altri um bene della vita conseguito in virtù d’um precedente atto di tutela giuridica rispetto alla stessa persona.” (CHIOVENDA, Giuseppe. Sulla cosa giudicata. Saggi di Diritto Processuale Civile. V. 2. Roma: Società Editrice, 1931, p. 407).

138 SILVA, José Afonso da. Constituição e segurança jurídica. Fórum Administrativo: Direito Público. Belo

Horizonte, v. 6, n.59, p. 6.653-6.661, jan. 2006, p. 6.657.

139 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. Entre permanência, mudança e realização no direito tributário, São

eficácia subjetiva da coisa julgada confiam na sua validade. Isso explica porque a coisa julgada, em determinadas ordens jurídicas em que ela não é expressamente garantida, mesmo assim é protegida por meio da jurisprudência: a sua base constitucional é, diretamente, a segurança jurídica e, indiretamente, a proteção de direitos fundamentais, não havendo necessidade de sua proteção em dispositivo específico.

f) Desenvolvimento social e econômico. Por fim, cumpre apontar um objetivo não jurídico da coisa julgada, mas que merece destaque pela sua relevância. Costuma-se falar bastante que o risco Brasil sofre grande influência da morosidade da prestação jurisdicional e da inexistência de um sistema de precedentes judiciais sólidos, que confiram à sociedade a necessária segurança em relação ao Direito vigente no país.

Paralelamente a tais fatores, que causam grande instabilidade econômica e, por consequência, tornam o Brasil menos atraente em âmbito mundial, a coisa julgada também desempenha papel fundamental, pois a sociedade não terá uma vida digna e o Brasil não se tornará um país interessante aos olhos do mercado internacional se não conferir a devida segurança em relação às decisões judiciais emanadas do Poder Judiciário.

As pessoas precisam organizar suas vidas a partir do conhecimento das normas jurídicas que regem as relações, planejando o futuro com base naquilo que o Estado lhe informou fazer parte da sua esfera jurídica. Sem tal estabilidade, estarão sendo aviltados os mais comezinhos objetivos de um Estado de Direito, que é conferir uma clara positividade aos seus cidadãos, a fim de que possam conduzir livremente suas vidas.

Da mesma forma, do ponto de vista econômico, é bastante evidente que um país que não confira segurança às relações jurídicas não será bem visto por quem nele pensa em investir o seu capital. Por sinal, uma atenta análise histórica demonstrará que a estabilização das decisões judiciais foi incorporada à tradição romano-canônica justamente para conferir estabilidade às relações comerciais. A ideia de que, mesmo após o Estado ter dado sua “palavra final” a respeito de determinado litígio, a situação definida ainda possa ser revista, desfazendo-se tudo o que foi realizado e planejado a partir de tal decisão judicial, é, para dizer o menos, desanimadora.

Com essas ponderações, pretende-se alertar a comunidade jurídica das consequências para toda a sociedade e para o desenvolvimento nacional que advirão do desrespeito à coisa julgada. Qualquer aspiração de flexibilização da garantia constitucional

deve ser bem sopesada. Se as consequências jurídicas de um sistema que não confere o devido respeito à estabilização das decisões judiciais são nefastas, os danos sociais e econômicos seguem a mesma sorte, não podendo ser desconsiderados quando da teorização do instituto.140

5. Proteção conferida à coisa julgada pela Constituição Federal de 1988. A regra

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